Economia

Defendemos que o governo deve promover políticas ativas para a geração de emprego e o estímulo ao investimento público e privado

Ao longo de praticamente toda a década de 1990 e dos primeiros dois anos deste novo século, as políticas de cunho neoliberal, reunidas no chamado Consenso de Washington, difundiram-se no Brasil – como de resto em toda a América Latina. Essas políticas, que dominaram os oito anos do governo FHC, podem ser sintetizadas nas medidas de disciplina fiscal, liberalização financeira, abertura comercial, privatizações, fim das barreiras ao investimento estrangeiro e flexibilização trabalhista.

Neste período de domínio liberal, concebeu-se um novo papel para o setor público na economia brasileira. Desde as primeiras décadas do século XX coube ao Estado, além dos clássicos serviços em áreas como saúde, educação e Justiça, a função de formular, coordenar e executar políticas industriais, financeiras e comerciais, que conduziriam o país a alcançar taxas médias de crescimento da ordem de 6% a 7% ao ano até o final dos anos 1980. A partir da década de 1990, porém, a função do Estado limitar-se-ia a induzir e facilitar o retorno do “mercado” como mecanismo supostamente mais eficiente de promoção do desenvolvimento. Como resultado, o país passou a viver anos de estagnação.

Neste artigo, recupero de maneira sucinta a herança deixada por este período de hegemonia liberal. Em seguida, apresento as propostas da Central Única dos Trabalhadores para a retomada do crescimento. Muitas dessas propostas foram formuladas conjuntamente com outras centrais sindicais.

A herança de problemas

A retomada do crescimento sustentado é hoje um anseio da sociedade brasileira. Mas ela é fortemente obstaculizada pela herança deixada pelo longo período de vigência das políticas do Consenso de Washington. Alguns dos principais problemas advindos deste período são listados a seguir:

a) Juros elevadíssimos, que praticamente eliminaram a função do crédito como mecanismo propulsor do crescimento econômico. Pela tabela (somente na versão impressa), nota-se que as taxas reais de juros (já descontada a inflação) tornaram proibitivo o crédito nas diversas modalidades de empréstimo. De acordo com o modelo liberal, os níveis elevados dos juros eram necessários para estabilizar a inflação e atrair capitais externos.

b) Esses patamares de juros, observados durante período tão longo, geraram efeitos desastrosos na economia brasileira. Eles atingiram duramente a atividade produtiva, por via da redução do consumo e do aumento do custo financeiro às empresas. Na maior parte do período, as taxas de juros foram bem maiores que as margens de rentabilidade da atividade produtiva.

c) Em face dos juros elevados e da grande incerteza em relação ao futuro, o investimento em ativos fixos (máquinas e equipamentos) e em contratação de força de trabalho retraiu-se de modo significativo. A taxa de investimento caiu do patamar de mais de 20% do Produto Interno Bruto (PIB) em 1994 para cerca de 18% em 2002.

d) Como resultado da queda da taxa de investimentos na última década, o país passou a viver graves estrangulamentos em áreas como infra-estrutura (energia, comunicações, portos) e insumos básicos (aço, papel e celulose, químicos, borracha, alumínio e minerais não-metálicos). O “apagão” de 2001 é fruto, sobretudo, da falta de investimentos, como afirmaram alguns especialistas do setor à época. Isso quer dizer que, quando o país retomar taxas de crescimento econômico mais condizentes com suas necessidades, poderemos nos defrontar muito em breve com enormes problemas na oferta desses itens.

e) A dívida pública elevou-se da ordem de 108,5 bilhões de reais em 1995 para 623,2 bilhões de reais, ao final de 2002. Somente com os encargos de juros desta dívida, o governo desembolsou, em 2002, 110 bilhões de reais. Em 2003, o volume da dívida já alcança 695,9 bilhões de reais. Por sua vez, o gasto com o serviço da dívida ficará próximo de 147 bilhões de reais neste ano.

f) Para viabilizar a rolagem da dívida pública, o Estado (incluindo os níveis federal, estadual e municipal) elevou fortemente a carga tributária, que saltou de 28% do PIB no início dos anos 1990 para 35,9% em 2002. Certamente a sanha arrecadadora do Estado (seja no plano federal, estadual ou municipal) é um dos fatores que explicam o crescimento da informalidade de empresas e trabalhadores nos últimos anos. Algumas estimativas apontam para a existência, hoje, de mais de 11 milhões de empresas e 43 milhões de trabalhadores informais no Brasil.

g) De gerador de superávits anuais na balança comercial (média de 11 bilhões de dólares anuais nos anos 1980), o país passou a apresentar déficits recorrentes a partir da segunda metade da década de 1990. Esses déficits chegaram próximos a 7 bilhões de dólares anuais em 1997 e 1998. Conforme os dados do FMI, o processo de abertura comercial representou para o Brasil, de fato, muito mais incremento de importações do que aumento das exportações: no período entre 1989 e 1998, enquanto a participação das importações brasileiras no total das importações mundiais subia de 0,57% para 1,05%, a participação das exportações brasileiras no total das exportações mundiais caía de 1,10% para 0,94%.

h) A taxa de crescimento econômico, cuja média foi de 3,3% nos anos 1980, caiu para apenas 1,9% entre 1990 e 2002.

i) A combinação de elevadas taxas de juros, valorização do câmbio (o que incentivou a concorrência de produtos importados) e reestruturação produtiva levou diversas empresas a fechar plantas produtivas e unidades de negócios, quando não o encerramento da empresa.

j) Para o mercado de trabalho, este período foi devastador, como indica a pesquisa (Dieese-Seade) para a Grande São Paulo:

  • a taxa de desemprego, que era de 8,7% em 1989, pulou para 18,5% em 2002;
  • as oportunidades de trabalho disponíveis passaram a ser, em sua grande maioria, de trabalho precário e mal remunerado. Só para se uma idéia, em 2002, de acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (PNAD), do IBGE, de cada dez ocupações criadas no país, apenas três se referiam a postos de trabalho com carteira assinada. Duas vagas eram para trabalhadores sem carteira, duas para autônomos, duas para domésticos e uma “outras”;
  • a participação dos salários no PIB caiu bruscamente, de 44% em 1992 para 36% ao fim de 2002. Isso representou uma perda de 105 bilhões de reais no total da massa de rendimentos dos trabalhadores.

Mudanças tímidas e desemprego elevado

Neste primeiro ano de governo Lula, a taxa de crescimento do PIB deverá ser de apenas 0,5%, como apontam diversas estimativas. Contingenciamento de gastos públicos, aumento de impostos e manutenção de juros elevados até a primeira metade do ano contribuíram para este resultado.

O governo vem procurando adotar medidas que reduzam os efeitos mais duros da política macroeconômica. Entre elas destacam-se:

1) diminuição de 7,5 pontos percentuais na taxa básica de juros de junho até outubro (de 26,5% para 19%);

2) queda do compulsório sobre depósitos à vista, de 60% para 45%. Estima-se que esta medida poderia gerar uma liberação de recursos da ordem de 8 bilhões de reais;

3) liberação do FGTS para pagamento de prestações (da casa própria) em atraso;

4) apoio ao microcrédito e criação do Banco Popular do Brasil;

5) redução emergencial dos impostos em segmentos estratégicos, a exemplo da queda do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) para automóveis até 2 mil cilindradas;

6) liberação de recursos do Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT) com juros de 2,95% ao mês para compra de bens de linha branca e televisores;

7) lançamento do Programa Primeiro Emprego.

Não obstante essas ações, a taxa de desemprego continua em patamares muito altos em todas as Regiões Metropolitanas do país, como mostra a tabela ao lado (somente na versão impressa).

Nas seis regiões pesquisadas pelo IBGE (Recife, Salvador, Belo Horizonte, Rio de Janeiro, São Paulo e Porto Alegre), estima-se que, em agosto de 2003, 2,8 milhões de pessoas encontravam-se em situação de desemprego aberto (contra 2,4 milhões em agosto de 2002). Portanto, verifica-se um crescimento de quase 17% do número de pessoas desempregadas, ou cerca de 400 mil pessoas a mais sem trabalho.

As centrais sindicais

Diante desse quadro alarmante, a CUT, juntamente com outras centrais sindicais, elaborou um conjunto de proposições de curto, médio e longo prazo que, adotadas, poderiam viabilizar a imediata retomada do crescimento e contribuir para criar condições para um desenvolvimento sustentado. Entre as medidas sugeridas estão:

  • Rejeição a qualquer acordo com o FMI que impeça o desenvolvimento econômico e social do país, por meio de metas draconianas de superávits fiscais.
  • “Planejamento” das taxas de juros, por intermédio da fixação de metas semestrais para a redução das taxas até o final de 2004, de forma a garantir um horizonte mínimo de previsibilidade.
  • Estabelecimento de spreads menores no caso dos correntistas com histórico bancário positivo, sem que isso signifique o aumento dos juros para aqueles que não fazem parte desse grupo.
  • Promoção de “contratos setoriais tripartites de emergência” nos fóruns de competitividade. Esses contratos devem ajudar a estruturar políticas industriais nos setores estratégicos, incorporando instrumentos como tributos, financiamento e tarifas, entre outros. Como regra geral, as políticas de incentivos devem exigir das empresas beneficiárias o alcance de metas quantitativas em termos de produção, exportação, emprego e arrecadação.
  • Implementação de programas de financiamento e assistência técnica para a agricultura, microempresas e cooperativas.
  • Investimentos nas áreas de infra-estrutura e turismo.
  • Apoio à exportação, por meio de desburocratização, redução tributária e financiamento.
  • Desoneração dos investimentos, mediante mecanismos de compensação no Imposto de Renda e de isenção do IPI na compra de máquinas e equipamentos.
  • Alteração da lei que regula o saque do FGTS, para estimular a atividade produtiva, a partir do incentivo à construção civil. Essa alteração abarcaria maiores flexibilizações nos critérios de utilização do saldo individual para a compra de material destinado à construção de residência nova ou de reforma da moradia e a possibilidade do saque no caso de aquisição do segundo imóvel.
  • Elaboração e execução de programa para a construção de moradias populares.
  • Realização de empréstimos lastreados nas contas individuais de FGTS, até determinado valor máximo a ser fixado.
  • Estabelecimento de metas semestrais para a expansão do emprego (1,25 milhão de postos de trabalho por semestre e 2,9 milhões até o fim de 2004).
  • Abertura de vagas em concursos públicos em nível federal, estadual e municipal.
  • Redução da jornada de trabalho sem redução de salário.
  • Constituição de frentes de trabalho sociais (rurais e urbanas).
  • Ampliação e melhoria dos programas de qualificação profissional.
  • Intensificação da reforma agrária, juntamente com uma política agrícola que promova parcerias para a geração de emprego na área rural.
  • Programação de aumentos do salário mínimo, em termos reais, recuperação de perdas salariais pelo INPC do período e participação nos lucros e resultados por setor.
  • Estabelecimento de metas e campanhas para a redução da sonegação fiscal.

Acrescente-se a estas a proposta da CUT para o crédito bancário com desconto em folha de pagamentos, resultante da negociação entre bancos e centrais sindicais. A proposta foi encampada pelo governo Lula, que em 17 de setembro lançou a MP 130 e o Decreto-Lei 4.840.

Com base na MP, a CUT realizou negociação e acordo com cerca de trinta instituições financeiras, reduzindo a menos da metade os níveis das taxas de juros. Antes do acordo, a taxa anual no empréstimo à pessoa física era de 103%; no cheque especial, 180%; no cartão de crédito, 224%; nas financeiras, 333%. Agora variam entre 23% e 47%, dependendo do prazo de empréstimo, da garantia ou não da verba rescisória e da sindicalização do empregado.

O crédito com desconto em folha permitirá, num primeiro momento, a reestruturação das dívidas dos trabalhadores. Num segundo momento, espera-se que, combinado com o crescimento da economia, possa alavancar o nível de consumo, produção e emprego.

Uma luz no fim do túnel

Os indicadores do último trimestre de 2003 já trazem sinais de recuperação da atividade industrial e, com eles, o otimismo crescente dos setores econômicos em relação ao futuro. O indicador de atividade da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp) apontou, em setembro, crescimento de 6% em relação ao mês de agosto.

Diversos fatores pesaram para essa retomada. O mais importante talvez resida no afrouxamento da política monetária. Mas cabe também chamar a atenção para o crescimento da economia americana e a recuperação da Argentina.

Apesar de já poder ser vista uma luz no fim do túnel, é preciso ter presentes alguns problemas que se aproximam. É muito provável que, durante alguns meses, as empresas apenas ocupem a capacidade ociosa hoje existente, sem fazer novas contratações. As taxas de desemprego deverão permanecer muito elevadas. Nos setores de infra-estrutura e insumos básicos, que já operam próximo da plena capacidade instalada, sérios estrangulamentos poderão ocorrer.

Por isso, defendemos que o governo deve promover políticas ativas para a geração de emprego e o estímulo ao investimento público e privado.

Recentemente, em visita à África, acompanhando a comitiva presidencial, pude perceber o esforço do presidente Lula em promover o país no exterior, buscando realizar novas alianças e abrir novos mercados. Foram muitos os convênios firmados. Nessa área internacional, quero acrescentar dois tipos de programa que me parecem fundamentais: o primeiro se refere à formação de uma trading company, de apoio à exportação de micro e pequenas empresas, cuja participação na pauta de exportações do país ainda é muito pequena. O segundo diz respeito a um esforço maior de articulação no apoio ao financiamento às exportações. Os bancos públicos – e também os fundos de pensões – devem unir-se para criar uma espécie de “Eximbank”, que efetivamente alavanque as exportações do país.

Cabe terminar enfatizando que a constituição de um novo modelo de crescimento pressupõe também uma nova forma de tratamento de gestão de governo. É fundamental discutir e deliberar, em fóruns democráticos coordenados pelo governo, os principais caminhos a ser trilhado. Trata-se de valorizar a difícil engenharia da negociação entre as representações de classe e do setor público. Nesse contexto, a CUT, com seu perfil de luta, propositiva e de negociação, pode exercer um importante papel na construção do novo modelo.

Jacy Afonso de Melo é funcionário do Banco do Brasil, diretor do Sindicato dos Bancários de Brasília e tesoureiro da CUT Nacional. [email protected]