Internacional

Mercosul ganha importância neste primeiro ano do governo Lula

O Protocolo de Ouro Preto, assinado em 1994, aprovou os passos e medidas para a finalização da zona de livre comércio. Criou a Comissão de Comércio do Mercosul (CCM), com a função de cuidar da adequação tarifária e da implantação definitiva da União Aduaneira; manteve uma estrutura negociadora ampla e detalhada; ampliou o papel da Comissão Parlamentar Conjunta (CPC); criou um organismo consultivo de representação da sociedade, o Foro Consultivo Econômico-Social (FCES). Outra decisão importante foi a opção por um modelo de regionalismo aberto, materializado pelo início de negociações com a União Européia (UE) e na Área de Livre Comércio das Américas (Alca).

Teoricamente, o bloco progredia em seus objetivos iniciais e se preparava para avançar no tratamento dos temas macroeconômicos, políticos, sociais e estruturais. Mas, de fato, não se implementou boa parte do acordado porque a “harmonização macroeconômica” foi subordinada às políticas nacionais de estabilização financeira – em que a sobrevalorização cambial ocupou papel central – e as possíveis medidas para promover a integração produtiva e melhorias nos indicadores sociais ficaram subordinadas às de ajuste fiscal. Em função disso, não se adotaram políticas integradas de financiamento, tributação e relacionamento com os organismos financeiros internacionais; não se avançou na construção de mecanismos de solução de controvérsias; e manteve-se uma estrutura institucional de baixo perfil, que passou a tratar de uma agenda de pouco peso político, porque limitada em sua capacidade de decisão. Além disso, o quadro tarifário externo passou a ser sabotado por medidas nacionais unilaterais visando à estabilidade de preços e aos interesses das empresas líderes de algumas cadeias produtivas – situação que não só fez retroceder o estágio até então alcançado pela união aduaneira como tornou mais vulnerável a relação externa do bloco.

Inequivocamente, os resultados comerciais foram exitosos no período 1994 a 1997 – cresceram mais de sete vezes. Mas a composição da balança comercial revelava a fragilidade do processo: mais de 90% do comércio se dava entre Brasil e Argentina, mais de 40% dessas transações eram intra-empresas, encabeçadas pelo setor automobilístico (que representava mais de 30% do comércio de bens acabados), e, devido à política de supervalorização cambial, os dois maiores sócios acumulavam um também espetacular déficit comercial extrabloco.

Essas escolhas debilitaram o processo de integração e, quando os níveis de comércio começaram a cair, em 1999 (refletindo em parte o desmonte produtivo anterior e a desvalorização cambial brasileira), os conflitos comerciais localizados se amplificaram, atingindo esferas mais amplas. Em 2001, enquanto o Brasil recuperava alguns níveis de estabilidade, o intercâmbio comercial retrocedeu a patamares impensados e a crise econômica e social se aprofundou nos demais países – culminando com o cacerolazo argentino. Em 2002 o processo negociador estagnou, explicitando a fragilidade do Mercosul e suas dificuldades para sobreviver como bloco em meio ao modelo de regionalismo aberto adotado.

O aguçamento da crise social nos países do Mercosul evidenciou a necessidade de revisão de resistências anteriores à maior participação dos Estados na formulação de políticas regionais para a retomada do processo de construção do bloco. Não por acaso, nas duas reuniões dos presidentes do Mercosul em 2002 (ainda com Fernando Henrique Cardoso, Eduardo Duhalde, Jorge Batlle e Luiz Gonzáles Macri), as principais resoluções disseram respeito a temas sociais (como a Declaração contra o Trabalho Infantil) e à estrutura institucional (a criação da Secretaria Técnica do Mercosul e a aprovação do Protocolo de Olivos, constituindo o Tribunal do Mercosul).

Se alguém ainda tinha dúvida, a crise do Mercosul deixou claro que sua viabilidade depende de profundas mudanças na gestão das políticas nacionais que o conduziram até 2002 e que a reabilitação de natureza estratégica e geopolítica para o estabelecimento de relações comerciais externas mais equilibradas e menos predatórias – na Alca, na Organização Mundial do Comércio (OMC) e com a UE – depende de seu êxito como bloco regional e motor de uma integração do continente sul-americano.

Ampliar os conceitos e mudar os objetivos

Para os que acompanham de perto os caminhos que o Mercosul tem trilhado, soam como música o enfoque e a importância que o governo do presidente Lula vem lhe dando. Sua afirmação, já no discurso de posse, quanto à prioridade desse projeto na política externa brasileira e as declarações e ações posteriores, reforçadas e ampliadas pela postura semelhante adotada pelo governo argentino (ainda com Duhalde e principalmente agora, com Néstor Kirchner), denotam com muita clareza as enormes possibilidades de que a retomada do processo seja real, e não retórica, como ocorreu em momentos passados.

O primeiro passo veio com o lugar de destaque que o Mercosul ocupou nas eleições presidenciais do Brasil, da Argentina e também do Paraguai e a decisão dos eleitos em priorizar e fortalecer o bloco, finalizar a construção da União Aduaneira e avançar rumo a um mercado comum. Novo avanço ocorreu com as declarações bilaterais firmadas por Lula e Kirchner, anunciando uma série de medidas e iniciativas que culminaram com a divulgação do documento Consenso de Buenos Aires – propositadamente um contraponto ao Consenso de Washington –, em outubro passado, quando Lula esteve em visita à Argentina. Além de reafirmar e solidificar o Mercosul, o texto afirmou a vontade de prosseguir a estreita coordenação bilateral na busca de acordos equilibrados não só com os demais sócios como também com a Comunidade Andina, rumo a um acordo sul-americano.

A tarefa, porém, não é simples. Afora os problemas objetivos já apontados, é preciso superar os subjetivos, como a baixa credibilidade gerada pela sucessão de crises e pelo baixo grau de internalização das decisões já tomadas. A superação da crise econômica e social exige mudanças políticas macro e a recuperação da credibilidade impõe a adoção de um conjunto de medidas concretas, visíveis, que enfrentem os problemas mais agudos e sejam incorporadas rapidamente pelos quatro Estados Partes.

Existem decisões e propostas para tudo isso, mas é preciso efetivá-las e ampliá-las sob a ótica de novos conceitos e objetivos.

No campo econômico, não basta aplicar a agenda Mercosul 2000, aprovada em Florianópolis pelos presidentes naquele ano. É preciso ir muito além dos termos nela estabelecidos, como por exemplo promover o monitoramento da conjuntura econômica e a harmonização macroeconômica para dar cumprimento a metas fiscais e financeiras (boa parte delas exigências do FMI), e com isso garantir a estabilidade – entendida como o remédio para a crise e descontinuidade do processo. Da mesma forma, a integração de cadeias produtivas regionais através dos Foros de Competitividade não será exitosa se tiver como foco central a formulação de acordos de equilíbrio comercial e a resolução de conflitos setoriais.

Sem dúvida esses dois temas são cruciais para o futuro e a consolidação do projeto Mercosul, mas para alcançar a coordenação macroeconômica é preciso que se integrem (e não apenas se harmonizem) as políticas cambial, tributária e fiscal, assim como a atração de investimentos externos deve ter como objetivos o desenvolvimento da produção e a geração de um mercado regional de consumo. A atração desses investimentos tem de se basear no estabelecimento de parâmetros e regras comuns – para impedir a guerra fiscal e o crescimento apenas do comércio intra-empresas e fortalecer uma política comercial externa comum.

A estabilidade e a integração macroeconômica são meios que têm de estar voltados para a implementação de políticas de geração de emprego e renda e para a redução da exclusão social. Problemas centrais que se resolvem a médio e longo prazo, mas precisam ser tratados com medidas sociais emergenciais imediatas.

O documento Objetivo 2006, que foi apresentado pelo presidente Lula na reunião de agosto em Assunção e deverá ser alvo de novo debate na Cúpula de Presidentes de dezembro em Montevidéu, não só reafirma a decisão de avançar na construção do Mercosul como aponta objetivos políticos e sociais muito claros.

O Foro Consultivo Econômico-Social (FCES) foi chamado a opinar sobre o plano e deve apresentar algumas propostas nesse sentido. A CUT e as demais centrais sindicais que integram a Coordenadora de Centrais Sindicais do Cone Sul (CCSCS) têm total acesso e espaço para propor e sugerir, tanto por meio do FCES, do qual participam, como do diá-logo direto com os governos, caso não consigam consensar todas as suas propostas com as entidades empresariais que integram esse foro.

Atuando no Mercosul desde sua fundação, a CCSCS tem uma bagagem importante de análises e propostas que encontram espaço muito mais significativo na atual conjuntura política do Mercosul. Trata-se, portanto, de aceitar esse desafio e, nos casos em que for possível e sem abrir mão de sua autonomia política e reivindicativa, colaborar para sua implementação.

Algumas propostas

Para avançar não basta voluntarismo, nem dos governos, nem dos atores econômicos, sociais e políticos. Para contribuir nesse debate, sem a ambição de abarcar o conjunto dos problemas, quero concluir o artigo listando algumas idéias e propostas que o sindicalismo do Mercosul formulou e incluiu em documentos públicos desde 1994, com vistas a ajudar na concretização de algumas das metas propostas pelo Objetivo 2006.

- Política Social
Um dos instrumentos propostos por Lula e Kirchner para enfrentar os problemas sociais é o Instituto Social, que pode fornecer insumos para a formulação de políticas públicas regionais do Mercosul nos Estados Partes. Nesse sentido, deve atuar em matérias e programas que visem à integração social; à melhoria e universalização da educação e da saúde; ao combate ao trabalho infantil, à violência e à prostituição infantil; à igualdade de oportunidades.

Mas, em matéria de política de promoção social, o Instituto Social é um ator coadjuvante que só poderá atuar se os governos aliarem metas sociais ao conjunto de metas fiscais, monetárias e financeiras. A responsabilidade fiscal pode ser uma que tanto se fala e deve ter um endereço: equipar o Estado para a execução de políticas públicas essenciais.

O Instituto deve integrar um conjunto de programas de cooperação social, articular os centros de pesquisa e formulação de políticas sociais, desenvolver indicadores sociais harmonizados – e deveria contar com um conselho tripartite para definir suas prioridades e avaliar suas atividades.

- Promoção dos direitos trabalhistas
Em 1998 os governos do Mercosul aprovaram a Declaração Sociolaboral, documento que definiu um conjunto de padrões sociais e trabalhistas que devem ser aplicados pelos Estados Partes. Com a perspectiva de liberar a circulação de pessoas até o final de 2004, será preciso revisar e adequar a declaração à nova situação. Por conseqüência, a Comissão Sociolaboral (CSL), organismo tripartite criado para dar seguimento à aplicação da declaração, terá de ser dotada de poder político e coercitivo para garantir o cumprimento das normas.

- Integração produtiva e emprego
Até o momento, o único instrumento apresentado para promover a produção é o Foro de Competitividade e Integração das Cadeias Produtivas, espaço setorial tripartite espelhado na experiência brasileira. Sua prioridade deve ser inequívoca: integrar a produção e o comércio para promover a geração de emprego e renda e, como conseqüência, aumentar a capacidade exportadora da região. A integração da cadeia produtiva pode ser a via para incorporar a micro e pequena empresa ao comércio regional e, desta forma, elevar a geração de empregos. Para que isso ocorra, no entanto, o Fundo de Financiamento, ora em construção, terá de estabelecer essas prioridades, além de apoiar o desenvolvimento tecnológico e a qualificação profissional.

Para aumentar e integrar a produção, os Foros de Competitividade devem incluir na agenda negociadora temas ligados não só à produtividade, mas também à elevação da renda e dos benefícios sociais, à geração de empregos de qualidade e à melhoria das condições de trabalho.

Esses temas e outros mais específicos devem fazer parte da pauta de discussões da Conferência Regional de Emprego do Mercosul, que se realizará em março de 2004 e deve aprovar um conjunto de sugestões e diretrizes para os Estados Partes visando à geração de empregos.

- Relacionamento externo
As negociações externas (na Alca, com a UE e na OMC) devem ser estabelecidas a partir das necessidades e interesses do Mercosul, e não o inverso. Para isso, é fundamental que se atue e negocie como bloco, que se ampliem os acordos e os esforços para a criação de uma associação econômica e comercial na América do Sul – usando inclusive a Associação Latino-Americana de Integração (Aladi) como moldura e espaço para essas negociações – e que, além da transparência completa nas negocia-ções, os quatro governos assumam o compromisso de consultar a sociedade antes de assinar acordos que envolvam países centrais e economias mais poderosas que as nossas.

Outro aspecto essencial na política externa é o estabelecimento de intercâmbio e cooperação com outros países em desenvolvimento do Hemisfério Sul (como por exemplo a articulação com a Índia e a África do Sul, com a China e a Rússia e o aprofundamento da experiência exitosa do G-20 na reunião da OMC em Cancún).

- Aprofundamento da integração institucional e da democracia
Além da estruturação da Secretaria Técnica do Mercosul e da aprovação do Protocolo de Olivos (o Tribunal do Mercosul), é preciso reestruturar e articular as agendas dos diferentes âmbitos e espaços de negociação, para avançar nos aspectos mais abrangentes do processo e otimizar recursos.

Outra medida fundamental é a criação do Parlamento do Mercosul. A proposta foi lançada pelo presidente Lula ainda no primeiro semestre e, apesar do baixo perfil da Comissão Parlamentar Conjunta do Mercosul em todos esses anos, o projeto vem avançando rapidamente. A Seção Brasileira da CPC, presidida atualmente pelo deputado petista Doutor Rosinha, impulsionou o debate de um projeto que fixa dezembro de 2004 como data de aprovação do Parlamento Mercosul, que deverá estabelecer-se sobre os princípios da democracia, representatividade, eleição direta nos países e definições de atribuições e níveis de decisão. Além disso, na reunião extraordinária do Conselho do Mercado Comum em outubro, em Montevidéu, aprovou-se a proposta da CPC de que as recomendações e/ou decisões em algumas matérias específicas sejam previamente submetidas à comissão antes de sua conclusão.

Por fim, é indispensável que se fortaleça e se valorize o papel do Foro Consultivo Econômico-Social do Mercosul. Organismo de representação da sociedade civil criado pelo Protocolo de Ouro Preto e instalado por iniciativa de entidades sindicais, empresariais e de outras áreas sociais dos países do Mercosul em 1996, seu funcionamento (precário do ponto de vista material) tem sido custeado pelas entidades que o compõem. O primeiro parágrafo do Objetivo 2006 valoriza e ressalta a importância do FCES. Para que este cumpra seu papel, no entanto, é necessário que os organismos negociadores do Mercosul garantam-lhe as informações, os espaços de consulta e, sobretudo, as condições materiais para que funcione de forma democrática e equilibrada, ou seja, proporcionando igualdade de condições de participação às organizações empresariais e sociais. O FCES só poderá contribuir com o desenvolvimento do processo se tiver meios para se estruturar de forma eficiente e mobilidade para poder contatar os diferentes segmentos da sociedade.

A renovação política que vive o Mercosul pode ser ampliada. Um passo nesse sentido poderia ser a realização de uma Conferência Política e Social, na qual aspectos como os que foram aqui apontados e outros de maior envergadura possam ser debatidos entre os atores do Estado e da sociedade, para que o Mercosul avance e passe a ser parte do nosso cotidiano e instrumento para a cooperação e a solidariedade entre nossos povos.

Maria Silvia Portela de Castro é socióloga, mestra pelo Prolam/USP, coordenadora do Correio Sindical Mercosul e assessora da CUT e da CNM/CUT na área de relações internacionais