Economia

A Economia Popular é peça importante para melhorar o perfil dos fundamentos macroeconômicos do país

Discorrer sobre a Economia Popular é uma tarefa complexa. Antes de tudo porque é preciso cuidar de preconceitos e, portanto, para se fazer entender é necessário convencer o leitor a se abrir para algo novo, e todos e todas sabem que a tendência é resistir. Depois porque é preciso enfrentar a racionalidade da economia a partir de uma outra, e a cultura ocidental deixou cada um de nós extremamente apaixonado por nossas razões. E, por fim, por se tratar de matéria econômica de grande expressão, mas ainda com poucos números. Vamos ao desafio.

É comum se referir à Economia Popular genericamente como economia “informal”. Mas há quem a conceba como a economia “dos pobres”. Há ainda quem a ela se refira como economia “subterrânea” e, outros, como economia “invisível”.

De fato, o preconceito se alimenta do desconhecimento sobre algo ou alguém, e como isso, em geral, incomoda, fica mais fácil destratá-lo, torná-lo menor, insignificante, “micro”, sem importância, para evitar ter de enxergá-lo, reconhecê-lo e considerá-lo, o que levaria a ter de respeitá-lo – e aí, para alguns, já é demais.

A idéia de economia “informal” tem como referência a legalidade. Toda atividade econômica que não é registrada na Junta Comercial, que não tem CNPJ, é informal. E daí se chegam a conclusões como “a economia informal não contribui com a sociedade porque não paga impostos”. Ora, mas qual é a concepção econômica de quem fez a lei? Será que não é a “formalidade” estabelecida que precisa ser reformatada para ser capaz de dar conta da realidade? Quanto ao raciocínio de que ela não paga impostos, também se trata de uma distorção. Não é preciso ser especialista para saber que a única atividade econômica que paga imposto é o consumo, não há outra, já que para o produtor, todo custo, incluindo o tributário, entra na planilha de composição dos preços ao consumidor final. Bem, salário não vale porque, na verdade, já é bitributação – além de pagar no consumo, o trabalhador é descontado na fonte. Mas esse é outro debate. O que nos cabe aqui é dizer que quando uma costureira “informal” trabalha, além de gerar a própria ocupação econômica, pode gerar a de outros. Ao mesmo tempo, movimenta o consumo de seus insumos e o de seus produtos por terceiros, o que movimenta todas as cadeias comerciais “formais” com as quais seu negócio interage, reforçando a indústria, em última instância. Ou seja, o tratamento como “informal” não permite que se enxergue a Economia Popular como parte importante da economia, como peça estratégica para a solução do conjunto da problemática do desenvolvimento, desde que percebida adequadamente.

A idéia de que a Economia Popular é a economia “dos pobres”, embora esteja em parte correta por se tratar da economia do dia-a-dia da grande maio­ria das pessoas, reduz a percepção a algo que precisa ser superado, ligado ao atraso, à mera subsistência, enfim, que não gera riqueza. E aí está um ponto central, porque não há economia que não gere riqueza, já que todo lucro está na agregação de valor e o único fator de produção capaz de fazer isso é o trabalho, atributo de todo e qualquer ser humano economicamente ativo. Ou alguém tem dúvidas sobre a fonte popular da riqueza das grandes redes de supermercados, farmácias, magazines, shopping centers e, por tabela, de boa parte da indústria? A questão a enfrentar é a da concentração de renda e riqueza, e aí a Economia Popular cumpre um papel fundamental porque sua riqueza é fortemente gerada na circulação, o que revela um caráter intrinsecamente distributivo.

As denominações “subterrânea” ou até “invisível”, para qualificar aquilo que salta aos olhos nas ruas, revelam, na verdade, a incompetência da econometria oficial, incapaz de aferir em números a dinâmica complexa da Economia Popular. As estatísticas oficiais não conseguem apurar e agregar os valores movimentados nas feiras livres ou entre camelôs, por exemplo, e ninguém tem dúvidas da importância do significado econômico dessas atividades, tanto pelo que movimentam de mercadorias quanto pelas ocupações que geram. Aqui, não faltaria quem acusasse: “Sim, ocupações em trabalhos precários, sem direitos…”. É verdade. Certa vez tentei convencer um amigo “flanelinha”, que cuidava dos carros em frente ao Banco do Povo de Belém, a vir trabalhar comigo com carteira assinada. Depois de eu muito insistir, ele se compadeceu de minha ignorância econômica e me explicou, com paciência, que tinha um negócio que lhe rendia por mês duas vezes e meia mais do que o salário mínimo que eu lhe oferecia. Ou seja, a precarização precisa ser percebida para além do marco legal. O salário mínimo é precário. As condições de trabalho da grande maioria são precárias, independentemente de ter carteira assinada ou não. Acontece que, se não tem carteira assinada, se não tem CNPJ, não há como contabilizar a movimentação da atividade econômica – e aí, em vez de aperfeiçoar a tecnologia e a metodologia do sistema para captar a movimentação de milhões de pessoas e bilhões de reais, é mais fácil dizer que a realidade é que está errada. Se o quadro é feio, em vez de pegar os pincéis e as tintas para melhorá-lo, fecham-se os olhos.

A conseqüência dramática é a de todo preconceito: transformar a vítima em réu. A recusa em enxergar a Economia Popular como uma instância própria da economia é a recusa dos direitos de milhões de pessoas que praticam uma economia que exige uma nova abordagem tanto pela via do capital quanto, e principalmente, pela do trabalho, até porque, nesse contexto, quase sempre estão fundidos em um amálgama econômico em que a maioria dos sujeitos também se funde em trabalhador/empreendedor. Só uma abordagem inovadora resgatará milhões da marginalidade e, ao mesmo tempo, os colocará em sinergia com a construção de um novo modelo de desenvolvimento capaz de gerar trabalho, emprego e renda para todos e todas.

Proposta de um novo conceito

Propomos compreender a economia a partir de sua unidade atômica, a troca. A troca é um fenômeno humano – que preside inclusive a relação com o meio ambiente –, um processo baseado na identificação de objetivos comuns ou complementares entre as partes e na confiança de que serão satisfeitos. Ou seja, comprar e vender significam a mesma coisa: trocar. Apenas se chama “compra” quando se troca dinheiro por um objeto ou serviço. Se a troca é de um objeto ou serviço por dinheiro, aí dizem que houve uma “venda”. Em última instância, a troca envolve o mesmo objetivo dos dois lados: a melhoria da qualidade de vida – claro que segundo as referências de cada um. Além disso, se uma das partes não confiar que seu objetivo será satisfeito, a troca não ocorre. Daí propormos concluir que a motivação original da interação econômica é a solidariedade: objetivos comuns e confiança.

Acontece que essa motivação original sofre distorções à medida que as relações humanas deixam de ser livres para se basear em condições de dominação. O monopólio e seus derivados são exemplos de relações econômicas que distorcem o fundamento solidário, obrigando uma das partes a uma condição sem o direito de escolha.

Na Economia Popular, apesar de o conjunto do sistema econômico ser hegemonizado por complexas situações de dominação, o principal capital é a credibilidade, em função de quase sempre se tratar de mercados concorrentes. Na Economia Popular a solidariedade é uma forte tendência intrínseca.

Afinal, do que estamos tratando? Estamos tratando de um segmento da economia caracterizado, entre outros aspectos, por negócios que se estruturam a partir do atendimento direto das demandas da população e estabelecem giro local – movimentando majoritariamente seus insumos e produtos em determinado território e corroborando o dinamismo que alimenta as diversas cadeias do arranjo produtivo local, além de se comunicarem com cadeias que extrapolam esse arranjo. Aqui, entendemos por “negócios” as diversas formas de combinação entre capital e trabalho, que, no caso da Economia Popular, quase sempre é hegemonizada pelo trabalho.

Se observarmos as diferentes cadeias produtivas que atendem a população de um bairro, por exemplo, poderemos ver que há uma interação entre a feira, a padaria, a mercearia, a danceteria, a papelaria, a loja de tecidos, a loja de móveis e eletrodomésticos, a costureira, o mecânico, o médico, o professor, a cabeleireira, o taxista, o advogado, a cooperativa etc., todos empreendedores populares que proporcionam, além da própria inserção na economia, a de muitos outros. Geram uma massa de renda e salários que alimenta o consumo no mesmo bairro, tanto no que diz respeito à parte dos insumos produtivos – já que outra parte importante interage com outros segmentos econômicos, incluindo a indústria e a agricultura –, quanto em relação aos produtos e serviços ofertados.

Estamos tratando de cerca de 20 milhões de brasileiros e brasileiras definidos pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) como “trabalhadores por conta própria”, “micro e pequenos empresários”. Segundo o Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae), estamos tratando do segmento que gera 80% dos postos de trabalho do país – e 95% dos novos postos de trabalho – e movimenta algo em torno de 30% do Produto Interno Bruto do Brasil. Portanto, um segmento vital para o conjunto da economia que precisa ser tratado adequadamente para que suas potencialidades sejam otimizadas, cumprindo um papel estratégico para a construção de um novo modelo de desenvolvimento que seja justo, solidário e sustentável. Modelo em que o significado de “mercado” se confunda com o de “sociedade”, não se restringindo mais apenas aos que “podem pagar”. Em que a idéia de “riqueza” esteja associada a “distribuição”, e não a “acumulação”. Enfim, em que o “trabalho” presida o “capital” – o que coloca a Economia Popular como segmento central para a construção do projeto de Economia Solidária como solução global.

Um novo modelo de desenvolvimento

Para os que precisam enxergar fora o que é importante no Brasil, na França não é permitido que grandes redes de supermercados se instalem nos grandes centros urbanos, para que as mercea­rias, padarias, quitandas e feiras possam cumprir seu papel. Claro que com esse e outros apoios, todos oferecem serviços e produtos de alta qualidade, bem diferente de nossa realidade. Nos Estados Unidos o empreendedorismo é visceralmente estimulado e totalmente desburocratizado, para que a economia interna cumpra o papel de lastro principal que lhes confira soberania política. Na Lombardia, na Itália, foram as políticas de apoio aos empreendimentos populares que alavancaram a economia da região que hoje é símbolo de sucesso para todo o mundo. O “enigma chinês” também se explica por aí. Ou seja, não há como ser forte, soberano e sustentável se o desenvolvimento não vier “de baixo para cima” e “de dentro para fora”, exatamente o inverso do modelo que ainda nos hegemoniza.

A Economia Popular urbana e rural, trabalhada adequadamente em sinergia com outros segmentos, poderá contribuir com as exportações, particularmente com a margem de excedentes, melhorando o perfil da balança de pagamentos. Combinada com o fortalecimento do mercado interno, robustecerá a moeda, equilibrando o câmbio. Como seu incremento traz um sincronismo entre a geração de empregos e produtos/serviços, tende a estabelecer uma relação entre oferta e demanda que proporcione o equilíbrio dos preços, evitando a inflação. Portanto, a Economia Popular é uma das peças importantes para melhorar o perfil dos fundamentos macroeconômicos do país.

No entanto, é preciso destacar que a Economia Popular se diferencia dos outros segmentos da economia por estabelecer a possibilidade mais nítida de inverter a ordem entre o econômico e o social, já que não há solução social se não for econômica. Está diretamente ligada à segurança alimentar da população, ao usufruto de direitos básicos com inserção econômica do cidadão ou cidadã, a viver com dignidade, à melhoria da qualidade de vida.

Estratégia de fortalecimento

 

  • O desafio da solidariedade. O resgate da cultura da solidariedade, que não se confunda com caridade, é central para construirmos as condições fundamentais do novo modelo de desenvolvimento, estimulando os formatos associativos entre os empreendedores populares, como cooperativas, associações, fóruns, conselhos, grupos de compra conjunta, clubes de troca etc.
  • O desafio do financiamento. A constituição de um sistema de finanças solidárias, que combine diversos produtos financeiros dirigidos aos empreendedores populares, como crédito popular/microcrédito, poupança, seguro, cartão de crédito, troca de cheque etc., é um instrumento indispensável, que deve vir umbilicalmente associado à formação e à organização dos empreendedores populares.
  • O desafio da ciência e da tecnologia. É preciso investir em pesquisa que gere tecnologias adequadas à natureza e à escala dos negócios populares, para que os produtos e serviços do segmento ganhem qualidade e competitividade.
  • O desafio do marketing. A adaptação do instrumental mercadológico também é fundamental para que se tenham parâmetros científicos para dialogar com a cultura de consumo, inserindo novos paradigmas culturais e éticos.
  • O desafio do desenvolvimento local. A identificação de cadeias e a compreensão da interação destas em arranjos econômicos locais precisam ser desenvolvidas através de metodologias que considerem o empreendedor popular como protagonista do processo organizativo econômico e social.

João Cláudio Tupinambá Arroyo, ex-coordenador do Banco do Povo de Belém, é chefe de gabinete da Agência de Desenvolvimento da Amazônia, membro do Conselho Curador da Fundação Perseu Abramo e do Fórum Nacional de Economia Solidária