Política

Mais do que nunca é hora de ler Edward W. Said

Mais do que nunca é hora de ler Edward W. Said (falecido em 25 de setembro), palestino de nascença e norte-americano por naturalização: ajuda-nos a pensar os males que assolam o globo, a partir do ressurgimento dos desígnios imperiais dos Estados Unidos, incontrastados desde o fim da Guerra Fria. Entre eles os fundamentalismos do momento – inclusive o fundamentalismo do mercado, é bom lembrar –, o conflito Palestina–Israel, as invasões do Afeganistão e do Iraque, para só falar dos principais. O leitor brasileiro acaba de ser brindado simultaneamente com dois de seus livros, dos vinte que já escreveu, raros dos quais aqui traduzidos. Reflexões sobre o Exílio e Outros Ensaios traz trabalhos mais longos e de maior amplitude, centrados em literatura e produção teórica. Cultura e Política reúne artigos de jornal, diretamente oriundos de uma pena ativista.

Professor de literatura comparada na Universidade Columbia, em Nova York, foi um lutador da causa palestina, de cujo conselho nacional fez parte. Suas convicções tornam-no um modelo de intelectual militante. Ficou mais conhecido entre nós por Orientalismo (Companhia das Letras, 2001), no qual, ao examinar as várias maneiras pelas quais os europeus e norte-americanos há tempos acumulam representações sobre o planeta a Leste, vai esmiuçando o quanto são preconceituosas, oscilando entre o exotismo e o denegrimento. Aquilo que se conhece como “o Oriente” é o Outro que o Ocidente construiu, para nele se espelhar em negativo.

Cultura e Política focaliza a questão palestina, em seus desdobramentos. Seja para examinar o papel determinante dos Estados Unidos, que, gendarmes do petróleo, armam em Israel uma guarda avançada no Oriente Médio, enquanto mantêm em casa um baluarte do sionismo. Seja extraindo ilações para os direitos humanos na atualidade, época de migrações generalizadas tanto quanto de contingentes cada vez maiores de refugiados, banidos e errantes. Oferece um apanhado do litígio entre Israel e palestinos, bem como análises circunscritas aos principais incidentes que o pontuaram nesta década. Datando dos últimos anos, os artigos saíram em sua maioria no jornal Al-Ahram, do Cairo.

Reflexões sobre o Exílio e Outros Ensaios tem alcance diverso. Vários textos versam sobre literatura, e não por acaso, dada a profissão do autor. Dois deles exploram afinidades com um confrade de desenraizamento, Joseph Conrad, a cuja obra ficcional Edward W. Said dedicou seu primeiro livro. Outros tratam de um crítico literário, Lukács, e de Vico, de Foucault, de Hobsbawm. Há uns poucos sobre música, campo no qual assinava uma coluna no periódico norte-americano de esquerda The Nation. Os que falam de dança do ventre ou dos filmes de Tarzã pareceriam triviais, se não se tornassem estimulantes por conter um olhar novo, em escrutínio alheio ao Hemisfério Norte. Acrescentam-se anotações sobre o romance árabe moderno, bem como reminiscências da juventude vivida no Cairo e em Alexandria. Na linha de ataque, o autor disseca a obra tanto de Samuel Huntington, insigne ideólogo do “choque de civilizações”, quanto do prêmio Nobel V.S. Naipaul, epítome do colonizado a serviço do colonizador, notável pela diligência em desancar pobres e não-brancos.

A porção central, juntando o ensaio do título a mais alguns afins, aborda a posição do intelectual no presente, quando deve entrincheirar-se na resistência ao império e ao racismo, mas tratando de preservar para si um certo grau de marginalidade, ou uma distância enviesada com relação à corrente hegemônica da cultura. O autor não se furtou à meditação sobre si mesmo e sua circunstância, impregnando a teoria com a experiência. Nesta vertente, fornece uma análise da “crise da representação” nas ciências humanas, que há pouco se descobriram parceiras da expansão colonial. Ao abordar o nacionalismo do século XX, destacou sua correlação com o deslocamento de massas humanas, a perda de raízes podendo suscitar um movimento contrário, externo ou interno, às vezes ambos. E terminou assim por colocar a condição de expatriado no cerne da modernidade.

A cavaleiro de duas civilizações, o autor operou em registro crítico que o domínio de ambas possibilitou. Com isso, os trabalhos de Edward W. Said alçam-no à categoria de um dos mais influentes pensadores das implicações políticas da cultura em nosso tempo.

Walnice Nogueira Galvão é crítica literária e integra o Conselho de Redação de Teoria e Debate