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Entrevista com Luiz Dulci, ministro-chefe da Secretaria-Geral da Presidência

Luiz Dulci, ministro-chefe da Secretaria-Geral da Presidência da República, define o primeiro ano do governo Lula como um período de sacrifícios e reconstrução, mas também de importantes conquistas

Após um ano de mandato do governo Lula, que avaliação geral pode ser feita?
Os principais objetivos do governo para o primeiro ano foram alcançados, sobretudo se levarmos em conta a situação em que o país se encontrava. Antes de mais nada, é preciso dizer que derrotamos o catastrofismo tucano e das elites conservadoras. Conseguimos recuperar a estabilidade econômica que havia sido perdida no governo anterior. Construímos a base política e parlamentar imprescindível para sustentar o governo e aprovar, no Congresso, reformas justas e necessárias. Estabelecemos, já neste primeiro ano, uma relação política fortemente inovadora entre governo e sociedade civil, especialmente com os movimentos populares. Apesar de todas as limitações, conseguimos lançar novos programas sociais, mais justos e abrangentes. Demos início, por exemplo, ao Fome Zero,que já atende 5 milhões de pessoas, unificamos as transferências de renda no Bolsa-Família, criamos o Primeiro Emprego e o Brasil Alfabetizado. Por fim, implantamos uma nova política externa, ativa e criativa, por meio da qual o Brasil resgatou sua soberania e tornou-se um protagonista de mudanças importantes na vida internacional. Não há por que negar: foi um período de sacrifícios, sim, mas de reconstrução. Agora temos as bases para avançar nas transformações sociais, que constituem a razão de ser do nosso governo.

Por que um governo liderado pelo Partido dos Trabalhadores pode afirmar que a política econômica foi bem-sucedida num ano sem crescimento?
Para avaliar corretamente a importância do que foi feito, é preciso recordar a situação que Lula herdou. A Argentina tinha quebrado, com as terríveis conseqüências sociais que conhecemos, e o Brasil passou perigosamente próximo disso. A economia brasileira tinha chegado ao limite da vulnerabilidade externa. Fernando Henrique, em oito anos, permitiu que a dívida pública saltasse de 23% para 63% do PIB! Os títulos da dívida haviam atingido o fundo do poço, vendidos a meros 38% de seu valor de face. As linhas internacionais de crédito, vitais para nossas exportações, foram reduzidas a zero. O dólar ultrapassou os 4 reais e a inflação anual projetada já era de 40%, à beira do descontrole. A confiança interna e externa em nossa economia era quase nenhuma. Tudo isso agravado pelo terrorismo de José Serra. Em conseqüência, o chamado risco país atingiu o absurdo patamar de 2.400 pontos. Acho, sinceramente, que alguns companheiros, no partido e no meio intelectual, subestimaram e continuam subestimando o peso terrível dessa herança a um só tempo estrutural e conjuntural. Subestimam a gravidade daquele quadro e seus riscos para o país e para o governo Lula. Acabam compartilhando, involuntariamente, a auto-avaliação dos tucanos e das elites conservadoras sobre o saldo histórico do ciclo neoliberal. Os tucanos diziam que o Brasil estava arrumadinho e pronto para crescer, quando na verdade estava prestes a quebrar.

Os instrumentos utilizados para enfrentar essa situação, principalmente os de política monetária, não foram restritivos demais? Não retardaram o crescimento?
Lula já havia advertido, em junho de 2002, na Carta ao Povo Brasileiro, que, antes de adotarmos uma política de crescimento, seria necessário superar essa tremenda crise econômico-financeira. Os instrumentos utilizados para debelar a crise foram os disponíveis, que não são muitos, e os resultados, em minha opinião, são consistentes. A inflação, que penaliza principalmente os mais pobres, foi controlada, as linhas de crédito voltaram e outras foram abertas, os títulos públicos não só recuperaram seu valor como atingiram cotação recorde, o risco país caiu de 2.400 para 500 pontos, o que não ocorria desde 1995. Reorganizamos a atividade econômica e estamos reduzindo, de maneira sustentada, as taxas reais de juros, além de o câmbio ter encontrado nível adequado. Não teríamos alcançado esses resultados, que hoje permitem à economia voltar a crescer, se tivéssemos agido de modo voluntarista, ignorando os desafios concretos e palpáveis daquela conjuntura. Se tivéssemos, por exemplo, promovido uma drástica redução dos juros básicos em janeiro ou fevereiro, a inflação poderia ter explodido, e o presidente Lula seria obrigado a elevar novamente os juros em março ou abril. Se a inflação mensal, que já era de 2,5% em janeiro, chegasse a 5% em maio, Lula não perderia apenas o controle da economia, mas, muito provavelmente, também a governabilidade política.

Poderia ser um governo derrotado no nascedouro, sem chance de executar o seu projeto. Nesse caso, desperdiçaríamos a oportunidade histórica de mudar o país sob a liderança do PT. Eu, pessoalmente, não tenho nenhuma dúvida: os sacrifícios do governo e da sociedade foram necessários à superação da crise.

Os resultados macroeconômicos vão se transformar em novos empregos?
Estamos convictos de que a economia está voltando a crescer, graças ao trabalho feito em 2003. Mas a geração de empregos, na quantidade que o país precisa, não é uma conseqüência imediata. A economia foi reativada pela ponta do consumo, mas muitos setores estavam com capacidade ociosa ou estoques elevados. Podemos dizer que as empresas pararam de demitir, o que é muito importante, e preparam-se para contratar. O que o Brasil precisa é de um novo ciclo de crescimento sustentado, como ocorreu em alguns momentos do século passado. Crescer durante quatro ou cinco anos, a taxas de 4%, 4,5%, 5% ao ano. E, além disso, será necessário adotar políticas ativas de geração de emprego, investindo para valer na micro, pequena e média empresa e em obras de saneamento e habitação popular, por exemplo, que criam mais postos de trabalho.

Você afirmou que o controle da economia era fundamental para a governabilidade política. Como o governo construiu sua base parlamentar?
Construir é uma expressão bastante adequada, porque nós não saímos das urnas com maioria parlamentar. A vitória do presidente Lula, com 53 milhões de votos, foi muito expressiva, mas a esquerda não elegeu maioria na Câmara nem no Senado. Não teríamos maioria sequer junto com os partidos que nos apoiaram no segundo turno. Dos 27 governadores eleitos em outubro, apenas três eram do PT. Contando os aliados, não chegavam a dez. O que o presidente fez? Primeiro, não aceitou chantagens de natureza alguma. Usou seu prestígio moral, social e político para dialogar com todas as forças, inclusive os adversários. Reuniu os governadores em torno das reformas. Ouviu também os prefeitos, as centrais sindicais e o Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social. Em torno de objetivos nacionais e realmente importantes para a maioria da população, incorporamos partidos de centro-esquerda e do centro à base no Congresso, neutralizando as investidas de setores da oposição e dos conservadores em geral. O governo teve sucesso em todas as votações importantes.

E a relação com a sociedade, que importância tem para o governo?
Da mesma forma que a Casa Civil acompanha permanentemente o Congresso, os governadores e prefeitos, a Secretaria-Geral coordena o diálogo político do governo com as diversas organizações da sociedade. Pela primeira vez na história o planejamento estratégico do país para os próximos anos, o PPA 2004-2007, foi elaborado em diálogo direto com a sociedade. Esse processo envolveu, em todos os estados, 2.170 entidades de trabalhadores da cidade e do campo, das igrejas, do empresariado, da juventude, movimentos de defesa do meio ambiente e do consumidor, instituições culturais, organizações de etnias, de gênero etc. Criamos o CDES e o Conselho Nacional de Segurança Alimentar. Diversos ministérios realizaram neste ano importantes conferências nacionais sobre meio ambiente, saúde, educação, turismo, pesca, direitos da infância, questões urbanas, entre outros temas de políticas públicas.

Mas qual a estratégia mais geral de governo?
Este é um governo de mudança, que só alcançará seu objetivo ampliando o espaço democrático da participação social. A governabilidade parlamentar é fundamental, mas, para realmente mudar o Brasil, é preciso ampliar o próprio conceito de governabilidade. Nunca a sociedade se mostrou tão disposta a participar na construção de um novo país. Estamos incorporando essa energia. Além disso, a História nos dá exemplos de governos liderados pela esquerda, em outros países, que fracassaram por não terem conseguido ampliar e aprofundar sua base social. Só neste primeiro ano, a equipe da Secretaria-Geral manteve mais de 700 reuniões com organizações da sociedade. Esse método inovador de governar reflete-se na agenda do próprio Lula. Ele foi o primeiro presidente a visitar a Assembléia da CNBB em Itaici, o Congresso da CUT em São Paulo, a marcha do Fórum Nacional da Reforma Agrária em Brasília. Também foi o primeiro a receber a Associação Brasileira de ONGs. Recebeu a direção da UNE, que havia dez anos não era convidada ao Planalto. Outros governos chegaram a criminalizar movimentos como o MST. O nosso, ao contrário, mantém com eles uma interlocução franca e respeitosa.

De toda forma, a área social não ficou aquém das expectativas?
É preciso reconhecer que sim, sobretudo pelas enormes dificuldades que herdamos e pelos sacrifícios que tivemos de fazer. Nosso compromisso é fazer muito mais na área social. Um presidente como Fernando Henrique podia contentar-se em ser julgado pela estabilização da moeda – e até isso ele perdeu. Nós, não. O governo Lula, ao final de quatro anos, será avaliado, pela capacidade prática de fazer o país voltar a crescer de modo sustentado, gerar empregos, distribuir renda e promover vasta inclusão social. Nesse sentido, sim, avançamos em 2003 menos do que o necessário, mas não poderia ter sido diferente, dada a correta prioridade de superar, com segurança, a crise econômico-financeira. Mas, apesar das dificuldades – tivemos de cortar 14 bilhões de reais no Orçamento da União! –, os avanços são evidentes.

O quê, por exemplo? O Fome Zero?
Não apenas, mas podemos começar por ele. Depois de enfrentar dificuldades iniciais e algumas incompreensões, o Fome Zero deslanchou. Está implantado em 1.277 municípios, principalmente no Nordeste, mas vai se ampliar para as outras regiões. São 1,2 milhão de famílias, 5 milhões de pessoas, num programa que não é só de transferência de renda e distribuição de alimentos. Milhares de cisternas domiciliares estão sendo abertas no semi-árido, sem falar na alfabetização de adultos, na organização de cooperativas e de outras ações estruturantes em todas as cidades. Nosso programa de transferência de renda, o Bolsa-Família, é mais justo e abrangente que os anteriores. Com o cadastro unificado, o custo de sua administração é menor. Além disso, reduz a dispersão dos recursos, que nem sempre chegavam aos mais pobres, desviados, inclusive, por favorecimentos políticos. Já são 3,6 milhões de famílias atendidas. O valor médio mensal da transferência foi triplicado. Serão 11 milhões de famílias até o final do governo, incluindo cerca de 3 milhões que hoje não recebem nenhum tipo de assistência. Criamos o programa Primeiro Emprego, que dará oportunidade a 300 mil jovens. O programa Brasil Alfabetizado, que já alcança 3 milhões de adultos, foi premiado pela Unesco. Nossas linhas de crédito popular se expandem a cada dia. Isso mostra que avançamos, sim, apesar de tudo, na inclusão social.

O combate à corrupção e a defesa da ética são marcas profundas na história do PT. O que o governo fez neste sentido?
Nessa matéria, como em tantas outras, devemos ter justificado orgulho do governo Lula. Não houve, em 2003, um único episódio de corrupção no governo, ao contrário do período neoliberal, marcado por escândalos nas privatizações e nas relações políticas. Só isso – a rigorosa honestidade no trato com o dinheiro público – é um passo enorme num país com as tradições do Brasil. Mas o governo não se limitou a não roubar e a não deixar roubar. Adotamos procedimentos inovadores de saneamento ético na máquina pública, que nem sempre têm a merecida visibilidade, mas são muito relevantes: revisão jurídica de contratos e licitações, busca de melhores preços nas compras públicas, economia em gastos intermediários, como passagens e serviços de apoio, sem falar nos absurdos contratos de terceirização etc. E adotamos a prática muitíssimo inovadora de auditar a aplicação do dinheiro que a União transfere aos municípios. O ministro Waldir Pires está fazendo nessa área uma revolução republicana. A escolha dos municípios fiscalizados é feita por sorteio, sem nenhuma interferência política. O resultado vai além da correção e punição dos desvios detectados. Mesmo nas administrações que ainda não foram sorteadas, já se trata com mais zelo e respeito o dinheiro do cidadão.

Outra marca histórica do PT e do presidente Lula é o compromisso com a reforma agrária. Afinal, a reforma parou ou avançou neste governo?
Lula sempre disse que, antes de fazer novos assentamentos, era preciso recuperar a capacidade produtiva daqueles já existentes, que estavam em situação lastimável. Nos últimos oito anos, milhares de famílias foram simplesmente jogadas em áreas imprestáveis para a agricultura, sem luz, sem água, sem assistência técnica, sem condições mínimas de viver e produzir. Mais de 80% das famílias que Fernando Henrique assentou não produziam nada, sobreviviam com doação de cesta básica. Por isso, decidimos lançar primeiro um vasto programa de apoio à agricultura familiar, o maior que já houve no país, de 5,4 bilhões de reais, que beneficiou 1,8 milhão de famílias, entre elas os 400 mil assentados da reforma agrária.

Lula anunciou em novembro, naquele emocionante encontro com os sem-terra em Brasília, nosso Plano de Reforma Agrária. O governo, em parceria com os movimentos, vai assentar nos próximos três anos 530 mil famílias, com a infra-estrutura, o crédito e os serviços necessários. Vamos adotar um novo modelo. Nossa reforma agrária será de massas e qualidade.

Finalmente, você mencionou a política externa como um dos sucessos do primeiro ano de mandato.
É verdade, um grande sucesso. Começamos, a partir da reconstrução política e econômica do Mercosul, um processo de aprofundamento dos laços com os vizinhos do continente sul-americano. Também nos aproximamos de grandes países, como China, Rússia, Índia e África do Sul, que eram secundarizados em nossa diplomacia. O presidente Lula começou a resgatar os compromissos seculares com a África e abriu as portas do Oriente Médio. Dessa maneira, soberana e criativa, defendemos nossos interesses comerciais em todos os fóruns, desde a Alca até a Organização Mundial do Comércio. Na OMC, criamos o G-22, um novo pólo nas grandes negociações entre países desenvolvidos e em desenvolvimento. Em todas as frentes possíveis, lutamos pela queda de barreiras protecionistas que prejudicam os países em desenvolvimento. Ajudamos a preservar a ordem constitucional na Venezuela. Na defesa da paz, dialogamos intensamente com líderes de todos os continentes. Lula defendeu com vigor, na Assembléia da ONU, reformas democráticas para assegurar o princípio do multilateralismo e propôs a união dos povos e dos governantes no combate à fome em todo o mundo. O acerto dessa política altiva se confirma, também, pelo apoio que diversos países têm dado à proposta de o Brasil participar permanentemente do Conselho de Segurança da ONU.

E quais são as perspectivas para o próximo ano?
Recuperadas a estabilidade econômica e a soberania nacional, e criadas as condições para isso, nosso maior desafio agora é crescer de modo sustentável e com verdadeiro desenvolvimento social. O crescimento econômico, por si só, não traz justiça social. O Brasil já cresceu no passado sem que tivesse havido distribuição de renda. Em 2004 teremos de conjugar melhor o econômico e o social. Estamos criando mecanismos e regulamentos para atrair investimentos de médio e longo prazo nas áreas de infra-estrutura e em outras estratégicas para o desenvolvimento. Um deles é a proposta de Parceria Público-Privada que apresentamos ao Congresso. A definição do modelo regulador na energia tem o mesmo sentido. Teremos, neste e nos próximos anos, mais recursos para investir e emprestar aos estados e municípios com projetos viáveis de saneamento. E vamos avançar nas mudanças sociais que a população espera. Além da reforma agrária, o governo deverá investir pesadamente na questão do emprego, da saúde, da educação e da segurança pública.

Ricardo de Azevedo é coordenador editorial de Teoria e Debate.