Economia

A combinação de herança maldita e inadequação das políticas tem alta probabilidade de insucesso

Sob inspiração do Consenso de Washington o Brasil, pôs em prática, desde os primórdios dos anos 1990, um conjunto de políticas econômicas cujos resultados são medíocres, sobretudo quando confrontados com aqueles observados ao longo da experiência desenvolvimentista. Exceto pelo breve interregno de 1994 a 1997, período que coincidiu com o auge do Plano Real e no qual o desempenho da economia pareceu retomar padrões históricos, os anos 1990 e o primeiro triênio da atual década caracterizam-se pela perda de dinamismo econômico e agravamento da questão social.

O ano de 2003, primeiro do governo Lula, não constitui uma exceção à regra. Ao contrário, foi aquele no qual indicadores relevantes mais se deterioraram, com um crescimento do PIB próximo de zero, desemprego recorde, em torno de 13%, e queda inusitada do rendimento médio do trabalho, da ordem de 14% (dados até setembro). Embora esse resultado traduza o peso de uma herança maldita, também é inquestionável a preservação, e até mesmo o aprofundamento, de políticas econômicas propugnadas pelo Consenso de Washington. Diante dessas constatações, a pergunta que cabe fazer é qual a possibilidade de essa estratégia lograr êxito, dado que seus maus resultados são reconhecidos até por seus formuladores?1.

Este artigo procurará demonstrar que a reafirmação das políticas neoliberais tem grande probabilidade de fracasso, ou poderá conduzir, no limite, a um sucesso efêmero. Para tanto, duas dimensões são exploradas: a primeira explicita o ponto de partida ou a herança maldita, ressaltando o caráter precário de vários indicadores, em especial quando comparados àqueles vigentes no início da década de 1990. O segundo aspecto analisado refere-se à inadequação das políticas. Essa combinação de herança maldita e inadequação das políticas produz uma situação de alta probabilidade de insucesso.

A herança maldita

Uma reflexão para além dos indicadores de desempenho demonstra que a experiência liberal dos anos 1990 produziu ou acentuou duas fragilidades básicas da economia brasileira: a vulnerabilidade externa e a precarização dos mecanismos de coordenação. A integração à economia globalizada comandada pelo mercado produziu uma inserção comercial e financeira de má qualidade, visível nas recorrentes crises cambiais associadas aos ciclos de liquidez internacional. Observou-se ademais uma expressiva desregulação e privatização da economia, com substituição do papel coordenador e indutor do Estado pelas forças de mercado. A incapacidade desse arranjo de engendrar um novo modelo de crescimento está patente no precário desempenho do investimento, em particular nas áreas que requerem tempo de maturação dilatado.

A vulnerabilidade externa foi produzida pelas aberturas financeira e comercial, que, desprovidas de critério estratégico, terminaram por agravar a recorrente fragilidade de nossas contas externas, típica de um país periférico. Em menos de uma década reproduziu-se um passivo externo elevado, tanto de curto quanto de longo prazo, tornando o país ainda mais suscetível às variações dos humores dos mercados globais.

Já a abertura comercial foi responsável pelo reforço de um padrão de comércio cuja característica central é a assimetria das elasticidades. Por conta do caráter intensivo em recursos naturais e trabalho da maioria de nossas exportações e do predomínio de importações intensivas em tecnologia e capital, a sensibilidade das primeiras ao crescimento internacional é muito menor que o das importações ao crescimento doméstico. A aceleração do ciclo interno produz inexoravelmente um crescimento mais rápido das importações ante as exportações, deteriorando o saldo comercial, ocorrendo o oposto na contração.

Esse quadro oriundo da herança maldita apresenta em 2003 algumas melhoras cuja sustentabilidade é discutível. Embora o novo ciclo de liquidez internacional tenha permitido a volta das captações externas e a superação da crise cambial de 2002, houve uma deterioração estrutural no perfil do financiamento, acentuando-se o peso dos capitais voláteis. Assim, por exemplo, o investimento direto estrangeiro reduziu-se pela metade, enquanto o investimento em carteira e os financiamentos de curto prazo ampliaram-se substancialmente.

A melhora genuína adveio da transformação do déficit em transações correntes em pequeno superávit por conta do excepcional saldo comercial. Vários fatores conjunturais foram responsáveis por esse desempenho: a expressiva desvalorização do real até o primeiro trimestre do ano, a recessão industrial doméstica, a melhora de preços internacionais de commodities, o crescimento inusitado de alguns países como China e Argentina. Mudanças previsíveis nessas variáveis a partir de 2004 implicarão diminuição substancial do saldo, ampliando ainda mais as necessidades de financiamento externo. Ou seja, o Brasil continuará dependente dos financiamentos externos de pior qualidade tanto para rolar sua dívida quanto para pagar sua conta corrente.

Outra dimensão relevante da herança maldita diz respeito à precarização dos mecanismos de coordenação da economia. Durante os anos 1990 realizou-se no Brasil um programa radical de privatização, da ordem de 100 bilhões de dólares. Simultaneamente, liberalizou-se a participação do Investimento Direto Estrangeiro em diversos segmentos antes proibidos. Assim, assistiu-se a um duplo processo de privatização e desnacionalização da propriedade das empresas. Isso tornou ao mesmo tempo as decisões de investimento mais dependentes de decisões privadas e, em maior medida, das estrangeiras.

O binômio privatização–desnacionalização introduziu uma dinâmica distinta na determinação do investimento. Em primeiro lugar reduziu drasticamente o poder de coordenação e indução do Estado. Por essa razão tornou tal decisão uma variável estritamente dependente da avaliação da demanda corrente, suprimindo a estratégia de crescer à frente da demanda, típica dos grandes blocos de inversões lideradas pelo Estado, distintiva do período nacional-desenvolvimentista. Também reduziu o peso das considerações prospectivas sobre o mercado interno como elemento de decisão do investimento, ampliando o peso de variáveis externas. Essa mudança refletiu-se em insuficiência de oferta na infra-estrutura e num esgarçamento das cadeias do setor industrial, reduzindo os efeitos de encadeamento do investimento e diminuindo o potencial de crescimento.

Do ponto de vista do investimento, 2003 representa o fundo do poço. Embora desde o início da década de 1990 seu desempenho tenha sido acanhado, alcançando um pico máximo de 22,5% do PIB no auge do Plano Real, em 1995, o patamar de 17% observado em 2003 é um dos mais baixos da história contemporânea brasileira. É certo que o governo Lula não pode ser integralmente responsabilizado por esta má performance, todavia, o corte dos investimentos públicos realizados em 2003, combinado com políticas econômicas inadequadas, responde pelo agravamento da queda.

A inadequação da política econômica

Não há dúvida de que a política econômica do governo Lula é uma continuidade daquela posta em prática na era FHC, ao combinar políticas macroeconômicas ortodoxas com reformas liberais. Em sua essência, a política visa obter a estabilidade e um ambiente institucional favorável à operação da economia de mercado. Estes, por sua vez, definem as condições necessárias e suficientes para que o processo de desenvolvimento conduzido pelo mercado logre êxito2.

A política macroeconômica ortodoxa assenta-se no tripé câmbio flutuante com livre movimento de capitais, metas de inflação e postura fiscal restritiva. Esse conjunto de políticas desenhadas para prover a estabilidade de preços e das demais variáveis macro-econômicas tem produzido o seu contrário, uma recorrente instabilidade, evidente na volatilidade da taxa de câmbio, nas altas taxas de juros e na intermitente ampliação da dívida pública e, por último mas não menos importante, na permanência da vulnerabilidade externa3.

O regime de câmbio flutuante deveria, em tese, promover um ajuste das contas externas através da mudança de preços relativos. No caso brasileiro, a desvalorização da moeda nacional permitida pelo regime de câmbio flutuante deveria corrigir, a médio prazo, os déficits em transações correntes elevados e o excessivo endividamento. Os dados todavia não evidenciam um ajuste dessa natureza e indicam uma forte volatilidade da taxa de câmbio real e a permanência da vulnerabilidade externa. Como foi apontado anteriormente, o ajuste da conta corrente pode ser debitado em grande medida a fatores conjunturais.

Para compreender os limites do regime de câmbio flutuante no ajuste do balanço de pagamentos é necessário enfatizar a forma de sua operação numa economia periférica com livre mobilidade de capitais. A posição da taxa de câmbio nesse caso está determinada pelos ciclos de liquidez internacional e absorção de capitais de curto prazo, como se viu no Brasil e, particularmente, em 2002 e 2003. Os movimentos da taxa de câmbio resultantes dos fluxos de capitais podem ser contraditórios com o ajuste da conta corrente. A rigor tornam-se instrumento de criação ou ampliação de seus desequilíbrios. Isso é ainda mais verdadeiro num país altamente endividado como o Brasil, cuja composição do fluxo de capitais é de pior qualidade, ou seja, mais volátil.

A política de metas de inflação tem também uma operação precária sobretudo por conta das flutuações da taxa de câmbio e da grande sensibilidade dos preços domésticos a essas variações. Uma parcela expressiva dos preços domésticos está direta ou indiretamente indexada ao câmbio. Quando há uma desvalorização, esses preços são reajustados rapidamente. Para evitar a ampliação excessiva da inflação, os demais preços têm de ser contidos, o que é conseguido através da subida dos juros e contração da produção e emprego.

Na economia brasileira, a alta volatilidade da taxa de câmbio e a indexação formal a esta de preços como os das tarifas públicas dificultam o ajustamento de preços relativos. As compensações têm de ser mais intensas, vale dizer, os preços não vinculados ao câmbio – incluindo o salário – têm de ser mais contraídos para permitir o crescimento daqueles determinados pelo câmbio, sem aumento significativo da inflação. Ajuste do salário real e sacrifício de emprego são as principais conseqüências desse modelo.

A volatilidade da taxa de câmbio, associada aos ciclos de liquidez externa e seus impactos na taxa de inflação, termina por exigir uma política de juros elevados de maneira permanente. Quando das fugas de capitais e ataques especulativos, os juros são elevados para atenuar a desvalorização. No momento seguinte, são mantidos altos para evitar uma aceleração inflacionária. Só durante as entradas líquidas de capitais podem ser relaxados, e assim mesmo com parcimônia, para que a combinação da valorização da taxa de câmbio e da retomada do crescimento doméstico não agrave demasiado os desequilíbrios de conta corrente. Nesse contexto, a política fiscal torna-se uma variável passiva, ou seja, precisa produzir superávits primários elevados e recorrentes para contrabalançar os efeitos da instabilidade do câmbio e dos juros sobre a dívida pública. Contudo, como tem mostrado a história recente do país, isso não vem sendo suficiente para deter o aumento desta última.

Há quatro propostas de reformas ditas estruturais sendo implementadas pelo governo Lula em sintonia com o ideário do Consenso de Washington: a previdenciária, a tributária, a financeira e a trabalhista. Em geral seus objetivos são o equilíbrio intertemporal das contas públicas (previdenciária e tributária) associado à maior eficiência microeconômica (tributária, financeira e trabalhista) ou criação de um ambiente institucional mais favorável à operação dos mercados (financeira e trabalhista). O objetivo central é sem dúvida o equilíbrio intertemporal das contas públicas, embora os demais não sejam desprezíveis.

O que se pretende é a redução da dívida pública por meio da obtenção de superávits primários altos e continuados. A diminuição da dívida teria uma dupla função: reduziria a pressão do setor público sobre os recursos financeiros, liberando poupança para o setor privado, e permitiria uma melhora da classificação de risco do país nos mercados internacionais, reduzindo a taxa de juros.4

As possibilidades de que tudo ocorra como previsto nessa proposta são, de fato, longínquas. Com as atuais taxas de juros ou com sua redução para o limite possível, determinado pelo mercado internacional, a conta de juros continuará bastante elevada. Assim, a estabilização da dívida e, ainda mais, sua redução exigiriam um esforço fiscal maior do que aquele hoje vigente. Mesmo admitindo que isso fosse possível, o resgate da dívida, por ser fruto do superávit primário, teria, no máximo, um efeito neutro sobre a demanda agregada. Isso presumindo que os recursos oriundos do resgate fossem de algum modo encaminhados para o investimento produtivo, e não para a especulação. Esta última condição supõe que simultaneamente ao resgate da dívida pública haja um crescimento da dívida privada que possa atrair os recursos oriundos da primeira, caso contrário eles serão destinados à compra de ativos reais ou divisas. Por fim, cabe considerar que, mesmo na mais otimista das hipóteses, a classificação de risco do país pode melhorar, mas não se traduzir em taxas de juros menores, em razão de uma eventual ampliação da aversão ao risco nos mercados globais, incluindo uma fuga para a qualidade. Esta tem sido uma ocorrência comum nos últimos dez anos.

Uma iniciativa de maior consistência para a retomada do investimento dirigida ao setor de infra-estrutura é a proposta de Parceria Público-Privada (PPP), de autoria do Ministério do Planejamento, encaminhada ao Congresso5. Nesse instrumento, o setor público desempenha papel de destaque não só na identificação e seleção dos vários projetos a ser implantados como na redução dos riscos envolvidos nesses investimentos. Estão fora da PPP os projetos de boa rentabilidade que serão tocados pelo setor privado em regime de concessão ou aqueles com retorno muito baixo, que ficam a cargo exclusivo do setor público. O principal risco a ser minimizado é o do retorno. Ou seja, o setor público entra no empreendimento equalizando a taxa de retorno dos projetos com a Selic, considerada o custo de oportunidade do investidor.

Embora iniciativa de melhor qualidade, a PPP tem vários problemas. O primeiro deles é a admissão de investimento estrangeiro num setor que não produz divisas. Isso ou inviabilizará os investimentos, ou implicará concessão de garantias sobre o risco cambial aos investidores. Outro fator limitante é o montante elevado de recursos orçamentários exigidos para a equalização da rentabilidade, que decorre tanto do baixo retorno dos projetos quanto da alta taxa de juros básica da economia. Em resumo, a instabilidade macroeconômica limita o volume de investimentos a ser realizados, reduzindo o papel da PPP na retomada do crescimento.

Outro aspecto bastante problemático das reformas diz respeito ao crédito. O diagnóstico da Fazenda, em sintonia com o Consenso de Washington, atribui um papel exagerado às garantias (Lei de Falências) na explicação tanto do baixo volume quanto do alto custo do crédito no país. Fora verdadeira esta tese, ficaria sem explicação o fato de, no passado recente, portanto, no mesmo marco institucional, o volume de crédito haver sido bem mais elevado do que atualmente. Como proporção do PIB, o crédito cai de 37% em 1994 para 24% em 2002. Também parece não ter sustentação a tese do FMI que atribui o alto custo do crédito no Brasil exclusivamente à oligopolização do setor bancário, dado que esta é uma característica comum a vários outros países.

Crédito escasso e caro, no Brasil, resulta de dois fatores combinados: operações de tesouraria de alta rentabilidade e baixo risco, lastreadas em títulos públicos, e instabilidade macro-econômica. As primeiras definem um patamar de rentabilidade elevado e a segunda exige segurança adicional, que se traduz em margens brutas de lucro ex-ante muito altas para proteção contra a instabilidade de câmbio e juros, cuja flutuação em geral implica aumento de inadimplência. Se esta tese é verdadeira, a reforma da Lei de Falências adiantará muito pouco para comprometer os bancos com o financiamento de prazo mais longo e a custo mais baixo.

Esboço de alternativa

A modificação da política econômica do governo Lula em direção a uma política mais comprometida com o desenvolvimento supõe duas transformações essenciais: no plano macroeconômico, a introdução da regulação dos fluxos de capitais e, na esfera da coordenação, a redefinição do papel do Estado. No primeiro caso, trata-se de restringir a mobilidade de capitais, sobretudo os especulativos, para obter maior estabilidade das variáveis macroeconômicas e, no segundo, fazer o Estado desempenhar papel mais ativo na indução ao crescimento.

A regulação seletiva dos fluxos de capitais, impedindo o movimento dos capitais especulativos, visa ampliar a autonomia na condução da política macroeconômica doméstica. Isso decorrerá tanto da estabilização da taxa de câmbio quanto da redução da taxa de juros. Com o atual grau de abertura da conta do capital, associado ao elevado endividamento e baixo nível de reservas, os controles constituem a única alternativa para a estabilidade macroeconômica. É possível fazer essa estabilização através da “flutuação suja” do câmbio. Esta, todavia, supõe volume de reservas internacionais elevado e diferencial de taxas de juros interno-externo reduzido, sem o que o controle da flutuação se torna muito oneroso para as contas públicas.

O controle seletivo de fluxos, ao incidir sobre os capitais especulativos inibindo suas entradas e saídas, permitirá o descolamento da taxa interna de juros da taxa externa, isto é, admitirá diminuir a primeira de forma independente da avaliação do risco país. Isso, é claro, não reduzirá este último, mas permitirá que as atividades estritamente domésticas, incluindo a dívida pública, sejam financiadas por taxa de juros diferenciada.

A mudança da política macroeconômica é condição necessária, mas não suficiente, para a retomada do crescimento. Será imprescindível reconstruir e atualizar os mecanismos de coordenação pública da economia. Exceto para setores produtivos estratégicos (petróleo, energia ) ou de baixo retorno (habitação popular, saneamento básico), o princípio da PPP pode ser estendido à área industrial, vale dizer, ao setor público caberia selecionar prioridades tanto na indústria quanto na infra-estrutura, montar esquemas de redução de risco via equalização de retorno, renúncia fiscal ou assunção de riscos específicos e, por fim, viabilizar o financiamento dos empreendimentos por meio de um pool entre instituições financeiras públicas e privadas. O essencial desse esquema é que o Estado atua criando o horizonte de investimento para o setor privado, que implanta e gerencia as atividades.

Ricardo Carneiro é professor do Instituto de Economia e diretor do Centro de Estudos de Conjuntura e Política Econômica da Unicamp