Cultura

A Editora Mulheres colabora efetivamente para a pesquisa de escritoras, publicando obras antes raras que, hoje, estão à disposição do público

A atuação da mulher brasileira no século XIX limitava-se praticamente à esfera familiar. Desde o nascimento ela era preparada para casar-se e constituir família, responsabilizando-se pelo lar e pela criação dos filhos. Logo, não havia necessidade de receber uma boa educação. Eram suficientes uma formação básica e um verniz cultural que garantissem a sua família um status na sociedade, apoiada em pilares patriarcais. No entanto, muitas não aceitavam esse restrito horizonte de expectativas e lançavam-se a uma vida com maior autonomia. E, apesar de uma sociedade tradicionalista, pautada por rígidas regras morais e com papéis bem definidos, houve mulheres que ousaram desrespeitar os limites do território das letras, eminentemente masculino, escrevendo em periódicos e publicando livros. Não raro utilizavam pseudônimos, inclusive masculinos, por motivos vários, entre eles se proteger de críticas acerca de sua insurgência.

Muitas mulheres oitocentistas foram escritoras, contribuindo com nossa história literária. Algumas de maneira singela, porventura reflexo do mundo acanhado ao qual pertenciam. Outras, no entanto, legaram-nos textos de alto valor literário, podendo ser lidos e apreciados mesmo nos dias atuais – isso, logicamente, quando é possível encontrá-los. A impressão que fica quando se estuda literatura é de que pouquíssimas mulheres escreveram antes das primeiras décadas do século XX, uma vez que não figuram em obras que tratam da literatura brasileira desse período. Ou, se escreveram, de que provavelmente não tenha sido uma produção digna de nota, surgindo apenas esparsas referências a uma ou outra autora que, em sua época, tenha recebido maior reconhecimento. As obras literárias realizadas por mulheres não integravam o cânone, logo, permaneciam à margem, uma literatura “esquecida”. Cumpre-se, como um posicionamento feminista, a revisão das “regras internas” que nortearam/norteiam o cânone e a inserção da produção literária feminina.

Assim como em outros países, no Brasil essa quase total omissão passou a ser questionada e, sobretudo a partir da década de 1980, o “resgate” de escritoras do passado mereceu especial atenção. Com isso, confirmou-se a existência de escritoras que, no século XIX, produziram em diferentes gêneros, desde diários, passando pela poesia, até romances. Algumas chegaram a alcançar prestígio, porém o tempo tratava de fazer com que desaparecessem, como se não tivessem de fato existido. Entenda-se tempo como eufemismo, uma vez que eram relegadas ao esquecimento por ação de uma sociedade machista e retrógrada, por certo preocupada com o mau exemplo dado pelas vanguardistas das letras.

Necessário então trazer novamente à luz obras há vários anos depositadas nos fundos das prateleiras de antigas bibliotecas, atacadas por insetos, muitas vezes sem algumas páginas, ou contar com o valioso auxílio de bibliófilos. Um trabalho árduo, que exige muita persistência e boa dose de paciência, requisitos indispensáveis para que os livros pudessem ser lidos, reavaliados e estudados. Em uma atitude semelhante à das escritoras do século XIX que se rebelaram contra idéias preestabelecidas sobre a participação literária das mulheres, também as pesquisadoras contemporâneas se dispuseram a reparar o silêncio em relação à escrita feminina e foram em busca do texto perdido.

Nesse sentido há que se destacar a importância do Grupo de Trabalho A Mulher na Literatura, da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Letras e Lingüística (Anpoll). Esse grupo congrega pesquisadores(as) que, em uma delicada tessitura, aplicam-se em recompor a história das mulheres no campo da literatura, bem como em relação à sociedade, percorrendo novamente os caminhos, detendo-se em alguns pontos, reavaliando, corrigindo, alterando de novo o percurso, agora com outros olhos, em uma contextualização que possibilite compreender com maior discernimento lacunas na trajetória das mulheres do século XIX.

Ao constatar a necessidade de rever a literatura dos oitocentos e a participação da mulher como escritora e de consolidar o Grupo de Trabalho A Mulher na Literatura, o maior desafio era ter acesso às obras. Estas  raramente passavam da primeira edição e tinham tiragem limitada, muitas vezes sendo publicadas às expensas das escritoras. Nesse contexto, em 1996 foi criada a Editora Mulheres, em Florianópolis, por iniciativa de três professoras da Universidade Federal de Santa Catarina, entre elas Zahidé Lupinacci Muzart, até hoje responsável pelo projeto. A proposta é editar ou reeditar livros de escritoras brasileiras e estrangeiras do século XIX e, também, ensaios sobre gênero – ou seja, além do resgate das obras, a editora se propõe a publicar livros de cunho teórico, necessários para uma melhor compreensão dos aspectos envolvidos na relação mulher–literatura do século XIX sob o prisma da atualidade. Compreender, por exemplo, a pertinência da frase de Simone de Beauvoir: “Ninguém nasce mulher: torna-se mulher”.

A Editora Mulheres colabora efetivamente para a pesquisa de escritoras, publicando obras antes raras que, hoje, estão à disposição do público leitor, o que sem dúvida facilita e, conseqüentemente, incentiva os estudos sobre a mulher e a literatura. O primeiro livro lançado pela editora foi uma edição fac-similar de Mulheres Illustres do Brazil, publicado pela primeira vez em 1899. Trata-se de uma escolha significativa, uma vez que a autora, Inez Sabino, foi árdua defensora da emancipação feminina e representava, no século XIX, papel equivalente ao das pesquisadoras de hoje, como demonstra este trecho da obra citada: “Faço, outrossim, salientar as que mais sobresahiram nas letras, a fim de que se conheça que houve alguem que amou a arte e viveu pelo talento, tirando-as, como as outras, da barbaria do esquecimento, para fazel-as surgir, como merecem, á tona da celebridade” (p. IX). A obra em questão procura destacar a atuação das mulheres não apenas na literatura como também em outras áreas sociais. Um século a separa de nós, mas os ideais permanecem incomodamente os mesmos, a mostrar que sua iniciativa não obteve o êxito que ela esperava alcançar.

O resgate de escritoras do passado recebeu impulso extraordinário com a publicação de Escritoras Brasileiras do Século XIX, organizado por Zahidé Lupinacci Muzart, com o apoio do CNPq. Este trabalho conjunto, que integrou pesquisadoras de vários pontos do país, ligadas a diferentes instituições, resultou em uma obra de referência com quase mil páginas, nas quais figuram 52 escritoras, como, por exemplo, Nísia Floresta, Ana Luísa de Azevedo Castro, Maria Firmina dos Reis, Rita Barém de Melo, Júlia da Costa, Josefina Álvares de Azevedo, Maria Benedita Câmara Bormann e Inez Sabino. Cada uma delas mereceu um estudo crítico e reprodução de excertos de sua obra, bem como sua localização – ou seja, as principais referências estão disponíveis para que o estudo das escritoras se efetive de maneira mais aprofundada. Ainda na série Ensaios da Editora Mulheres merece destaque a publicação de livros que tratam da questão de gênero, como Masculino, Feminino, Plural: Gênero na Interdisciplinaridade, organizado por Joana Maria Pedro e Miriam Pillar Grossi; Falas de Gênero: Teorias, Análises, Leituras, organizado por Alcione Leite da Silva, Mara Coelho de Souza Lago e Tânia Regina Oliveira Ramos. Há ainda dois livros traduzidos para o português de importantes pesquisadoras americanas: A Cidadã Paradoxal: as Feministas Francesas e os Direitos do Homem, de Joan W. Scott, e Emancipação do Sexo Feminino: a Luta pelos Direitos da Mulher no Brasil, 1850-1940, de June E. Hahner.

Também foram publicados várias obras, entre poesias e romances. No primeiro gênero, podemos citar Sorrisos e Prantos, da poetisa Rita Barém de Melo, com atualização de texto e introdução de Rita T. Schmidt; e Uma Voz ao Sul: os Versos de Maria Clemência da Silveira Sampaio, organizado por Maria Eunice Moreira. Entre os romances, há, por exemplo, os de Júlia Lopes de Almeida: A Silveirinha, com introdução escrita por Sylvia Paixão, A Viúva Simões, com atualização de texto e introdução de Peggy Sharpe, e A Falência, com organização e introdução de Elódia Xavier; além de A Rainha do Ignoto, de Emília Freitas, com organização, introdução e notas de Constância Lima Duarte.

Os relatos de viagem também constituem interessante leitura, pois oferecem uma visão de época com seus costumes e tradições e o entrechoque cultural em determinadas circunstâncias, tanto em relação a uma brasileira em terras estrangeiras quanto estrangeiras no Brasil. Há, portanto, livros como Itinerário de uma Viagem à Alemanha, de Nísia Floresta, com introdução de Constância Lima Duarte; Diário da Baronesa E. de Langsdorff, 1842-1843, com introdução de Miriam Lifschitz Moreira Leite, escrito quando ela veio ao Brasil em companhia de seu marido para os contatos necessários ao casamento do príncipe francês François d’Orléans com a princesa Francisca, irmã mais jovem de D. Pedro II. Citem-se ainda Peregrinações de uma Pária, de Flora Tristan, com introdução escrita por Roland Forgues, e Uma Colônia no Brasil, de Madame Van Langendonck.

Muitos outros livros poderiam ser ainda lembrados, no entanto, o que se impõe é destacar a relevância da iniciativa da Editora Mulheres: publicar tanto obras dedicadas ao resgate de escritoras do século XIX como ensaios sobre gênero, com a colaboração de pesquisadores(as) de valor. Esses estudiosos contextualizam as obras, responsabilizando-se por sua organização e pela escrita de textos introdutórios que oferecem importantes subsídios para tornar mais agradável e proveitosa a leitura. Esperamos sinceramente que, a partir de agora, as mulheres brasileiras dêem seqüência aos projetos ligados à linha de pesquisa literatura–mulher, para que não se repita um hiato semelhante ao da iniciativa de Inez Sabino até nossos dias.

Rosana Cássia Kamita é professora do ensino público no Paraná, doutoranda na UFSC. Seu projeto de pesquisa é sobre as escritoras paranaenses do século XIX