Economia

Para retomarmos o crescimento da economia num quadro de estabilidade é preciso reduzir o peso que a dívida pública tem sobre a política econômica e a população. Por que os setores sociais devem aceitar sacrifícios, mas o financeiro não?

Não há dúvida: todos desejamos que, dentro de um novo ciclo de crescimento da economia, a inflação seja controlada e a estabilidade mantida.

Hoje, a difícil situação econômica do país e as opções de política econômica têm levado a maior parte dos setores da sociedade a contribuir, mesmo que compulsoriamente, para manter a relativa estabilidade que vivemos.

Os trabalhadores vêm arcando com o principal ônus dessa relativa estabilidade. O desemprego, a perda da renda, o arrocho salarial, sem dúvida alguma, não têm pressionado os preços. Ou seja, esses sacrifícios dos trabalhadores ajudam a evitar o aumento da inflação. Dados da Fundação Seade/ Dieese apontam nessa direção. O desemprego total na Região Metropolitana de São Paulo em julho atingiu 19,7% da População Economicamente Ativa (PEA), ou seja, havia 1,934 milhão de desempregados. Por outro lado, pesquisas dessas duas instituições informaram que a renda média dos trabalhadores na mesma região caiu cerca de 50% entre 1985 e 2003, diminuindo de 1.770,83 para 889 reais. Uma pesquisa do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) revelou que apenas entre julho de 2002 e junho deste ano a renda real do trabalhador caiu 16,4%. Esses dados são dramáticos e mostram o violento empobrecimento da população. Ainda nessa linha, o Dieese apurou que, nas campanhas salariais realizadas entre janeiro e junho, 54% dos reajustes salariais ficaram abaixo da inflação; o pior resultado ocorrera em 1998, quando 45% das categorias não conseguiram repor as perdas.

Setores da indústria e do comércio não têm conseguido repassar o aumento de preços para as mercadorias no montante que desejariam. Estudo do IBGE mostra que as vendas do varejo voltaram a cair em junho (5,37%) em relação ao mesmo mês de 2002. A queda acumulada no primeiro semestre foi de 5,57%, em comparação com igual período do ano passado – a pior desde o início dessa pesquisa, em 2001.

O governo também vem participando desse esforço compulsório através de um enorme superávit primário, o que impede o aumento do gasto público e contribui para a redução da demanda agregada. O superávit primário em 2002 foi de cerca de 50 bilhões de reais e, nos cinco primeiros meses de 2003, já somou 37 bilhões de reais. Naturalmente, esse esforço do governo significa transferir um sacrifício forçado para toda a sociedade.

Mas há um setor que pouco, ou nada, tem contribuído para a manutenção da estabilidade econômica e para o controle da inflação: o setor financeiro. Os aplicadores no mercado financeiro vêm obtendo ganhos extraordinários; os bancos, lucros exorbitantes. Dados da ABM Consulting demonstram que os bancos brasileiros são os mais rentáveis do mundo. Em 2002, a rentabilidade dos seis maiores do país foi de 23%, enquanto no México foi de 17% e na Itália de 9%. No primeiro trimestre deste ano, a rentabilidade do Santander chegou a 118%; esse percentual não tem paralelo no mundo. O Bradesco teve fôlego para comprar quatro bancos em 2002 e mais um no início de 2003.

Essa situação excepcional do setor financeiro – e sobretudo dos especuladores – explica-se pela sua capacidade de pressão sobre preços-chave da economia (juros e câmbio).

Quem banca o lucro somos nós

Quem banca esse lucro somos nós, cidadãos brasileiros que pagamos impostos. Em 2002, o setor público – o governo federal, os governos estaduais e municipais e as empresas estatais – pagou 114 bilhões de reais de juros sobre sua dívida- Em termos de comparação, se uma casa popular custa cerca de 20 mil reais, com o que foi pago de juros seria possível construir 5,7 milhões de casas, permitindo a mais de 20 milhões de brasileiros deixar as favelas. Outra comparação: no Brasil, há cerca de 14 milhões de trabalhadores do setor privado que recebem um salário mínimo de aposentadoria. Os 40 reais do último aumento do salário mínimo significam R$ 560 milhões a mais por mês para pagar esses trabalhadores, o que soma 7,28 bilhões de reais ao ano. Portanto, 5% do que foi gasto com o pagamento de juros.. Entre janeiro e maio deste ano, os gastos com juros do setor público consolidado foram de 63,311 bilhões de reais.

Para fazer frente a tais gastos, o governo federal tem implementado (e forçado os demais níveis do governo a implementar) enormes superávits primários, isto é, tem garantido recursos crescentes para pagar os compromissos financeiros do setor público. Isso significa, na prática, uma severa restrição de gastos essenciais para a população brasileira. Além disso, a elevação da carga tributária tem sido uma outra maneira de viabilizar esses superávits. Podemos dizer, portanto, que está havendo uma brutal transferência de renda da população brasileira, de vários setores econômicos, para os detentores da riqueza financeira.

Para conseguir a rolagem dessa dívida, as autoridades de Brasília vincularam a maior parte dos títulos a juros pós-fixados (e à correção cambial). Os aumentos da taxa de juros elevam, portanto, a remuneração desses títulos1. Com isso, cresce a dívida interna e, por outro lado, impede-se o crescimento econômico. Caem o emprego e o consumo.

Com a alta do dólar, ocorrida no fim do governo FHC – no momento contida –, houve um grande aumento da dívida interna, que levou a uma elevação da exigência de superávits primários. Por outro lado, subiram os preços dos produtos importados e, paralelamente, os exportadores puderam impor ao mercado interno os preços que obtêm com as exportações, o que trouxe de volta a inflação e, com ela, novas elevações das taxas de juros.

É preciso reduzir o peso da dívida pública

A retomada do crescimento econômico com distribuição de renda é fundamental para tirar o país da crise. Para isso, é preciso aumentar o nível de emprego e os salários e criar condições para amplos investimentos na área de infra-estrutura e na área social.

O Brasil é um país que ainda precisa de enormes investimentos para melhorar o padrão de vida da população. São necessários investimentos para construir milhões de moradias, para o saneamento básico, para ampliar linhas de metrô nos grandes centros urbanos, para construir hidrelétricas, novas estradas, escolas, hospitais. Segundo dados da Associação Brasileira de Infra-Estrutura e Indústria de Base (ABID), é preciso investir 4,8 bilhões de dólares durante dezessete anos, perfazendo 82 bilhões de dólares, ou seja, cerca de 240 bilhões de reais, para que a economia cresça a índices razoáveis sem perigo de apagão. Ou ainda: dados do Fórum Econômico Mundial apontam para a necessidade de investimentos de 167 bilhões de dólares em infra-estrutura nos próximos oito ou dez anos.

Para retomarmos o crescimento da economia num quadro de estabilidade, é preciso reduzir o peso que a dívida pública tem exercido sobre a política econômica e sobre toda a população brasileira. O caminho definido neste momento pelo governo federal – manutenção de elevados superávits primários por todo o mandato do presidente Lula, com a perspectiva de que essa política seja mantida mesmo depois – representa, de fato, uma restrição inaceitável para o gasto público, para o crescimento da economia e para a satisfação de necessidades inadiáveis da população brasileira. Representa, além disso, a manutenção de um privilégio indefensável para o setor financeiro. Urge, portanto, buscar caminhos alternativos.

Alternativa: renegociar

Uma alternativa que deve ser examinada é a renegociação da dívida interna Outra opção a ser examinada, naturalmente, é a renegociação da dívida pública externa.. Uma redução da dívida conseguida dessa maneira reforçaria as condições para abaixar as taxas de juros. Contribuiria duplamente, portanto, para diminuir as despesas financeiras governamentais: haveria taxas de juros mais moderadas, que incidiriam sobre um menor estoque da dívida pública. Haveria também uma necessidade de superávit fiscal primário bem menor – isto é, de cortar gastos para pagar juros –, muito menos dramática. Além disso, o crédito mais barato incentivaria a produção, fortaleceria a economia e concorreria, dessa forma, para estancar a especulação contra nossa moeda. Tudo isso tornaria possível uma retomada sustentada do crescimento.

A proposta de renegociação da dívida pública interna já fez parte de programas do PT, mas foi abandonada nos últimos anos. Uma das razões é que seus adversários costumam insinuar que ela seria uma espécie de “calote”, que levaria, portanto, à desconfiança dos credores, à fuga de capitais e ao aumento dos juros – ou seja, que teria efeitos opostos aos pretendidos.

No entanto, a própria definição de “renegociação” já exclui a idéia de calote. Uma proposta negociada não pode ser caracterizada como envolvendo qualquer ruptura de contratos. O correto é dizer que essa proposta visa justamente evitar qualquer tipo de calote ou, para usar uma expressão mais recente, de “curralito”.

Os que confundem renegociação da dívida com calote têm de explicar por que não admitem uma renegociação com os detentores de riqueza financeira e, por outro lado, não protestam contra um encaminhamento como o que foi dado ao pagamento da correção do FGTS dos Planos Collor e Verão, a que os trabalhadores tinham direito, conforme foi reconhecido em sentenças judiciais. Os trabalhadores tiveram de aceitar a perda de parte de seus direitos legítima e juridicamente reconhecidos2. Nesse caso, cabe inclusive questionar se houve negociação, já que de fato o governo de Fernando Henrique Cardoso impôs sua proposta. A sugestão que encaminhamos agora inclui a idéia de uma negociação muito mais efetiva.

Será que os que confundem renegociação da dívida interna com calote estariam, na verdade, partindo do pressuposto de que essa negociação é impossível, porque os detentores de riqueza financeira, impatrioticamente, jamais a aceitariam? Se este é o argumento, deve ser claramente exposto – e testado na prática.

Propomos um debate nacional

O que propomos é um debate nacional em torno da seguinte questão: por que todos os setores sociais devem aceitar sacrifícios – mas não o setor financeiro? Por que os trabalhadores que são credores de uma dívida do FGTS reconhecida como legítima pela Justiça devem aceitar patrioticamente uma redução de seus créditos, mas a dívida pública financeira não pode sequer ser renegociada?

Ou, para mencionar um tema ainda mais candente: por que o governo pode propor aos funcionários públicos que aceitem postergar a aposentadoria ou ter seus ganhos reduzidos – com o argumento de que o país não pode arcar com esse custo –, mas não pode propor aos detentores de riqueza financeira que discutam uma redução de parte de seus ganhos acumulados, que custam muitas vezes mais ao país? E não se trata de propor acabar com os lucros do setor financeiro. Este continuaria trabalhando e lucrando dentro da nova situação. Apenas teria a oportunidade de contribuir para a solução da crise brasileira em condições condizentes com os ganhos que já teve, principalmente na última década.

O governo federal poderia propor uma ampla discussão, que incluiria naturalmente o Congresso Nacional. Não há dúvida de que uma redução da dívida pública negociada e aceita, portanto, por todos poderia aliviar significativamente seu custo, com as implicações positivas resumidas acima. E proporcionaria condições muito mais propícias para o governo cumprir seus objetivos de campanha.

Há um aspecto dessa questão que merece ser destacado: para qualquer governo, um tratamento mais favorável para o setor financeiro em relação a todos os outros setores da sociedade é difícil de ser defendido. Mas é muito mais difícil de justificar para o governo Lula, que foi eleito como representante da esperança de mudar o Brasil, tornando-o antes de tudo um país mais justo para a maioria dos brasileiros.

Odilon Guedes é mestre em economia pela PUC-SP, professor do Departamento de Economia das Faculdades Oswaldo Cruz e vereador (PT-SP)

João Machado é doutor em economia pela USP e professor do Departamento de Economia da PUC-SP