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Para fazer as mudanças necessárias ao país e esperadas pela sociedade, é preciso que se tenha, além da governabilidade institucional e econômica, a governabilidade social, para criar canais democráticos de participação

Uma questão fundamental para as esquerdas contemporâneas é o debate acerca do caráter estratégico da democracia para a construção de uma nova ordem social. Seus fundamentos e valores, os procedimentos que a legitimam, suas virtudes e impasses, a atual crise de representação, os limites da soberania num mundo globalizado são temas necessários à agenda de discussões de uma nova esquerda socialista. Num cenário mundial de crise de paradigmas, maior importância assume esse debate.

Uma das tarefas que se colocam na ordem do dia é a constituição de mecanismos de controle democrático das políticas públicas. Instituir canais de participação social, estimulando uma relação de co-responsabilidade entre o Estado e a sociedade e, ao mesmo tempo, conferindo legitimidade às decisões e ações do governo, é um desafio a ser enfrentado.

A vitória de Lula nas eleições de 2002 trouxe para o centro do debate, entre outras questões, a necessidade da democratização do Estado. Após uma década de hegemonia da teoria neoliberal – com suas concepções de “Estado-Mínimo”, de “integração econômica sem soberania”, da “apologia ao mercado” como regulador das relações humanas, econômicas e sociais –, a eleição de um candidato oriundo das classes populares, com um programa de reformas estruturais que se contrapõem ao modelo e liderando um governo de alianças, em que a esquerda tem hegemonia, num país da importância do Brasil, evidentemente libera uma energia ético-política que alimenta de esperanças para as possibilidades do aprofundamento da democracia.

Em junho de 2002, na Carta ao Povo Brasileiro, que se tornou a principal referência programática do futuro governo, Lula reafirmou o compromisso histórico do PT com uma forma mais avançada de democracia, sustentando que “o novo modelo não pode ser produto das decisões unilaterais do governo (...) nem será implantado por decreto, de modo voluntarista. Será fruto de uma ampla negociação nacional, que deve conduzir a uma autêntica aliança pelo país, a um novo contrato social, capaz de assegurar o crescimento com estabilidade”.

Em outubro, no discurso Compromisso com a Mudança, já eleito presidente, Lula reafirmou seu compromisso com a participação democrática, sustentando que seu governo teria a “marca do entendimento e da negociação” e que o resgate da dívida social secular só poderia ser feito com a “ativa participação de todas as forças do Brasil, trabalhadores e empresários, homens e mulheres de bem”.

No dia da posse, aquele memorável 1º de janeiro de 2003, quando as ruas de Brasília foram tomadas por uma multidão, o presidente Lula destacou a importância da participação das organizações e dos movimentos sociais reafirmando que “nos empenharemos para que encontrem canais de expressão no novo governo”.

Sinalizava assim, claramente, que o governo se empenharia em constituir canais e mecanismos de participação social na definição e no controle das políticas públicas. Denotava a vontade política do novo governo de romper com a tradição autoritária e elitista do Estado brasileiro.

Para um governo de mudanças, a governabilidade parlamentar é necessária, porém não é suficiente. Ter uma maioria estável no Parlamento e articular pactos consistentes com os entes federativos são condições fundamentais para promover mudanças. Entretanto, para um governo de centro-esquerda, liderado por um partido de esquerda, com uma história marcada por fortes vínculos com os movimentos sociais e pela capacidade de dialogar com amplos setores sociais, a governabilidade institucional não basta. Até porque Lula não teria vencido as eleições se não houvesse um sentimento majoritário na sociedade de que as mudanças são fundamentais e inadiáveis.

É evidente, face à maioria de votos obtida por Lula no processo eleitoral, que ele tem legitimidade para tomar decisões e promover as mudanças. Entretanto, se a eleição dá legitimidade para operar as transformações, não garante por si só que elas ocorram. Uma correlação de forças positiva, do ponto de vista institucional, é insuficiente para promover reformas estruturais se não se fizer acompanhar de uma correlação de forças favorável na própria sociedade.

Nesse sentido, o governo trabalha com o conceito de “governabilidade ampliada”. Para fazer as mudanças necessárias ao país e esperadas pela sociedade, é preciso que se tenha, além da governabilidade institucional, que assegure uma maioria estável no Parlamento e pactos consistentes entre os entes federativos, e da governabilidade econômica, que permita a retomada do crescimento econômico, mantendo a estabilidade, a governabilidade social. Entendo-a como esforço articulado no sentido de criar espaços de diálogo, de construção de canais democráticos de participação na formulação de políticas públicas e de busca de consensos, aqui compreendidos não como unanimidade, mas como ampla maioria.

E essa não é uma equação formal. Para operar as reformas democráticas é fundamental contar com uma sociedade consciente e mobilizada, ativa e participativa, disposta a agir sobre a dinâmica política real, cotidianamente, em cada conjuntura. Até porque a História tem demonstrado que as forças conservadoras derrotadas em eleições se rearticulam para resistir às mudanças. Nisso são facilitadas pelo enorme poder econômico, político, mecanismos de comunicação e manipulação da opinião pública e relações internacionais orgânicas. Podem perfeitamente neutralizar iniciativas populares e mesmo desestabilizar governos constitucionalmente eleitos.

Portanto, para o governo Lula, a aposta não será a dialética maioria x minoria. O caminho para as mudanças não deve ser a imposição de uma eventual maioria parlamentar, mas a paciente construção de consensos parlamentares, federativos e sociais, priorizando o caminho do diálogo e da negociação. Terá de envolver a grande maioria da sociedade, até para que essa co-responsabilidade implique compartilhamento.

Essa nova relação proposta requer uma renovação da cultura política dos movimentos sociais e populares. Muitas vezes, como forma de resistência ao Estado autoritário e manipulador, estes desenvolveram uma postura defensiva e autoprotetora, estabelecendo uma relação meramente reivindicatória ou corporativa com os governos. Essa renovação não implica renúncia à autonomia dos movimentos, mas a adoção de uma postura mais criativa, de natureza crítico-propositiva, com uma consciência de responsabilidade social e com compromisso republicano.

O papel da Secretaria-Geral

 

Com a compreensão do significado da “governabilidade social” para o sucesso do projeto político, o presidente tomou a decisão de redefinir a área política do governo. Tradicionalmente, os dois ministérios políticos, Casa Civil e Secretaria-Geral da Presidência da República se dedicavam à ação política no campo institucional. Agora, enquanto a Casa Civil, sob a coordenação do ministro José Dirceu, coordena a relação com o Parlamento, governadores e prefeitos, tratando da chamada governabilidade institucional, a Secretaria-Geral, sob a coordenação do ministro Luiz Dulci, ocupa-se da governabilidade social, das relações com os diversos setores da sociedade.

A Secretaria-Geral da Presidência da República tem estimulado essa cultura de participação e, freqüentemente, tentado contribuir para facilitar as relações dos diversos segmentos sociais com o governo. Ou, ainda, atuado no sentido de antecipar-se a eventuais crises de relacionamento dos órgãos de governo com setores da sociedade, operando mediações políticas necessárias à superação dos conflitos ou à redução do potencial de desgaste.

A proposta de criação do Fórum de Participação Social, que é coordenado pela secretaria e tem a participação dos responsáveis de cada ministério pela interlocução com a sociedade, revela a disposição de que o diálogo social não se res-trinja a um órgão especializado do governo, mas se incorpore à prática política cotidiana de todos os órgãos governamentais. O Fórum é justamente o espaço institucional de formulação de políticas de participação social no governo federal.

Mas a diferença da ação política da Secretaria-Geral em relação aos demais ministérios, no que se refere às relações com os mais diversos setores da sociedade civil, é que o centro de sua atuação política vai além do tratamento e encaminhamento das questões específicas. A secretaria está empenhada em criar um espaço público renovado, no qual os mais diversos setores da sociedade possam interagir com o governo num patamar de maior universalidade, debatendo as questões mais gerais, que vão da linha política do governo ao projeto da Nação.

Apenas como exemplo, cito situações em que a secretaria tem atuado politicamente com a sociedade. Na relação com o movimento sindical, promoveu um conjunto de visitas periódicas e de reuniões com as centrais sindicais e outros organismos de representação dos trabalhadores, realizando inclusive a Plenária Sindical em São Paulo, na qual o presidente e outros ministros debateram as reformas com os principais dirigentes sindicais do país.

No tocante às entidades empresariais, a secretaria não só discutiu o PPA como vem realizando reuniões em todo o país, visitando confederações, federações e outras entidades de classe, dos diversos ramos da economia, colhendo a opinião das principais lideranças empresariais e expondo a visão do governo sobre a condução da política e sobre o projeto para o país.

Já com as entidades e movimentos do campo, Contag, MST, entre outras, coordenou, por delegação do presidente, o processo de negociação do Grito da Terra, cujas principais reivindicações foram contempladas pelo Plano Nacional de Agricultura Familiar, e o grupo de trabalho do plano emergencial de reforma agrária. Atualmente, também por delegação do presidente, está coordenando as negociações da pauta da Marcha das Margaridas.

Com as ONGs e movimentos sociais urbanos (raça, gênero, orientação sexual, meio ambiente, portadores de deficiência, direitos humanos e outros), tem tratado de um conjunto de temas que dizem respeito não só ao setor de atuação de cada uma delas, a suas demandas específicas, como também ao conjunto das relações dessas organizações com o governo e as políticas públicas, além de desenvolver parcerias em diversas áreas. Também coordenou o processo de constituição da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial.

No que se refere a igrejas, a Secretaria-Geral tem recebido lideranças das mais diversas religiões e dialogado com setores das pastorais. Além disso, organizou a histórica visita do presidente à Assembléia Geral da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), em 1º de maio.

Com a intelectualidade, vêm sendo promovidas reuniões nas principais capitais do país, as quais têm se revelado oportunidades de ricas reflexões críticas sobre nossa linha política e sobre as relações do governo com esse setor social. Além disso, a secretaria está constituindo o Grupo de Referência, uma espécie de rede de intelectuais que, sem abdicar de sua autonomia, sistematizam suas percepções sobre os rumos do governo, especialmente do ponto de vista da governabilidade social.

Com a juventude, tem participado do esforço que o governo vem fazendo no sentido de definir nossas políticas públicas para esse setor social.

A Secretaria-Geral atua ainda em outros projetos que envolvem o diálogo social. Está coordenando, por exemplo, junto com o Gabinete de Segurança Institucional (GSI), o grupo de trabalho que debaterá com a sociedade, numa experiência inédita, o Plano Nacional de Inteligência (PNI), cuja elaboração até então era restrita a setores especializados do Estado. Podemos citar também o Plano da Amazônia Sustentável (PAS), no qual juntamente com os Ministérios do Meio Ambiente, Integração, Planejamento e Casa Civil, debaterá com a sociedade civil, parlamentares, governadores e prefeitos as obras de infra-estrutura na região, vinculado ao debate da preservação ambiental.

Uma nova frente de trabalho que o presidente atribuiu à secretaria diz respeito à coordenação do diálogo do governo com a “sociedade civil internacional”, inclusive nas viagens presidenciais. Em razão do novo papel do Brasil na ordem internacional, do significado de nosso governo na luta pela construção de um outro tipo de globalização e de nossa necessidade de colaboração e solidariedade internacional, esta tarefa adquire especial importância. A secretaria constituiu um grupo de trabalho permanente responsável por essa atividade, o qual terá a colaboração de outros órgãos governamentais. No primeiro semestre de 2004, serão realizados fóruns de participação social, em parceria com o Fórum Consultivo Econômico e Social do Mercosul, para debater com a sociedade a questão da integração regional.

Esse esforço para promover o diálogo e a participação social não é um movimento dirigido a abolir ou substituir a democracia representativa. O sentido dessa ação política é aperfeiçoar a democracia brasileira, instituindo canais de democracia participativa.

O PPA e o Planejamento Participativo

Os fóruns do PPA, coordenados pela Secretaria-Geral, pelo Ministério do Planejamento e pela Casa Civil, foram o processo mais efetivo de diálogo social para discutir um novo projeto de país, nesses primeiros meses de governo.

Evidentemente ocorreram outros processos de participação social significativos, além de diversas conferências, como a das Cidades, do Meio Ambiente, da Saúde, que envolveram milhares de cidadãos. É importante destacar o Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social (CDES), que conta com a representação de diversos setores econômicos e sociais e debateu questões importantes para o país, como as reformas previdenciária e tributária, ou ainda o Conselho de Segurança Alimentar (Consea), que tem constituído uma rede de entidades envolvendo a sociedade civil na implantação do Fome Zero.

Os fóruns do PPA, no entanto, foram a oportunidade de diálogo entre governo e sociedade no que diz respeito ao nosso projeto político para os próximos anos. Nas palavras do presidente Lula tratava-se de “retomar a idéia de planejamento do país, de forma democrática, planejar o Brasil ouvindo a sociedade”.

A partir de um texto-base com as Orientações Estratégicas do Governo, intitulado Plano Brasil para Todos, a Secretaria-Geral promoveu 27 fóruns pelo país, em todos os estados da federação e no Distrito Federal, sempre com a presença de ministros, governadores e prefeitos de capitais. Ao final, dialogamos com 2.170 representantes dos mais diversos segmentos sociais, como entidades de trabalhadores e empresários, movimentos de luta pela terra, ONGs ambientalistas, indígenas, de direitos humanos, das mulheres e das minorias, de luta contra o racismo, igrejas e entidades científicas.

Nesses fóruns com a sociedade, aperfeiçoamos a proposta. Os 24 desafios originais apresentados no texto-base se transformaram em trinta, ou seja, seis novos desafios; e, às 218 diretrizes, foram incorporadas 88 novas ao projeto que foi enviado ao Congresso Nacional.

Nesse processo, que chamamos de “escuta forte”, ao dialogar com a sociedade a Secretaria-Geral o fez a partir de nosso programa, que não é um dogma, mas sim aberto a ser aperfeiçoado pelos saberes e experiências dos diversos sujeitos sociais, para produzir sínteses mais qualitativas e superiores.

Conclusão
Esse método de governar, com diálogo e participação, é coerente não só com o que sustentou o PT ao longo de sua história como também com as formulações da esquerda contemporânea. É nesse novo espaço que se criarão uma vasta rede de articulação e solidariedade social, novas formas de identidade e o exercício de uma cidadania mais ativa, em que os sujeitos sociais assumirão uma parcela maior de responsabilidade na transformação de nosso país.

É nessa relação com a sociedade que o governo do presidente Lula busca a “energia ético-política” que promova a reforma democrática do Estado e opere as mudanças que transformarão o Brasil numa grande Nação.

Beto Cury é membro do Diretório Estadual do PT-MG e subsecretário de Articulação Social da Secretaria-Geral da Presidência da República e foi vereador pelo PT em Divinópolis (MG)