Nacional

A política ambiental ainda não foi incorporada ao núcleo de tomada de decisões do governo. O sistema é centralizado, as bancadas não são devidamente ouvidas e a obsessão de sanear a economia e promover o desenvolvimento transforma o demais em acessório

Afinal, o que se passa na seara ecológica do PT? O governo teve seu DNA alterado? A ministra Marina Silva está cercada? Fernando Gabeira é o único verde autêntico do país? Os ambientalistas do governo são tratados como uma ONG na Esplanada dos Ministérios? Para a mídia, a vertente verde do Planalto acinzentou-se, os ecopetistas estão acuados e o núcleo duro do governo não dá a mínima para as bandeiras ambientais.

O PT e seus aliados apresentaram programa fundado na transversalidade, no qual as políticas ambientais perpassam diferentes órgãos governamentais. A implantação de energias limpas depende da interface com o Ministério de Minas e Energia (MME), com destaque para a priorização de energias alternativas no estratégico programa da inclusão energética de 11 milhões de brasileiros. Claro está que do programa à ação existe um longo e complexo caminho, enfrentando lobbies, redirecionando acordos e alianças com os geradores de energia limpa e descentralizada, azeitando a operacionalização de programas, garantindo créditos oficiais, prestigiando os saberes acumulados na área, Independentemente de terem carteira do PT. Falta amadurecer competência até para aplicar as centenas de milhões de reais resultantes da obrigação legal de os empreendimentos energéticos destinarem 1% do investimento total a energia limpa. Domar a máquina, criar rotinas, avaliar, decidir, implantar são questões difíceis, que dependem de direção política firme e de operadores experientes.

Nos nove meses do governo Benedita (2002), nós cassamos a licença de uma grande usina de carvão no Rio de Janeiro, enfrentando setores do próprio PT e do governo. Uma empresa italiana havia licenciado um projeto que geraria emissões atmosféricas tóxicas e gases do efeito estufa três vezes acima do máximo admitido na Itália para esses parâmetros. Licenciamos, no entanto, seis termelétricas a gás, aumentando restrições, exigências e contrapartidas. Aplicar estes princípios em nível nacional, com pífio crescimento em 2003 (felizmente os indicadores para 2004 são animadores) é muito difícil, sobretudo nas instâncias decisórias do governo, nas quais o Ministério do Meio Ambiente (MMA) ainda pesa muito menos do que deveria.

A questão nuclear é simbólica para os ambientalistas de todo o mundo. É uma energia cara, centralizada, há riscos realmente pequenos, mas de acidentes de enormes proporções, e até hoje não se tem a menor idéia do que fazer com o lixo atômico, ativo por 40 mil anos. Países sem sol o ano todo, sem o imenso solo que temos para gerar biomassa, sem os maiores rios do planeta e agora as enormes reservas de gás natural, ainda assim optaram por alternativas mais seguras, democráticas e descentralizadas. O PT, como o maior partido nacional, convive com diferentes posições sobre este e outros temas de realce. Temos parlamentares abertamente apoiados pelo lobby nuclear, incluindo as empreiteiras que ganham com a construção de usinas. Vários sindicalistas da área que defendem esta opção como garantia e ampliação dos empregos do setor. Esta é uma questão séria, que se repete em outras frentes, e para todas devemos amadurecer políticas específicas. Vejamos o caso do asbesto/amianto, comprovadamente cancerígeno. Ele mata milhares de trabalhadores com asbestose e mesotelioma, devido à inalação do pó do asbesto nas minas, nas fábricas de fibrocimento, na construção civil, em estaleiros e fábricas de lonas de freio. Aprovamos leis para a progressiva substituição do amianto, para o qual temos alternativas minerais – a mica, fibras vegetais, como a juta e o bagaço de cana, e fibras sintéticas, derivadas do polietileno. O lobby pró-amianto vem de Goiás, onde há a única mina em atividade no país, e de certos setores sindicais minoritários. Neste caso há uma aliança da CUT e da Força Sindical pelo banimento do amianto. Uma decisão firme do governo deveria ser complementada com o apoio do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) ou de um programa governamental para reciclar atividades e empregos na região da mina, como se fez nos 42 países onde o amianto foi banido. Um governo centralizado, com recursos de investimentos contingenciados e precisando da boa vontade de governadores para formar maioria, opta por não enfrentar essas questões, pelo menos por agora. Notem que tanto neste caso quanto na questão nuclear (que foi inovadora há cinqüenta anos e hoje é antiquada), bem como em relação ao carvão e ao mercúrio, os ambientalistas, ao lado de cientistas, defendem tecnologias limpas e modernas, que minimizam impactos, custos, consumo energético, reciclam e defendem a saúde. Aí nem sequer tentam estigmatizar os ecologistas, como fazem no caso dos organismos geneticamente modificados (OGM), como adversários do progresso e dos pesquisadores.

A eliminação de queimadas e de agrotóxicos cancerígenos exige sincronização com o Ministério da Agricultura. Ainda permitimos entre nós o uso de pesticidas proibidos nos países de origem das multinacionais que os vendem para combater pragas para as quais a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) desenvolveu combate biológico eficiente. Apenas na Região Sul e em São Paulo existem cooperativas com força e consciência para reciclar suas práticas e usar a tecnologia da nossa Embrapa. Mesmo aí este processo ainda é incipiente. Em todo o resto do país os agricultores (salvo honrosas exceções) estão entregues aos intermediários, que em operações casadas condicionam suas compras à de biocidas. O desafio é intensificar os estudos epidemiológicos, que demonstram os nexos causais entre os venenos e as doenças nos trabalhadores rurais, disponibilizar as alternativas através dos serviços de extensão rural e ter peito para proibir os produtos comprovadamente carcinogênicos e mutagênicos, já substituídos nos países desenvolvidos. Governo sem maioria segura para aprovar reformas constitucionais tem sérios problemas para enfrentar lobbies organizados que exercem hegemonia em bancadas numerosas, como é o caso da bancada ruralista. O governo vai bem com a extensão maciça e prioritária do crédito à agricultura familiar. O MMA organiza com o Ibama, ONGs e agricultores intensa campanha antiqueimadas. Mas, sem alternativas disponíveis, extensão e fiscalização, os resultados demoram a aparecer.

Um ponto prometido por Lula na campanha que teria impacto positivo no meio ambiente e no emprego é o completo redirecionamento do Pró-Álcool. Hoje esse programa ainda é baseado preponderantemente na cana-de-açúcar, nas grandes usinas, na monocultura, com queimadas e bóias-frias. O programa do PT defende produção do álcool também da mandioca, do sorgo etc., mini e médias usinas, além das grandes, cooperativas e policulturas, emprego o ano todo, e não só na safra da cana, reaproveitamento do vinhoto para gerar biogás e biofertilizante. Quem está cuidando disso no governo? Deveríamos ter um grupo de alto nível, diretamente ligado ao presidente, para monitorar a execução de pontos estratégicos do programa que nos conduziu ao governo.

A adoção de tecnologias que preservem ecossistemas e a saúde do trabalhador supõe programas com o Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior e exigências ambientais do BNDES para financiamentos. Nos últimos dez anos o BNDES financiou centenas de projetos de prefeituras para a construção de aterros sanitários e usinas de lixo. A quantos foi exigida a geração complementar de energia a partir do gás metano do lixo? A quais foi determinado o apoio às cooperativas de catadores? A nenhum! Nesse período o BNDES financiou milhares de empreendimentos industriais. A quantos foram exigidas a co-geração de energia e a eficiência energética? A quais foi condicionado o crédito à adoção de tecnologia limpa, não agressiva? A nenhum! O BNDES no governo Lula, com o professor da UFRJ Carlos Lessa à frente, tem a intenção clara de adotar o programa do PT. A ministra Marina Silva manteve reuniões públicas com Carlos Lessa, que garantiu empenho do maior banco público de financiamento da América Latina aos objetivos do programa ambiental. A realidade é dura. Entre calotes de multinacionais da energia, programa bilionário de apoio às distribuidoras, carências emergenciais de investimentos em infra-estrutura, necessidade de apoio às empresas aéreas, às empresas da mídia etc., a quantas anda realmente o compromisso ambiental do BNDES? Houve inclusive financiamentos no mínimo duvidosos para a Monsanto (a do herbicida Roundup e da soja transgênica) e para a Aracruz Celulose, que causou uma autêntica lambança social e ambiental no Espírito Santo. Quanto a esta tragédia, conhecida como Deserto Verde (a monocultura de eucalipto monopoliza a água e expulsa a pequena produção de alimentos), aprovamos recentemente no Rio de Janeiro, com o apoio da CUT, da Fase, de ONGs ambientalistas, uma lei que condiciona a implantação de monoculturas (de eucaliptos ou outras) à prévia realização do zoneamento ecológico econômico, ao respeito ao distanciamento de rios e de sedes de municípios, à não-substituição da produção de alimentos e da agricultura familiar. Marina Silva e Cláudio Langone preparam projeto nesse sentido para todo o país.

A educação ambiental transformadora, dentro e fora das escolas, trabalhando com famílias, criando centros de reciclagem, com as comunidades escolares adotando lagoas e encostas, pressupõe parceria com o Ministério da Educação (MEC). Marina reuniu-se várias vezes com Cristovam Buarque, e ambos anunciaram essa via. O PT sempre foi forte entre os professores e estudantes. A implantação da educação ambiental transformadora em centenas de municípios cria pólos avançados de consciência ambiental e é condição para programas de economia de água, de energia, de prevenção a balões e queimadas etc. Com a enorme carência de recursos humanos e materiais, quantas pessoas qualificadas no MEC estão exclusivamente por conta deste revolucionário programa? Ao que sabemos, apenas duas...

Tratamento da água, do lixo e o saneamento só avançam com interação com o Ministério das Cidades e com o da Integração Nacional. Até porque as metrópoles concentram a síntese da degradação da ecologia urbana e humana, produto de desequilíbrios regionais e sociais. O programa Sede Zero é uma necessidade, sobretudo no semi-árido, mas não substitui uma campanha nacional integrada pela recuperação dos recursos hídricos. Foram aparentemente superados os entraves iniciais do MMA com a Agência Nacional das Águas (ANA), mas a cobrança pelo uso da água não acontece e não foi assegurado que os recursos arrecadados sejam realmente aplicados nas bacias hidrográficas que os geraram. Sem tal garantia haverá boicote à cobrança.

A transposição do Rio São Francisco é anunciada como a grande obra do governo Lula. Terá enorme impacto ambiental e social, em todos os sentidos. Dizer que cuidados ambientais serão tomados é muito pouco (alguém em sã consciência diria que eles não serão tomados?). No início o MMA foi escanteado, mas houve uma reação positiva e agora há um compromisso que a questão da recuperação ambiental do Velho Chico e de suas matas protetoras é precondição e o ritmo e o formato dependerão de posicionamento do MMA, que já optou pela vertente Leste, até Pernambuco, obra de menor impacto e menor custo. Resta ver como esse compromisso será mantido face às pressões de empreiteiras e das bancadas dos demais estados do Nordeste.

O saneamento ambiental é a grande aposta e a grande esperança para 2004. Pode gerar centenas de milhares de empregos, melhorar as condições sanitárias, despoluir rios e lagoas. Que peso o MMA terá na orientação do programa? Quais serão as tecnologias adotadas, o nível de tratamento, o que se fará com o lodo das estações? Trata-se de uma área congestionada, envolvendo pressões como as que denunciamos no Programa de Despoluição da Baía de Guanabara (PDBG), em que se construíram estações sem a rede de esgotos, houve superfaturamento, falta de licitações, empreiteiras contrataram subempreiteiras de terceira categoria, obras tiveram de ser refeitas. Como montar um sistema transparente e eficiente e colocar a vertente ambiental no comando da pressão obreirista? Não será nada fácil.

Por quê, aos olhos da mídia e da sociedade, nosso programa ambiental não decola? Quais são as barreiras e como corrigir a rota?

A base de apoio para esse programa ainda é frágil: a posição pró-nuclear tem o apoio das empreiteiras e presença no Congresso, e o governo oscila, mesmo sabendo que não há recursos para Angra 3 e que, pela Constituição, uma usina nuclear não pode ser gerida por capitais privados. No Congresso predomina o economicismo, do crescimento a qualquer custo, que trata as exigências ambientais como entrave ao progresso (coisa dos anos 60). O corporativismo está presente no lobby do gatilho, que tem eleitores nas fábricas de armamentos, e nos que apoiaram a inaceitável invasão da Estrada do Colono, no Parque Nacional de Iguaçu (inclusive prefeitos e deputados do PT, que foram insuficientemente criticados), que esteve ameaçado de perder, por esta razão, seu título de Patrimônio da Humanidade. Bancadas de alguns estados do Norte sustentam que há poucos índios para muita terra e travam a demarcação de reservas das Nações Indígenas, garantidas pela Constituição e dívida histórica com o povo que foi dizimado em nome do progresso. O agronegócio, necessário para gerar saldos na balança e criar empregos, é forte no Parlamento e no governo e tem como aliada a bancada ruralista, que defende os transgênicos sem licenciamento ambiental. O rigor que exigem contra as ocupações do MST torna-se ternura ao tratar do contrabando das sementes da Monsanto.

A política ambiental ainda não foi incorporada ao núcleo de tomada de decisões estratégicas do governo! O sistema é extremamente centralizado, as bancadas do PT e aliados não são devidamente ouvidas e a obsessão (correta) de sanear a economia e promover o desenvolvimento transforma o demais em acessório. Houve vitórias exemplares, como a suspensão da licitação de lotes para prospecção de petróleo em torno do Arquipélago dos Abrolhos, ofuscada pelo insano decreto que autorizou a importação de pneus usados do Mercosul. Foi um avanço Lula e Marina proporem aos governadores da Amazônia um plano de desenvolvimento sustentável, extrativismo e indústrias não-poluentes, no lugar da tradicional política de obrinhas pontuais, mas prevaleceu a inquietação com o atraso da homologação da reserva indígena da Raposa Serra do Sol, em Roraima, que depende do Ministério da Justiça. A saída do companheiro Gabeira é uma das conseqüências dos desencontros da política ambiental. Já que não pôde ser evitada, que sirva como alerta da urgência ambiental. Um grupo parlamentar europeu acenou com a suspensão de verbas para o Brasil, em face da não-priorização das metas ecológicas. Na reunião de que participamos com José Dirceu, Marina Silva, Cláudio Langone, José Genoino e o deputado João Alfredo (PT-CE), o governo prometeu cancelar o decreto dos pneus e homologar a reserva Raposa Serra do Sol neste ano. Genoino concordou com a não-construção de Angra 3 e Dirceu garantiu a prioridade do governo para a aprovação da lei de defesa da Mata Atlântica, engavetada há onze anos por pressão da bancada ruralista (esta está sendo cumprida). Urgem ações enérgicas, simbólicas, práticas, articuladas, que transformem progressivamente o modelo predatório e excludente. Os ambientalistas devem mobilizar a população e as consciências, ganhar aliados, fundamentar programas estratégicos, como o “Água limpa para todos”, que deve ser o Fome Zero da ecologia. E o nosso governo, que enfrentou com sucesso a inflação, os juros e o risco Brasil, deve vestir a camisa da ecologia. Porque não são os programas ecológicos que afetam a criação de empregos. A poluição dos mares é que tira o Emprego dos pescadores, as queimadas e o desmatamento acentuam o êxodo, a poluição das praias prejudica o turismo. Os grandes programas de recuperação e saneamento ambiental de bacias hidrográficas, as tecnologias limpas, a aqüicultura, o ecoturismo e a agricultura familiar e orgânica podem gerar os milhões de empregos que prometemos aos brasileiros.

Carlos Minc é deputado estadual e líder da bancada do PT na Assembléia Legislativa do Rio de Janeiro, professor na UFRJ, autor de Ecologia e Cidadania, entre outros livros, e de 124 leis, entre as quais as que aboliram o chumbo da gasolina, o amianto, o mercúrio, e de recursos hídricos, reciclagem e educação ambiental