Economia

Entrevista com o ministro do Planejamento Guido Mantega

Para o ministro do Planejamento, Guido Mantega, passada a situação de restrições de 2003, o país está pronto para crescer em 2004

Depois de um ano de governo, podemos dizer que foi recuperada a capacidade de planejar o Brasil como Nação?
Após um período de política neoliberal explícita, em que os três governos anteriores procuraram desmontar o Estado, esvaziá-lo de suas funções de implemento do crescimento, conseguimos recuperar a capacidade de planejamento do Estado brasileiro. Isso não se deu da noite para o dia, tivemos de reconstruir os instrumentos de planejamento e de atuação do Estado.

O primeiro passo foi elaborarmos o Plano Plurianual, no qual estão contidos os instrumentos de um novo projeto de desenvolvimento, que passam por uma nova atuação do Estado. Essa é a diferença fundamental em relação a governos anteriores. Para os governos neoliberais, o papel do Estado é criar condições de equilíbrio fiscal e deixar que o mercado faça esse trabalho. Achamos que o mercado não leva ao desenvolvimento econômico, leva a concentração de renda, distorções e desequilíbrios.

O Plano Plurianual inscreve essa nova concepção, mostrando que o Estado é necessário justamente para combater desigualdades sociais e regionais. O Brasil é um país desigual do ponto de vista da distribuição de renda: há uma elite que concentra a renda e a grande massa da população despossuída. E, por outro lado, também a desigualdade regional é reiterada pelas leis de mercado. O capital vai para as regiões mais ricas, mais rentáveis e as regiões mais pobres quanto à geração imediata de riqueza ficam atrasadas. Somente o Estado pode implementar esse crescimento com maior igualdade social. O Estado também tem função importante na indução do crescimento e na forma que esse crescimento vai adquirir.

Depois de vinte anos de estagnação, sem um crescimento vigoroso, temos visto taxas medíocres de crescimento, com nível elevado de desemprego, agravamento da questão social.

Uma vez recuperada essa capacidade de planejar o país como Nação, é possível vislumbrar a retomada do crescimento sem uma alteração substantiva da política macroeconômica?
Já houve uma mudança da política macroeconômica, que não apareceu num primeiro momento, em que tínhamos de apagar um incêndio. O Brasil em 2002 estava à beira do precipício, a um passo do default, da inadimplência. Tivemos de medir muito bem nossa estratégia, porque quando um país se torna inadimplente as conseqüências são muito graves. É só ver o resultado dos países que entraram em moratória, o preço que foi pago. Só vejo prejuízos: o caso da Argentina, a moratória da Rússia.

Os países que entram na moratória passam pelo menos um ou dois anos com o PIB negativo, o que significa queda vio-lenta da renda da população, desemprego agudo, desorganização da produção. É muito arriscado. É preciso avaliar a possibilidade de sustentação política.

Um governo de esquerda que chega ao poder, com apenas noventa deputados em um colégio de quinhentos e tantos... Colocar o país em moratória significaria agudizar contradições. Viveríamos uma crise permanente, que poderia levar à ruína o governo Lula. Tínhamos, portanto, uma situação crítica que precisava ser superada. Nesse primeiro momento não aparecem as mudanças que estão sendo feitas.

Mudanças, por exemplo, na esfera do crédito, porque, para poder mudar a distribuição de renda, é preciso começar favorecendo os setores menos privilegiados nos governos anteriores, que são os mais pobres da população, a pequena e média empresa, a agricultura familiar etc. Não sei se passou despercebido, mas tomamos medidas para beneficiar esses segmentos. Foi concedido crédito como nunca para a agricultura familiar por meio do Pronaf, com 5,4 bilhões de reais e juros subsidiados. Foram criados programas de crédito no BNDES para a pequena e média empresa, que não tinham crédito no país porque os juros eram extorsivos. Agora, há crédito a uma taxa razoável, porque o BNDES cobra a menor taxa de juros do mercado. Podia ser mais baixa, vamos diminuí-la, mas no momento ela é conveniente. Demos facilidades para o cidadão pobre, que não tinha conta bancária, abrir uma conta no Banco do Brasil, na Caixa Econômica Federal, sem documentos e ter acesso a um crédito de 600 reais para viabilizar um pequeno negócio.

São ações que, num momento em que a economia está em recessão, talvez não apareçam. Porque quando há um desemprego de 13%, são milhões de pessoas desempregadas, as ações se perdem um pouco. Porém, à medida que a situação vai melhorando, elas vão ganhando relevo.

Com as medidas tomadas durante 2003, oferecem-se alguns elementos do que definiria o novo projeto de desenvolvimento do país. Como o ministro Guido Mantega definiria esse projeto? Qual é o Brasil que se deseja para daqui a três anos?
O Brasil que queremos no final do mandato é um país em que nenhum habitante passe fome. Então, já neste primeiro ano, começamos o Fome Zero, um programa amplo, envolvendo um conjunto de ações na área social e com recursos muito maiores do que os dos programas similares do passado. Em 2002, ano em que o governo Fernando Henrique obteve uma receita extraordinária, gastava 2,6 bilhões de reais com programas de natureza social. Este ano estamos gastando 4,3 bilhões de reais só nesses programas dirigidos à população abaixo do nível de pobreza.

Fizemos um recadastramento, porque o cadastro anterior estava todo “bichado” – influências políticas, parentes do prefeito na lista etc. –, e isso dá muito trabalho. São milhões de pessoas envolvidas. Fecharemos 2003 atendendo 3,6 milhões de famílias. Multiplique isso por quatro, para ver o número de pessoas atingidas por nossos programas de renda, de bolsa-alimentação, bolsa-escola, auxílio-gás, auxílio-moradia. Duplicamos o valor num ano de grande contingenciamento orçamentário. Até o final do quarto ano do mandato, estes 44 milhões de brasileiros que vivem abaixo da linha de pobreza estarão recebendo algum tipo de benefício – e, portanto, a fome deverá estar extinta. O grosso estará atendido. Essa é uma das primeiras metas.

A segunda meta é erradicar o analfabetismo, outra praga que aflige quase 13% da população, cerca de 18 a 20 milhões de brasileiros. Estamos entrando com um forte programa para que até 2006 essa população esteja alfabetizada.

A questão social é prioritária. A economia é um meio para resolver o social, não é um fim em si, como sempre foi concebido. Não é verdade que o crescimento automaticamente vai trazer o desenvolvimento. O Estado tem de intervir, transferir renda por meio de programas, de políticas tributárias que desonerem os bens consumidos pela população de baixa renda, e isso está sendo feito.

Mas há gente que insiste em dizer: “Vocês estão continuando a política neoliberal...” A política do governo anterior era bastante distinta da nossa em vários aspectos.

Primeiro do ponto de vista da política externa, um aspecto importante porque o Brasil padece de grande vulnerabilidade externa, uma dependência de capitais especulativos financeiros internacionais. Nossa prioridade é reduzir ou até eliminar nossa dependência de capital especulativo internacional. O outro governo achava que, quanto maior a dívida externa, melhor para o país. Quanto maior o déficit de transações correntes, melhor. Nós, não. Em função disso, entramos com uma política agressiva de comércio exterior. O Brasil não está mais de joelhos. Já está de pé e age com agressividade comercial. O Brasil hoje tem novos parceiros. Em vez de ficar no esquema Norte-Sul apenas, parte para um esquema Sul-Sul.

O comércio exterior é um jogo em que cada um olha para si, em que não há generosidade. Os governos anteriores achavam que tinham de agradar, ser subservientes, jantar em Camp David, que isso rendia. Mas o presidente Bush, no que faz muito bem, defende os interesses do aço americano, do plantador de laranja da Flórida, porque ele quer ter votos, e nós não podemos ficar olhando nossas laranjas impedidas de entrar nos Estados Unidos. Temos de ir lá e dizer: “Não! Toma lá, dá cá! Se você impõe sanções, imponho aqui também!” Ou então fazer um acordo em que um abre um pouco aqui, o outro abre um pouco lá, e partir para outros parceiros. Existe outro bloco de forças políticas muito interessante, constituído por China, Índia e África do Sul, países de importância vital, que possuem uma população e um potencial enormes, que estão crescendo a taxas expressivas e podem se juntar ao Brasil.

Com essa nova política externa, podemos priorizar a redução da vulnerabilidade. Isso implica ter boa performance nas exportações brasileiras, ocupar novos mercados, combater os oligopólios que controlam a esfera internacional. Ainda temos vulnerabilidade. O fato de termos, em 2003, um superávit de 22, 23 bilhões de dólares não quer dizer que ficamos livres desse problema. É um primeiro passo, mas temos de ter reservas internacionais, temos de poder responder a uma turbulência financeira internacional.

Qual é o papel que desempenha o PPA na retomada do desenvolvimento?
O Plano Plurianual é nosso grande projeto de desenvolvimento. Ele tem toda uma concepção teórica de quais são as linhas mestras, as diretrizes a serem perseguidas: a redução da vulnerabilidade externa, a criação de um mercado de massas no país, o fortalecimento do consumo da população de baixa renda, a diminuição das desigualdades regionais. Outro ponto é a integração dos países da América do Sul, o que envolve ações práticas na área de infra-estrutura. Então, no Plano Plurianual estão todas as ações na área social, que nos levarão a erradicar o analfabetismo, a aumentar as ações na área de saúde, de saneamento.

Além disso, existem os projetos estruturantes. Na região mais pobre do país, o Nordeste, com mais de 30 milhões de pessoas, o grande problema é de oferta de água. Então, um dos projetos estruturantes que consta do PPA é a revitalização da Bacia do São Francisco, que vai levar água à população de todos os estados da região. Há ainda outros projetos de infra-estrutura importantes, porque, para o país crescer a taxas de 4%, 5%, 6% ao ano, é preciso infra-estrutura. Como o país não crescia, a infra-estrutura não era implantada. Ao contrário, até aquela feita no passado foi sendo sucateada na área de energia elétrica, de estradas, transportes e logística. Em 2001 tivemos problemas com energia elétrica – sem energia não se faz nada.

Todo o processo de planejamento do PPA, desde as diretrizes estratégicas, foi discutido com a população. Não é um plano tecnocrático. É um plano que foi discutido com toda a sociedade na medida do possível. Criamos fóruns de discussão. O ministro Luiz Dulci esteve ao nosso lado capitaneando esse processo. Além disso, discutimos no Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social. Tivemos pelo menos seis fóruns com secretários de Planejamento representando os governos dos estados. Cerca de 2 mil entidades da sociedade civil discutiram esse plano. Pela primeira vez se fez um plano com participação social, o que dá legitimidade.

Quando o país começar a crescer, os humores vão melhorar. No meio de 2004 vai estar todo mundo diferente, pois já se começará a criar emprego. Como há muitos anos a população brasileira vem perdendo renda, o mercado encolheu. Temos de ampliá-lo. Reconstituir a capacidade de consumo da população. Precisamos reverter tudo isso.

Como obter esse crescimento de 5% ou 6% ao ano nas circunstâncias restritivas que temos?
Tivemos uma situação restritiva em 2003. Foi o ano do ajuste, de colocação dos alicerces e arrumação da casa. Mas agora a situação está propícia. Os grandes desequilíbrios que registramos em 2002 foram superados. O Brasil está pronto para crescer, e, se minha opinião algum tempo atrás estava isolada, já não é assim. Mesmo entre os analistas de mercado as opiniões convergem para um crescimento de 3,5%, 4% em 2004. A inflação está sob controle, a taxa de juros continuará caindo porque, com taxas de juros altas, não dá para crescer. Mas precisamos entender que fizemos essa política fiscal mais restritiva para segurar a dívida, que estava explodindo, justamente para não cair na moratória, para poder liberar a taxa de juros. O governo anterior fixou as mais altas taxas de juros do mundo durante oito anos. Não vamos fazer isso. Pode escrever: a taxa de juros vai continuar caindo até se tornar uma taxa civilizada.

Precisamos, porém, viabilizar os projetos de infra-estrutura que vão puxar esse crescimento, e isso é importante porque o país que investe em infra-estrutura tem um crescimento equilibrado. É preciso ter também bens de consumo duráveis, mercadorias, alimentação, vestuário. Mas, ao melhorar a infra-estrutura, não se tem ponto de estrangulamento: energia, estradas para transportar as mercadorias, para fomentar o turismo, portos para fazer as exportações e as importações.

O Estado, infelizmente, não dispõe de muito recurso para dar conta de todas as suas responsabilidades.

O BNDES foi uma agência de desenvolvimento cujos recursos foram aplicados para financiar as privatizações no governo anterior. Que papel ele cumpre nesse novo projeto de desenvolvimento?
Um primeiro aspecto importante, já em fase final de gestação, é a política industrial, que o governo passado não tinha. Política industrial significa o Estado mais ativo, dizendo que setores precisam crescer mais, dando facilidades etc. Estamos finalizando um projeto de política industrial e tecnológica, ao lado da política de comércio exterior, da política agrícola, da política de reforma agrária.

Essa política de desenvolvimento industrial vai estabelecer instrumentos, principalmente de crédito, pois um dos grandes problemas do Brasil é a falta de crédito, ou o crédito muito caro. O governo do presidente Lula orientou os bancos públicos para que sejam bancos de fomento, porque são eles que têm, nesse primeiro momento, capacidade de fornecer o juro mais baixo. Nesse sentido, o BNDES passa a ter outras funções. Só que agora está subordinado a essa política, já não faz o que bem entende. Não vai dar tiro para todo lado. Ou tiro contra, como fazia. Houve um período, no governo anterior, em que o BNDES foi utilizado para a privatização no país. Em vez de dar recursos para criar empregos, para novos investimentos, dava dinheiro para o pessoal que queria adquirir as empresas já existentes. Não gerava riquezas, gerava lucros para quem fez bons negócios, com juros baixos.

Estamos desmontando o Estado patrimonialista que havia e defendia determinados interesses das elites. O BNDES beneficiava empresas multinacionais, grandes empresas, pagava juros de intermediação. Agora é um instrumento de desenvolvimento. Não financia mais privatização, mas a criação de novos ativos, investimentos estratégicos para o país. Por exemplo: o país tem algumas lacunas numa cadeia produtiva, mas pode ser competitivo no setor siderúrgico, no energético, no setor de papel e papelão. A função do BNDES é viabilizar isso. Sem falar da viabilização da pequena e média empresa. Só no primeiro semestre deste ano o BNDES liberou mais de 3 bilhões de reais para a pequena e média empresa, o que é inédito. Está participando do financiamento para o fortalecimento da produção nacional. Tornou-se um banco de fomento novamente, para fazer também a política de distribuição de renda, voltado para o pequeno e médio empresário, segmentos que criam mais empregos, para o setor exportador, que pode contribuir para diminuir nossa vulnerabilidade externa. E nós estamos aumentando seu capital. O BNDES terá o dobro de recursos disponíveis para financiamento. Todos os países que se desenvolveram contaram com um forte instrumento de financiamento, um banco de desenvolvimento.

E que papel o BNDES pode jogar na aproximação com os vizinhos do continente?
Aí entra outro ramo importante da estratégia do governo, que é criar a integração da América do Sul, em primeiro lugar, e depois da América Latina. Há uma grande expectativa dos países vizinhos de que o Brasil faça isso, porque estão todos convivendo com crises. A Bolívia, o Peru, a Venezuela, a própria Argentina... Todos têm grandes esperanças de que o Brasil seja o condutor de um novo ciclo de desenvolvimento, muito mais equilibrado e que beneficie a todos. Todos padecem do mesmo problema, não têm financiamento, têm menos recursos que o Brasil.

Existe um órgão financeiro do bloco andino chamado Corporación Andina de Fomento, a CAF, no qual estamos aumentando a participação do Brasil. O país se tornará um sócio igualitário na CAF, poderá alavancar mais recursos. A CAF fará operações junto com o BNDES e vamos financiar o corredor Mercosul, a ponte de integração Brasill–Peru, a integração com a Guiana. Aliás, há vários projetos no PPA que vão criar um grande bloco comercial. O primeiro passo é a criação de um bloco comercial, para ser depois um bloco social e político. Um modelo interessante é o da União Européia, que foi muito bem-sucedido, criou integração e foi favorável a todos os países que se envolveram.

Que levou quarenta anos sendo construído...
Mas, no que eles levaram quarenta anos, nós temos de levar quatro ou cinco. A questão do modelo elétrico, por exemplo. Os governos anteriores levaram anos para discutir o modelo elétrico, e deu naquilo que conhecemos – o modelo do apagão. Não temos tempo, a população não pode esperar. Nossos próprios militantes dizem: “Vocês precisam baixar rápido a taxa de juros, esse país não está crescendo!” Mas a Rússia passou um ano com crescimento negativo e, depois da crise, perdeu mais de 6% do PIB. A Argentina perdeu 11% de PIB, e neste ano vamos conseguir nos equilibrar com uma conta mais ou menos positiva. Um crescimento pequeno, mas positivo. Mas todo mundo tem pressa. E é justificado, porque a população sofre, tem desemprego, tem fome. Nós trabalhamos em ritmo inédito. O que já encaminhamos de projetos para o Congresso aprovar, inclusive a Lei de PPP...

Em que consiste a lei de Parceria Público-Privada?
A lei de PPP é uma maneira de alavancar mais recursos para acelerar a implantação da infra-estrutura. O governo no Brasil sempre foi responsável por uma parte importante da implantação da infra-estrutura. O Plano de Metas de Juscelino era transporte, energia. Vargas já tinha começado, com siderúrgica, petroquímica etc. Os governos militares investiram bastante, criaram uma bela dívida, que nós herdamos. Nossa capacidade de investimento, portanto, diminuiu e as necessidades sociais aumentaram. Portanto, é preciso aumentar recursos para saúde, educação etc. Esse programa social que mencionamos é crescente. Este ano ele conta com 4,3 bilhões de reais, no ano que vem serão 5,3 bilhões de reais, e até o final de 2006 atingirá 11 milhões de famílias. Como isso demanda muito dinheiro, sobra menos para o investimento em infra-estrutura.

No governo, não é possível atender a todas as necessidades, tem de fazer uma escolha. Por isso a área de infra-estrutura não tem tantos recursos quanto seria necessário, quanto se desejaria. O BNDES vai duplicar sua capacidade de financiamento, mesmo assim não é suficiente. A Petrobras está investindo de 25 bilhões a 30 bilhões de reais por ano. A Eletrobrás está investindo. E vamos manter essas empresas, que são instrumentos importantes de desenvolvimento. Mesmo assim, precisaríamos investir muito mais para gerar a infra-estrutura necessária para o país crescer a taxas de 4%, 5% sem ter problema de pontos de estrangulamento. Então, inventamos esse instrumento – a Parceria Público-Privada –, que não é privatização, de jeito nenhum.

Houve uma crítica de que era o Estado querendo se desobrigar da responsabilidade de investir...
Ao contrário. O Estado vai primeiro usar todos os recursos que estiverem disponíveis para fazer investimento direto. Tudo o que puder fazer, ele vai contratar. Mas, como queremos ir além, criamos essa lei, que já existe em outros países. No modelo, é o Estado que diz qual é o projeto que tem de ser feito. Nossa capacidade de planejamento é resguardada. Não perdemos o controle. Só que, como não temos dinheiro, facilitamos, induzimos o setor privado a fazer investimento naquela área. Por isso é que é uma parceria. O setor público determina quais são os projetos e garante uma parte da remuneração, porque são projetos que o mercado não faria por si só.

A duplicação da BR-101 é um exemplo. Queremos duplicá-la de Natal até Feira de Santana. Como não temos todo o dinheiro, queremos atrair o setor privado para que ele faça, e vamos garantir o pagamento de uma parte do pedágio. Num primeiro momento não há um movimento de veículos que dê auto-suficiência a esse empreendimento. Digamos que passem 5 mil veículos por dia e seriam necessários 10 mil para dar o rendimento que a empresa concessionária precisa para fazer os investimentos. Ela recebe 5 mil do tráfego local e nós colocamos mais 5 mil, e assim se viabiliza o empreendimento. Quem faz o investimento é o setor privado. Mas a infra-estrutura é do Estado. Daqui a 25, trinta anos, o bem se incorpora ao patrimônio público. Portanto, não é privatização.

Que balanço você faz do desempenho econômico do governo em 2003?
Diria que fomos muito bem-sucedidos, ao superar tantos problemas agudos: a inflação que subia, havia a desconfiança total, não tinha um tostão de crédito externo para o Brasil, todo mundo dizia que íamos quebrar. Ainda mais com um governo do PT. Havia uma série de previsões pessimistas.

Houve o reconhecimento, talvez até mais fora do que aqui. Nossos companheiros sempre são mais críticos, e às vezes exageraram na crítica. Não nos deram o tempo necessário para consertar uma situação que sabiam que era grave.

Estou muito satisfeito com o que aconteceu nesse primeiro ano, embora não tenhamos realizado tudo o que desejaríamos. O desemprego está alto, o nível de renda da população está baixo. Mas criamos as condições para que isso seja superado, e em breve. Em 2004 as condições serão bem melhores.

O controle do fluxo de capitais não seria uma opção desejável para a superação da governabilidade externa?
Na situação em que nos encontrávamos no final de 2002 era contraproducente e inócuo fazer controle de fluxo de capital, porque não havia capital. Centralizar então o quê? Iríamos estatizar as dívidas do setor privado. Há a dívida pública e a privada. A dívida pública estava em dia. Se fosse feita a centralização, quem não teria de pagar seriam as empresas que deviam. E o Estado passaria a ser o devedor. Qual seria a vantagem? O dólar iria a 4 ou 5 reais, provocando uma hiperinflação no país. O que provocou inflação nesses últimos anos foi o dólar, foi o câmbio. Então, quanto mais alto o dólar, maior a pressão inflacionária. Iríamos gerar um processo de hiperinflação, ou uma inflação acima de 50%, 60%, 70%, e ser obrigados a ter juros muito mais altos. Entraríamos naquele círculo vicioso dos juros e não ganharíamos nada. O risco país subiria para 3.000, 4.000. Iriam dizer: “O país vai quebrar”. E quebraria. Quando se cria essa expectativa, o sujeito que tem um dinheirinho aqui tira. Ele prefere resgatar um terço de seu capital a perder tudo. Aí é o estouro da boiada, que leva o país ao corner, a uma situação de inadimplência.

Não sei como governaríamos o país sem um tostão, sem crédito, com a inflação explodindo, os juros muito altos. O PIB, então, cairia uns 5%, 6%. E a renda da população cairia junto. O desemprego, hoje em 13% segundo o IBGE, iria para 20%, 22%. E como o presidente Lula conseguiria maioria na Câmara? Ficaríamos isolados, esmagados pela oposição. Perderíamos a confiança da opinião pública. A imprensa toda estaria contra nós. Seria o caos. A Malásia foi o único país que fez, ultimamente, a centralização cambial. Outros quebraram. A Argentina não fez centralização porque fechou tudo e não pagou nada. É pior que centralização cambial, está pagando um preço pesadíssimo. O PIB da Malásia, no ano seguinte à centralização, caiu 7,2%. Nesse caso, fica-se depois dois anos tentando voltar ao patamar do qual se tinha saído. Para evitar isso, era necessário aumentar o superávit primário, embora eu seja inimigo de superávit primário. Mas, quando se está pela hora da morte, é obrigado a usar instrumentos pesados...

Conseguimos superar esse impasse, a política de juros caminha na direção correta. Podemos questionar se foi no ritmo certo, mas ninguém pode duvidar de que está na direção correta. Os juros reais que temos, de 9,5%, são os menores nos últimos oito anos. A média do primeiro período Fernando Henrique, 1994-1998, era em torno de 20%. No segundo período eles abaixaram um pouquinho. Nós já estamos abaixo do menor patamar. É alto, é insatisfatório, mas está na direção correta.

Cinco meses atrás um grupo de intelectuais, com muitos companheiros nossos, escreveu um manifesto dizendo que estávamos fazendo a mesma política do passado, o que é um grande equívoco e, no mínimo, falta de tolerância e de companheirismo, inclusive. Não deram chance para que nos instalássemos no governo e fizéssemos as modificações devidas. Não é fácil administrar um governo nacional. Com todos os problemas, com todas as dívidas que herdamos. Estamos reconstituindo o Estado que tinha sido terceirizado pelo governo anterior.

Hamilton Pereira é presidente da Fundação Perseu Abramo