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Entrevista com o ministro do Desenvolvimento Agrário, Miguel Rossetto

Para Miguel Rossetto, ministro do Desenvolvimento Agrário, o governo Lula tem no campo um espaço estratégico de geração de emprego e renda. Aqui, ele apresenta as alternativas que considera viáveis para enfrentar o problema do acesso à terra no país.

Há quem argumente que a reforma agrária é um anacronismo e que a agricultura brasileira já resolveu pela absorção de novas tecnologias e pela capacidade produtiva o problema da concentração fundiária. Considerando esses argumentos, qual o papel da reforma agrária no novo projeto de desenvolvimento econômico e social para o Brasil?
O tema reforma agrária é rigorosamente atual, urgente e necessário. É uma demanda secular, uma questão de justiça social prevista na Constituição Federal e uma ação estruturante de combate à fome e à miséria. A pergunta que todos devemos fazer é por que, na entrada do século XXI, um país como o Brasil não conseguiu resolver suas questões agrárias a exemplo de tantos outros países, com registros de tempo histórico distintos e com diferentes modelos econômicos e sociais, que realizaram seus movimentos democratizadores de acesso à terra. O governo Lula tem no campo um espaço estratégico de geração de emprego e renda, de produção de alimentos saudáveis para nosso povo e para acabar definitivamente com a mazela da fome, que atinge milhões e envergonha o país. Falamos aqui de possibilidades e desafios. O Brasil dispõe da maior concentração fundiária do planeta e de terras ociosas. Isso é inaceitável para uma Nação que, devido ao gigantismo de seu mundo rural, tem a oportunidade de produzir programas e políticas efetivas de inclusão social, de desenvolvimento econômico e de cidadania. O país precisa crescer, gerar trabalho e renda para seu povo, e o campo é um instrumento fundamental para isso – e é assim que estamos trabalhando.

O país mantém uma das estruturas fundiárias mais concentradas do mundo, 50 mil proprietários possuem áreas acima de 1.000 hectares. Um por cento dos fazendeiros cerca 46% de todas as áreas rurais, mas só emprega 4,2% da mão-de-obra rural. Por outro lado, as propriedades entre 100 hectares e 1.000 hectares absorvem cerca de 40% da mão-de-obra rural. Outros 40% estão trabalhando em áreas com menos de 10 hectares. Como o Plano Nacional de Reforma Agrária do governo pretende modificar esse quadro?
O Brasil tem leis e o MDA trabalha com total respeito ao Estado Democrático de Direito. A Constituição determina que somente áreas a partir de quinze módulos fiscais, e comprovadamente improdutivas, podem ser desapropriadas para fins de reforma agrária. Portanto trabalhamos com o universo de áreas que não cumprem sua função social, bem como áreas públicas e griladas, para fazer uma reforma agrária maciça e de qualidade. Numa ação complementar a nossa política fundiária, lançaremos em breve um novo programa de crédito fundiário para viabilizar a aquisição de áreas menores para a atividade rural.

O modelo de assentamento praticado ao longo da década de 1990 é eficaz para resolver a crise fundiária no país?
O modelo agrário praticado na última década é ineficiente e provocou um passivo fundiário enorme, principalmente no que se refere à infra-estrutura dos assentamentos. Levantamento feito pelo Incra aponta que das mais de 500 mil famílias assentadas entre 1995 e 2002, 90% não têm abastecimento de água, 80% não possuem energia elétrica e acesso a estradas, 57% não tiveram disponibilizado o crédito para habitação e 53% não receberam nenhum tipo de assistência técnica. O acesso à terra é apenas o primeiro passo para uma reforma agrária vigorosa e de qualidade. É preciso assegurar aos assentamentos as condições necessárias para a produção e a auto-sustentabilidade.

Qual o custo por família assentada e como o governo pretende, diante do contingenciamento dos recursos, cumprir sua meta de assentamentos até o fim do mandato com orçamento curto?
O custo para assentar uma família varia entre 23 mil reais e 25 mil reais, dependendo do valor da terra. É preciso destacar que a legislação brasileira garante a total indenização das terras improdutivas e desapropriadas, bem como das benfeitorias. Quanto aos recursos, a crise econômico-estrutural que herdamos da administração passada obrigou o governo a contingenciar boa parte do dinheiro para investimentos. Trabalhamos com alternativas viáveis e importantes que não impliquem maiores gastos. Estamos concluindo o levantamento do estoque de terras públicas existente no país, bem como das áreas ocupadas irregularmente. Também pretendemos contar com terras oferecidas como garantias bancárias, já vencidas, às instituições financeiras do governo. Esperamos com esses instrumentos avançar na reforma agrária.

O que o senhor define como uma reforma agrária qualificada?
Não queremos repetir um modelo de abandono e isolamento de nossos assentamentos, mas sim modelos de reforma agrária que dialoguem com as diversidades e potencialidades de cada região do país. O objetivo é a inserção das famílias assentadas num contexto de sustentabilidade socioeconômica e desenvolvimento territorial. Nessa direção estamos fomentando a integração re­gional dos assentamentos. Ao atuarem conjuntamente numa estratégia de produção e comercialização, as famílias assentadas terão maior capacidade produtiva e força de inserção no mercado. Isso prevê estudos de mercado e apoio logístico à produção do setor para definir as melhores culturas, bem como o modelo tecnológico capaz de garantir maior valor agregado à produção dos assentamentos. Em parcerias com estados e municípios, também serão implantadas estruturas de assistência técnica, crédito, comercialização e beneficiamento da produção das famílias assentadas. Nosso conceito de reforma agrária vai muito além do acesso à terra. Isso prevê tanto melhorias na infra-estrutura dos assentamentos, como energia elétrica, saneamento básico, estradas para o escoamento da produção, quanto maior presença de políticas públicas em áreas como educação, saúde, lazer e cultura, que são direitos fundamentais de quem produz e contribui para o desenvolvimento do país. Esperamos assim reverter um padrão histórico de abandono e exclusão dos assentamentos da reforma agrária.

Qual a capacidade de resposta efetiva da reforma agrária na geração de emprego e renda?
O Brasil tem hoje 520 mil famílias assentadas. Outras cerca de 140 mil estão acampadas à espera de um pedaço de terra para produzir e poder tirar seu sustento. Há, sim, no campo um enorme espaço de geração de trabalho e renda. O custo do trabalho no meio rural é muito inferior ao da cidade. Temos terras ociosas no Brasil e milhares de famílias querendo trabalhar.

Quais os vínculos entre o Plano Nacional de Reforma Agrária e o programa Fome Zero?
O Programa de Segurança Alimentar Fome Zero deverá beneficiar 44 milhões de pessoas com uma renda mínima para a compra de alimentos nos próximos quatro anos. Nossa expectativa é de que a agricultura familiar e os assentamentos da reforma agrária atendam ao aumento da demanda por alimentos estimulado pelo programa, principalmente em relação às culturas que compõem a cesta básica, como arroz, feijão, milho, mandioca e trigo. Essa é uma ação estruturante. Ao passo que incentivamos no campo a geração de trabalho, renda e a produção de alimentos para nosso povo, combatemos a migração de trabalhadores rurais para a periferia das grandes cidades. Relacio­no esses temas para mostrar que este governo tem uma visão ampla do desenvolvimento, tem perfeita consciência da necessidade de integrar as ações para chegar ao grande objetivo de realizar as mudanças, a inclusão social e aumentar a oferta de alimentos, trabalho e renda para todos os brasileiros.

Numa agricultura que se transformou, mais uma vez na história, em produtora de divisas, qual o lugar reservado para a agricultura familiar no novo projeto de desenvolvimento do país?
É impossível pensar um projeto nacional de crescimento sustentável sem considerar o enorme potencial da agricultura familiar, não só por sua expressão econômica, mas também por sua dimensão social, cultural e ambiental. São mais de 4,1 milhões de estabelecimentos familiares, ou o equivalente a 84% dos imóveis rurais do país. Quase 40% do Valor Bruto da Produção Agropecuária do Brasil vem da agricultura familiar. A atividade responde por parte significativa dos alimentos que chegam à mesa dos brasileiros: quase 70% do feijão, 84% da mandioca, 58% da produção de suínos, 54% da bovinocultura de leite, 49% do milho, 40% das aves e ovos e 31% do arroz.

Uma questão dramática na produção agrícola no país é a qualificação de mão-de-obra. Os projetos educacionais mobilizados pelo Pronera respondem ao desafio?
Temas como Assistência Técnica e Extensão Rural (Ater) são fundamentais para o desenvolvimento do campo. Uma grande demanda dos agricultores é justamente programas de educação e capacitação. E essa é uma de nossas grandes preocupações. Estamos fomentando a criação de um programa nacional de Ater, em parceria com estados e municípios. O Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (Pronera) também tem contribuído muito para o acesso ao conhecimento e a afirmação da cida­dania. É dirigido à formação de trabalhadores rurais em Projetos de Assenta­mento de Reforma Agrária (PAs) por meio de metodologias voltadas às especificidades do campo. Além do EJA, ensino fundamental de jovens e adultos, o programa conta com cursos de nível médio, cursos técnicos profissionalizantes e de nível superior, todos específicos para educadores assentados. O Pronera já formou mais de 100 mil alunos em todo o Brasil. Atualmente contabiliza parcerias com trinta universidades públicas, federais e estaduais, que executam cinqüenta convênios com 41.990 alunos matriculados nos cursos de EJA, 1.406 alunos nos cursos de nível médio e 750 nos cursos de nível superior.

Em que termos se estabelecem as relações entre o governo e os movimentos sociais do campo, especialmente MST e Contag, com vistas à realização da reforma agrária?
Temos um profundo respeito para com todos os atores sociais do mundo rural. Desde o início da gestão, o MDA tem marcado sua atuação pelo diálogo com todos os segmentos do campo, tanto com os movimentos sociais como com as entidades representativas da agricultura patronal. A reforma agrária é uma demanda da sociedade, e não uma missão isolada de um ministério. Acreditamos que todos, à luz da lei, podem dar sua contribuição para que o campo brasileiro se torne definitivamente um espaço de produção, paz e justiça social.

Os meios de comunicação ressaltam o crescimento dos conflitos no campo, os dados confirmam? Pode-se dizer que a posse de Lula significou aumento da violência no campo?
O último Relatório da Reforma Agrária, divulgado mensalmente pela Ouvidoria Agrária Nacional, aponta uma diminuição de 44% no número de ocupações em agosto em relação ao mês de julho. A queda foi de 43 para 24 casos registrados. Estamos intensificando a execução de nossas políticas agrárias e esperamos manter esse padrão de queda. Agora, é preciso lembrar que a reforma agrária é uma demanda secular. É compreensível que a chegada de um governo popular ao poder crie uma expectativa maior na população de ver suas demandas atendidas. São reivindicações legítimas e temos o compromisso de buscar atendê-las dentro de um regime democrático de Direito. O país lutou muito para a consolidação da democracia.

É visível que setores organizados dos latifúndios mantêm milícias armadas em algumas regiões do país. Como o governo pretende enfrentar esse problema, considerando que os movimentos sociais rurais têm demonstrado vigor e grande capacidade de mobilização?
A formação de milícias armadas é inaceitável e um desrespeito à lei. É uma prática daqueles que se dizem produtores, mas não têm produção para proteger. Todos, sem exceção, temos a obrigação de respeitar as regras da democracia. O governo está ciente, atento e pronto a agir para fazer valer a lei e a ordem.

Quais as balizas indispensáveis para a formulação de um Plano Nacional de Reforma Agrária no Brasil sintonizado com um novo ciclo de desenvolvimento econômico e social?
O Plano Nacional de Reforma Agrária, que estamos concluindo, está calcado na elaboração de estratégias, políticas, diretrizes e ações de curto, médio e longo prazos, visando proporcionar maior democratização e efetividade no acesso à terra para quem dela precisa para seu sustento e da sua família. Definirá os instrumentos, bem como os recursos financeiros e logísticos, que garantam o desenvolvimento rural sustentável, capaz de criar mais empregos e distribuir melhor a renda nacional e, conseqüentemente, contribuir para a erradicação da pobreza no Brasil. Essas ações deverão estar em consonância com a realidade e o potencial de cada região do país.

O Incra está equipado para cumprir suas funções no novo projeto?
O Incra sofreu, nos últimos anos, um processo de sucateamento e a falta de renovação de seus quadros. Já estamos estudando a realização de concurso público para o preenchimento dessas funções e temos plena confiança na qualificação e no comprometimento dos funcioná­rios da casa com a reforma agrária.

O que o ministro espera da nova diretoria do Incra?
O economista Rolf Hackbart é um dos quadros mais antigos e respeitados no Brasil na área agrária. Sua escolha busca dotar o Incra de maior capacidade gerencial e executora. Temos plena confiança em seu trabalho e em seu compromisso com uma nova realidade fundiária para o país. Seus estudos e análises contribuíram em muito para a formação de novos lutadores do campo e sua nomeação expressa nosso compromisso em realizar uma reforma agrária maciça e de qualidade, nos limites da lei.

A arrecadação de terras públicas será suficiente para dar conta de todo o processo?
A utilização de terras públicas é uma alternativa importante diante da falta de recursos. Estamos concluindo o levantamento dessas áreas e seu potencial para a reforma agrária. De nada adiantam terras sem boas condições de produção.

Qual o papel da Embrapa na reforma agrária?
A Embrapa é uma instituição muito importante de Ater e temos trabalhado na direção de uma ação mais integrada para potencializar a produção e a produtividade dos assentamentos. Pudemos conferir de perto situações de aumento de mais de 1.000% na produção dos assentamentos quando atendidos pela Embrapa. Isso demonstra a viabilidade econômica dos assentamentos, desde que assistidos adequadamente. E a assistência técnica e extensão rural são fundamentais nesse processo.

Como tem se dado a atuação do MDA com relação à questão ambiental?
A importância da agricultura familiar é um fenômeno observado em todos os países. Os agricultores familiares são protagonistas importantes da transição para a economia sustentável, já que, ao mesmo tempo que são produtores de alimentos, conservam a biodiversidade. Temos todo o interesse em apoiar a produção orgânica e projetos de agroecologia, inclusive com linhas de créditos especiais, como fizemos por meio do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf).

Hamilton Pereira é presidente da Fundação Perseu Abramo