Nacional

A bancada governista é bastante heterogênea ideologicamente, o que torna difíceis sua coordenação e uma atuação mais coesa

O debate sobre o funcionamento da democracia brasileira sempre foi um ponto negligenciado nos fóruns internos do PT e do movimento social. Hoje, quando o partido assume a Presidência da República, a lacuna torna-se evidente. Indo direto ao ponto, parece claro que uma parcela dos petistas e dos militantes do movimento social não consegue ler o resultado eleitoral de 2002 em sua inteireza, ou seja, como tendo concedido ao PT poderes limitados no que se refere à implementação de uma agenda de mudanças. É muito comum presenciar discussões ou ler artigos aqui e acolá que partem de um ponto de vista tão singelo quanto equivocado: o de que o eleitorado brasileiro elegeu um governo do PT. Acontece que o mesmo processo que tornou Lula presidente da República concedeu ao PT menos de 18% das cadeiras no Congresso Nacional e fez com que seus candidatos a governador fossem derrotados nos dez mais importantes estados brasileiros. Em conseqüência, o governo Lula foi obrigado, em muito maior escala que o de FHC, a negociar sua agenda com uma série de atores que, em função dos resultados eleitorais de 2002, credenciaram-se para intervir no processo decisório ao longo do próximo período.

A democracia brasileira, no que se refere ao desenho institucional, pode ser caracterizada por dois traços: de um lado, existe uma expressiva concentração de poderes legislativos nas mãos do Poder Executivo, de forma a conferir-lhe alto grau de iniciativa política (Figueiredo e Limongi, 1999); de outro, configura-se um quadro de significativa dispersão de poderes, de forma que um número considerável de atores, institucionais ou partidários (Tsebelis, 1997), encontra-se em condições de exercer poder de veto sobre as iniciativas do presidente. A primeira característica permite ao presidente formular a agenda política nacional, mas a segunda faz com que sua aprovação e implementação possam se tornar extremamente complexas. Para que lado penderá a balança depende, entre outras coisas: a) da distância entre as preferências, programáticas e/ou ideológicas, do presidente e do “congressista mediano”; b) da agenda a ser implementada; c) da força do partido ou coalizão eleitoral do presidente; e d) do grau de coesão e disciplina da bancada parlamentar do governo.

Um governo que se elege anunciando mudanças pela esquerda certamente terá mais dificuldades quanto mais conservador for o perfil do Congresso. Collor e FHC, em seus respectivos períodos presidenciais, encontravam-se mais próximos do que Lula do perfil político/ideológico do Congresso com o qual tinham de se entender. A depender do ponto em pauta, a dificuldade pode tornar-se maior. No ano de 2003, os dois pontos mais salientes – as reformas da Previdência e tributária – tinham a peculiaridade de estimular a mobilização dos mais diversos atores, todos dotados de forte intensidade de preferência, e exigir um trâmite legislativo que restringia a utilização dos referidos poderes legislativos do Executivo, ao não permitir o uso de medidas provisórias e de requerimento de urgência, ao obrigar a adoção de votação nominal em dois turnos nas duas casas e ao negar ao Executivo o poder de veto.

Quanto menor a força parlamentar do partido ou da coalizão eleitoral do presidente, mais complexo tende a ser o percurso das iniciativas governamentais. Se é verdade que o Executivo no Brasil possui uma ampla gama de poderes legislativos, também deve ser levado em conta que o Congresso mantém suas prerrogativas, o que o capacita, se assim o desejar, a bloquear as iniciativas do presidente.

A bancada de apoio ao governo Lula foi, ou vem sendo, construída por etapas. À coalizão do primeiro turno, seguiu-se a do segundo turno para, finalmente, a base governista ganhar contorno definitivo ao longo de 2003. A forma como se constitui uma coalizão tem implicações em seu funcionamento e consistência. Sem pretender qualquer elogio ao PDT e a Brizola, é razoável perceber que o fato de este partido não ter participado da elaboração programática da campanha, assumindo os compromissos decorrentes, torna mais fácil seu descolamento da base do governo. Tampouco se pode esperar do PMDB, hoje imprescindível para o governo Lula no Congresso, o mesmo grau de fidelidade do PT: basta lembrar que o partido de Renan Calheiros não assumiu perante o eleitorado o compromisso de mudar o país.

Devido aos resultados eleitorais e a seu processo de construção, a bancada governista no Congresso é bastante heterogênea do ponto de vista ideológico, o que torna mais difíceis sua coordenação e uma atuação mais coesa. Trata-se de um conjunto de congressistas que vai de posições à esquerda do governo – no interior do PT e PCdoB – àqueles sabidamente conservadores – no interior do PL, PTB e PMDB. E, vale ressaltar, os partidos de esquerda viram seu peso relativo diminuir no interior da coalizão de governo entre outubro de 2002 e novembro de 2003. Como resultado das eleições, a bancada de Lula na Câmara contabilizava 218 deputados, sendo que 76,1% destes haviam sido eleitos por partidos de esquerda. Se, para efeito de raciocínio, já naquele momento fosse computado como governista o PMDB, ainda assim os deputados eleitos pela esquerda seriam maioria: 56,8%. No final de 2003, a esquerda respondia por apenas 48,4% da coalizão (menos ainda se incluirmos o PP...).

Além do ingresso do PMDB, a bancada aumentou devido ao poder de atração da base governista sobre os deputados que se dispuseram a trocar de legenda. Ao longo de 2003 PL, PTB (em especial), PPS, PSB e PV receberam quarenta deputados eleitos em 2002 pelo PFL, PSDB e PP. Dizendo de outra maneira, uma parcela da base de FHC encontra-se sob o guarda-chuva de Lula no Congresso, mas sua porta de entrada não foram os partidos de esquerda. A escolha teve suas razões e implicações. Líderes possuem poder no Congresso. Líderes de esquerda não são vistos com bons olhos por deputados que se dirigem ao governo com o exclusivo objetivo de auferir recursos políticos. Neste caso, ou seja, se é para negociar recursos de patronagem, o melhor é estar sob a proteção de líderes situados ao centro e à direita.

Neste contexto, não se deve esperar um comportamento muito disciplinado da bancada governista no Congresso. A tabela 2 (somente na versão impressa) organiza os dados para a votação da emenda, na reforma da Previdência, e mede a disciplina geral do plenário por meio do Índice de Rice. A disciplina da base do governo foi muito baixa: apenas 60,5, para um índice que varia de 0 a 100. Se forem considerados apenas os votos dos partidos de esquerda, o desempenho não melhora: o índice fica em 65,8. O grau de compromisso é muito diferenciado e os objetivos muito distintos no interior da bancada. A situação tende a se tornar ainda mais complicada sempre que surgirem problemas no “núcleo duro” da coalizão. Quanto mais difícil for o processo de convencimento no interior do PT e da esquerda, acerca de tal ou qual propo-sta do governo, quanto mais dissenso hou-ver neste campo, maior será o estímulo a que os parceiros ideologicamente mais distantes diminuam o grau de cooperação e/ou aumentem o preço da fatura.

Finalmente, merece menção o problema do “grau de coalescência” da coalizão (Amorim Neto, 1998). Uma coalizão será tanto mais coalescente quanto maior for a correspondência entre o peso de cada partido no ministério e no Congresso. Vista sob este prisma, a composição do ministério pode trazer problemas futuros ao governo. Para além da incorporação do PMDB, já em curso, é preciso perceber que PL e PTB cresceram, PDT e PSB diminuíram e o PV é pouco expressivo. Ainda que não se leve a ferro e fogo tal critério, é preciso não desconsiderá-lo por completo. Partidos que se sintam desprestigiados vis-à-vis seus parceiros no interior da coalizão poderão ter menos incentivos à cooperação.

Referências bibliográficas

Amorim Neto, Octavio. “Of Presidents, Parties and Ministers: Cabinet Formation and Legislative Decision-Making under Separation of Powers”. Tese de doutorado submetida à Universidade da Califórnia, San Diego, 1998.

Figueiredo, Argelina e Limongi, Fernando. Executivo e Legislativo na Nova Ordem Constitucional. Rio de Janeiro, FGV/Fapesp, 1999.

Tsebelis, George. “Processo decisório em sistemas políticos: veto players no presidencialismo, parlamentarismo, multicameralismo e multipartidarismo”. Revista Brasileira de Ciências Sociais, volume 12, n° 34, 1997.

Carlos Ranulfo Melo é professor do departamento de Ciência Política da UFMG