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O povo votou por mudanças. E a política de reforma agrária a ser adotada depende das mudanças no modelo econômico. Seria idiotice seguir apenas com políticas de crédito fundiário e assentamentos pontuais

O Brasil tem uma das sociedades mais desiguais do mundo, rica e injusta, com enormes diferenças entre ricos e pobres. E, certamente, uma das causas históricas para essa situação foi a forma como durante séculos as classes dominantes legislaram e resolveram a questão do acesso ao principal patrimônio da natureza, a terra.

Com certeza os leitores sabem que ao longo de nossa história a sociedade brasileira perdeu várias oportu­ni­dades de realizar um processo de democratização da propriedade da terra. Não por falta de conhecimento ou orientação. Toda a sociedade foi penalizada pelas decisões políticas da classe dominante.

Para lembrar. Tivemos durante quatro séculos um modelo econômico capitalista perverso, que se chamou de agroexportador. No período colonial, a terra estava sob controle absoluto da Coroa, da monarquia. E foi distribuída na forma de concessão de uso aos capitalistas que dispusessem de recursos para comprar escravos e desenvolver cultivos que interessavam à metrópole. Assim, mantivemos a terra cativa dos interesses da metrópole e aplicamos uma forma de organização da produção baseada na plantation1.

A partir de meados do século XIX esse modelo entrou em crise, até porque não se admitia mais trabalho escravo, base de sua acumulação. Mas quando saímos da escravidão, em vez de criar leis que democratizassem o acesso à terra, nós a transformamos em mercadoria e excluímos do acesso a ela todos os pobres do campo. Isso se deu em razão da lei 601, de 1850, pela qual se introduzia a propriedade privada da terra, mas somente poderia se transformar em proprietário quem a comprasse, e portanto pagasse em dinheiro à Coroa. Nascia assim o latifúndio. As antigas concessões de uso agora ganhavam foro de propriedade privada, e a terra podia ser comprada e vendida. A mão-de-obra foi liberta, mas a terra ficou cativa do capital.

Em diversos países do mundo, as sociedades aproveitaram o fim da escravidão e realizaram a democratização do acesso à terra. No Brasil, ao contrário, saímos da escravidão, depois de tantas lutas, mas as classes dominantes, as oligarquias rurais, mantiveram o monopólio da propriedade da terra. Perdemos a primeira oportunidade histórica de criar as bases para uma sociedade democrática. A sociedade brasileira seguiu concentradora e antidemocrática.

A crise, portanto, não se resolveu por decreto, e foi superada apenas na década de 1930, com a revolução política da nascente burguesia industrial, que destronou as oligarquias rurais do poder político central e passou a implementar um novo modelo econômico: o modelo de industrialização dependente. E todos os países do Hemisfério Norte, quando as sociedades chegaram ao capitalismo industrial, aproveitaram e realizaram políticas de democratização da posse e uso da terra, como forma de fomentar o mercado interno dos produtos industriais, transformando os pobres camponeses sem terra em produtores e consumidores de mercadorias. É desse período histórico o surgimento da expressão “reforma agrária” como política de governo para democratizar a propriedade da terra. Ela foi aplicada em toda a Europa Ocidental e, depois da Primeira Guerra Mundial, em toda a Europa Oriental.

Esse mesmo tipo de política, para desenvolver o mercado interno e o capitalismo industrial, teve lugar na Ásia após a Segunda Guerra Mundial.

No Brasil, de novo, perdeu-se a oportunidade histórica de realizar a reforma agrária, para desenvolver o mercado interno. E as classes dominantes, agora hegemonizadas pela burguesia industrial, não realizaram a reforma agrária, na década de 1930, por várias razões: mantiveram sua aliança com as oligarquias rurais, com quem tinham laços até familiares; mantiveram o setor agroexportador da monocultura de cana, café, algodão e cacau, como uma forma de auferir dólares que poderiam ajudar a financiar a importação de máquinas para a industrialização; e implementaram um modelo capitalista dependente, do capital estrangeiro e de suas grandes fábricas, voltado para a exploração de nossa mão-de-obra barata, e não para o mercado interno. Assim, interessava mais às burguesias industriais que os contingentes excedentes de camponeses viessem para as cidades vender sua força de trabalho, de forma barata, do que reproduzi-los como camponeses no interior.

E assim se fez. Em cinqüenta anos experimentamos um estupendo crescimento da produção industrial e transferimos nossa população do meio rural para a rápida formação de grandes cidades, amontoada, por todos os cantos, sem nenhum planejamento urbanístico, apenas como um grande exército industrial de reserva, à espera de ser explorado. E passamos de 80% da população no meio rural para 80% morando nas cidades.

Mas o modelo de industrialização dependente também teve suas crises de acumulação. A primeira grave crise de crescimento se registrou na década de 1960. E trouxe em seu bojo uma crise política, que se combinou historicamente com um período de ascensão do movimento de massas no Brasil, que veio desde 1954 até 1964, hegemonizado na época pelo principal partido de esquerda – o Partido Comunista do Brasil.

O ápice da crise se revelou com a queda de Jânio Quadros e a subida de João Goulart. Então assessorado por forças progressistas, Jango passou a advogar a necessidade de realizarmos reformas estruturais para tirar o país da crise. Nesse bojo prevaleceram as idéias cepalinas, capitaneadas pelo grande Celso Furtado, que defendia a tese de que o Brasil somente sairia de sua crise e de seu subdesenvolvimento se implementasse um processo de industrialização voltado para o mercado interno. E para desenvolver o mercado interno era necessário realizar a reforma agrária. Assim, a saída seria casar um novo modelo industrial, voltado para o consumo interno de massas, com uma reforma agrária ampla, que transformasse os milhões de camponeses pobres em produtores e consumidores. Dessa tese surgiu uma proposta concreta de reforma agrária: desapropriar todas as grandes propriedades acima de 1.000 hectares localizadas a cem quilômetros das margens de todas as rodovias federais, as BRs. A proposta foi apresentada ao povo no famoso comício da Central do Brasil, no Rio de Janeiro, em 13 de março de 1964 – e no dia 1º de abril o presidente foi derrubado.

Perdemos mais uma oportunidade de realizar a reforma agrária. As classes dominantes brasileiras resolveram o problema da crise do modelo gerando uma estranha aliança com os militares e o capital estrangeiro. Tivemos a volta do crescimento econômico ainda mais concentrado nas mãos de poucos e do Estado. E vinte anos de ditadura militar.

A segunda crise do modelo, agora terminal, ressurge na década de 1980. E a rigor ela se estende até os dias de hoje.

A saída neoliberal e sua herança perversa

Com a crise do modelo de industrialização dependente, as classes dominantes também entram em crise e, ao longo dos últimos anos, vêm buscando diversas saídas. A partir do governo Collor e depois FHC, assumem como proposta de solução a implantação de um novo modelo econômico, que seria a subordinação total de nossa economia ao capital estrangeiro. As políticas adotadas para implementá-lo, conhecidas como neoliberais, foram recomendadas por organismos internacionais que representam o capital, como o Banco Mundial, o FMI etc., …e se tratava na realidade de uma “nova liberdade total para o capital”. Mas liberdade para o capital estrangeiro, que agora estava em sua etapa financeira e, portanto, vinha ao nosso país não mais para explorar mão-de-obra barata, mas sim para realizar-se abocanhando os lucros das ex-empresas estatais, então privatizadas por ele. E também na obtenção de altas taxas de juros, seja da dívida externa, seja dos cofres públicos, por meio da dívida interna.

Essa proposta de modelo chegou devagarzinho também à agricultura, nos anos 1980. E teve conseqüências funestas, pois representou na prática a desnacionalização de nossa agricultura para as empresas estrangeiras. Assim, herdamos dos governos Collor e FHC, durante os últimos quinze anos, o resultado perverso da política neoliberal aplicada também à agricultura. E quais foram essas conseqüências?

Primeiro, houve um processo de concentração da propriedade da terra ainda maior. As grandes propriedades, fazendas maiores de 2 mil hectares, que detinham um patrimônio de 120 milhões de hectares, passaram para 150 milhões de hectares. Na camada inferior dos camponeses, os pequenos proprietários, com menos de 100 hectares, diminuíram seu número em 920 mil propriedades. Ou seja, desapareceu, nesse período, quase 1 milhão de pequenas propriedades, majoritariamente abaixo de 10 hectares. Cerca de 2 milhões de trabalhadores assalariados perderam o emprego.

O país concentrou ainda mais sua produção agrícola, voltando a priorizar apenas alguns grãos, como soja e milho, e a cana-de-açúcar, todos para exportação. Nesses quinze anos, os demais produtos agrícolas brasileiros diminuíram a área cultivada e o volume de produção total; apenas soja, milho e cana aumentaram. O Brasil aumentou a importação de alimentos que facilmente poderíamos produzir aqui, como leite e derivados, feijão, frutas etc.

Tudo isso porque as empresas estrangeiras passaram a controlar o comércio agrícola e nossas agroindústrias – e portanto os preços, estoques e todo o abastecimento de alimentos do país. O modelo de subordinação de nossa economia adotado pelo governo FHC colocou em risco a soberania alimentar de nosso povo.

E a reforma agrária? Ora, no contexto desse novo modelo subordinado ao capital estrangeiro, às grandes empresas transnacionais e ao capital financeiro, não há espaço para políticas de reforma agrária. O processo, ao contrário, é de concentração da propriedade da terra e da produção. Ou seja, modernizar a agricultura por meio das grandes unidades produtivas e excluir paulatinamente a agricultura familiar e os trabalhadores rurais em geral, cuja única saída é a migração para as cidades.

No entanto, como tudo é contraditório em nossa sociedade, também como parte da crise do modelo de industrialização dependente surgiram na década de 1980 muitos movimentos sociais – e chegamos a ter uma reascensão do movimento de massas, de 1978 a 1989 –, que reorganizaram a classe trabalhadora em torno da CUT, do PT, das pastorais, progressistas, dos sindicatos e do MST. Portanto, formas organizativas de resistência queriam mudanças diferentes. E havia no campo forças organizadas da classe trabalhadora que voltavam a lutar pela reforma agrária. Qual foi a saída então aplicada pelos governos neoliberais?

As saídas, estudadas e assessoradas meticulosamente pelo FMI e pelo Banco Mundial, deram-se em dois campos complementares. De um lado aplicar políticas sociais compensató­rias, que pudessem amenizar o sofrimento social dessas amplas populações rurais completamente excluídas. Assim surgiram os programas bolsa-escola, cesta básica, vale-gás. E surgiram também o Banco da Terra e o crédito fun­diário, utilizando-se várias expressões diferentes para um mesmo objetivo: criar a ilusão paulatina no camponês de que ele não precisava se organizar e poderia, individualmente, comprar sua terra. Os fazendeiros apoiaram entusiasticamente a proposta, pois passaram a receber, à vista, por terras de péssima qualidade que não conseguiam vender a ninguém.

E aqui e acolá se poderia até fazer alguma desapropriação, de preferência na região amazônica (onde ocorreram 67% das desapropriações do governo FHC), para atender algumas famílias de teimosos sem-terra que ocupavam e resistiam a tudo e a todos.

Mas, como eles sabiam que essas medidas de compensação social não eram maciças nem resolviam, apenas transferiam, o problema, casaram então essa política com a criminalização dos movimentos sociais, e de todos os que lutarem por terra e por reforma agrária. Essa criminalização foi operada por meio de diversos mecanismos, desde medidas legislativas (MP antiinvasão), medidas judiciárias, orientando para prisões e repressão, processos administrativos, até intensa campanha na televisão contra os movimentos sociais.

Felizmente, para nosso alívio, o povo brasileiro realmente é teimoso, e entendeu bem a natureza de toda essa política: em outubro de 2002 votou para mudar o modelo, e escolheu Lula como presidente.

E agora, José?

O povo votou por mudanças. Mudanças não apenas de presidente – mudou o presidente para mudar o modelo econômico. E a política de reforma agrária a ser adotada, mais do que tudo, depende das mudanças no modelo econômico, em geral, de nossa economia.

Ao longo do século XX, diferentes tipos de reforma agrária foram realizados em diversas nações do mundo. Cada um adequado ao modelo econômico mais amplo adotado pelo país. Houve reformas agrárias chamadas de clássicas, que distribuíram maciçamente a propriedade da terra, no início do capitalismo industrial. Houve reformas agrárias radicais, feitas pelos próprios camponeses, sem ser políticas de Estado, como aconteceu na revolução mexicana e na boliviana. Houve reformas agrárias resultantes de processos de liberação nacional, feitas sobre as terras dos ex-colonizadores. Houve reformas agrárias socialistas, no bojo das revoluções socialistas, e as do tipo popular, que combinaram governos populares com movimentos sociais fortes.

É muito difícil dizer que tipo de reforma agrária temos condições de realizar no Brasil de hoje. Mas certamente não será a reforma agrária do tipo clássico, em que bastava distribuir a propriedade da terra, e muito menos uma reforma agrária do tipo socialista. Assim como seria uma idiotice seguir apenas com as políticas sociais compensatórias adotadas pelo governo passado e recomendadas pelo Banco Mundial, por meio do Banco da Terra, de crédito fundiário e assentamentos pontuais. Até porque esse tipo de política não tem nada a ver com reforma agrária e muito menos com a democratização de nossa sociedade.

Nós que nos aglutinamos na Via Campesina Brasil, como o MST, o Movimento de Pequenos Agricultores (MPA), o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), a Comissão Pastoral da Terra (CPT) e outros movimentos sociais menos conhecidos ou regionalizados, temos advogado que é possível nessa conjuntura histórica realizar uma reforma agrária de novo tipo.

Uma reforma agrária que parta do princípio de que é necessário democratizar a propriedade da terra desapropriando todas as grandes propriedades improdutivas, como aliás já determina nossa Constituição. E, em nossa opinião, se desapropriássemos apenas as fazendas improdutivas com mais de 2 mil hectares teríamos terra de sobra para toda a população pobre do campo.

Em segundo lugar, combinar a instalação dos assentamentos com a implantação de agroindústrias cooperativadas, para que os alimentos sejam industrializados no interior e os camponeses tenham outros tipos de emprego, para a juventude e as mulheres, e assim também possam melhorar de renda. Apenas vendendo matérias-primas o camponês não sairá da pobreza e não haverá distribuição de renda em nosso país.

Em terceiro, democratizar a escola no meio rural, garantindo a toda a população do meio rural acesso ao ensino gratuito e em todos os níveis. A educação é tão importante, no mundo moderno, quanto o acesso à terra.

Em quarto, implantar um novo modelo tecnológico de produção agrícola adequado ao meio ambiente, à produção de alimentos saudáveis, evitando a dependência de insumos industriais e dos agrotóxicos. Assim como capacitar a assistência técnica, dentro desses novos parâmetros, e massificar a utilização de técnicos e agrônomos pelo interior afora, para imprimir essa nova orientação.

Em quinto, reestruturar o chamado setor público agrícola, para que o Estado cumpra sua função social de ser o principal reorganizador dessa nova política de produção e de democratização da propriedade da terra.

Oportunidade histórica

Felizmente, essas idéias não são novas nem exclusivistas. Os compromissos da campanha eleitoral expressos no documento “Vida Digna no Campo” defendem em síntese essa mesma proposta, de um novo tipo de reforma agrária.

E, por outro lado, os movimentos sociais que atuam no campo, conseguimos construir um grande espaço de unidade, em torno do Fórum Nacional pela Reforma Agrária, e produzimos um documento que expressa essa unidade, plasmada na Carta da Terra.

Esperamos que o novo governo tenha coragem de não perder essa oportunidade histórica, aliado com os movimentos sociais do campo e apoiado pelo desejo de mudanças de todo o povo brasileiro, de fazer finalmente uma reforma agrária, verdadeira, de novo tipo.

João Pedro Stedile é membro da direção do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e da Via Campesina Brasil