Sociedade

Bispo da cidade de Goiás, antiga capital do estado, durante 31 anos e prelado de Conceição do Araguaia, no Pará, acompanha as lutas de índios e trabalhadores desde os anos 1970

Bispo da cidade de Goiás, antiga capital do estado, durante 31 anos e prelado de Conceição do Araguaia, no Pará, dom Tomás acompanha as lutas de índios e trabalhadores do campo desde o início dos anos 70, quando ajudou a criar o Conselho Indigenista Missionário (Cimi) e a Comissão Pastoral da Terra (CPT), da qual hoje é presidente

Há quem diga que a transição brasileira para uma democracia social não termina nunca, porque não temos clareza de aonde desejamos chegar. Na sua avaliação, avançamos no primeiro ano de governo Lula?

Bispo da cidade de Goiás, antiga capital do estado, durante 31 anos e prelado de Conceição do Araguaia, no Pará, dom Tomás acompanha as lutas de índios e trabalhadores do campo desde o início dos anos 70, quando ajudou a criar o Conselho Indigenista Missionário (Cimi) e a Comissão Pastoral da Terra (CPT), da qual hoje é presidente

Há quem diga que a transição brasileira para uma democracia social não termina nunca, porque não temos clareza de aonde desejamos chegar. Na sua avaliação, avançamos no primeiro ano de governo Lula?

Temos de contabilizar avanços. Do lado em que me situo, o do povo, houve compreensão, tolerância, e não repressão. O governo Fernando Henrique, num certo momento, criminalizou, colocou a Polícia Federal para reprimir. Nos primeiros incidentes ocorridos no governo Lula, ocupações de terra, ocupação do Incra de Mato Grosso, vidro quebrado, não houve repressão. Aliás, isso acarretou pedido de cabeça de ministro, do presidente do Incra por parte da grande imprensa, como nos artigos da Dora Kramer, que é a intérprete desse pessoal.

Esse é um dado muito importante da mudança. Por sua vez, o movimento entrou numa linha de reivindicação, se colocando como se estivesse na mesma trincheira de luta que o próprio governo, não do lado oposto.

Desde o início dos anos 70, com a criação do Cimi, em 1973, e mais tarde, com a criação da CPT, em 1975, você acompanha as lutas dos índios e dos trabalhadores do campo e participa delas. O Plano Nacional de Reforma Agrária apresentado pelo governo conseguirá efetivamente modificar a estrutura fundiária do país?

Está em teste. A meta foi reduzida, mas nos próximos meses o governo deve começar a assentar 150 mil pessoas. E aí paira uma grande dúvida. Não se trata só do desaparelhamento do Incra, que com todas as suas limitações definiu a reforma agrária na linha constitucional, da desapropriação. Há o receio quanto à utilização ou não desse instrumento, da possibilidade de que, a pretexto de corrupção ou de inoperância, o órgão venha a ser suprimido. Não a supressão para criar outro órgão, como aconteceu com o SPI, que deu origem à Funai, mas uma alteração que mude o conceito de reforma agrária. Por isso digo que está em teste.

A meta original de assentar 1 milhão foi reduzida para 500 mil nos quatro anos. É o caminho constitucional de mexer na estrutura fundiária ou um Banco da Terra com outro nome e portanto outros instrumentos? O Fórum de Reforma Agrária, que fez com que Lula viesse ao encontro da Marcha e assumisse o compromisso de fazer a reforma agrária, está observando o comportamento do governo. De repente é uma proposta com esses números, mas numa linha que não coincide com a opção daqueles que são sujeitos, autores e destinatários da reforma agrária, os camponeses.

Quando você se refere a essa fase de teste, estamos tratando do limite do governo para pôr em prática o compromisso assumido por Lula em Brasília, diante da Marcha dos Sem-Terra, ou o movimento social está testando o limite do arco de alianças que sustenta o governo Lula?

Muita coisa está dentro do arco, que não é bem o arco-íris... O agronegócio continua sendo talvez o elemento perturbador da reforma agrária. Do ponto de vista econômico, de um lado, a reforma agrária e, do outro, o agronegócio. Uma representa lucro cessante e o outro são divisas para o Brasil. É claro que por trás desse lucro cessante há uma dívida com negros, camponeses, índios, e também significa investimento, pois é o Brasil olhado para dentro de si, o seu mercado consumidor e produtor.

Já o agronegócio é uma minoria produzindo e concentrando, e o resto da população vivendo de migalhas. E há ainda o alto custo para o meio ambiente – o arrebentamento do cerrado, interferências no Pantanal, destruição da floresta. Esse é o elemento perturbador número um. Quando o bispo amaldiçoou o agronegócio, para muitos pareceu que optou pelo atraso. Na realidade, uma opção exclusiva e unilateral pelo agronegócio é uma perda total de todos os valores que estão embutidos na convivência com a mãe terra, na valorização de nossos mananciais, no problema da água e, sobretudo, do homem. Nós temos raízes ligadas ao chão que vão além de nossos quinhentos anos, e a reforma agrária seria uma resposta a isso.

A agroindústria responde por uma parcela importante da pauta de exportações do país. Isso confere ao agronegócio um peso considerável nas decisões de governo. Levando-se em conta que um país como o Brasil, para se desenvolver do ponto de vista da agricultura, não pode abrir mão dos avanços tecnológicos, há possibilidade de convivência entre uma agroindústria moderna e a agricultura familiar?

A questão nem é tanto agricultura familiar e o agronegócio, mas é o modelo. O modelo da agroindústria rejeita a agricultura familiar. É um modelo ortodoxo, coerente com as exigências do capital no campo, que acaba se contrapondo ao outro.

Como se definiria um outro modelo?

A partir da sabedoria indígena, eu definiria um modelo que segue a linha do humano, da participação, do respeito à terra, pois o agronegócio é o econômico e ponto. De forma que, para ser coerente, ele concentra o capital e exclui a mão-de-obra, tem máquinas sofisticadas para produzir cada vez mais, mesmo em detrimento da terra. Esse modelo se revelou incapaz de resolver o problema da fome mesmo produzindo muitos grãos, porque seu objetivo não é matar a fome.

Nosso modelo de desenvolvimento agrícola no Brasil é concentrador de terra, de renda e de tecnologia...

E de outro lado exclui a grande parcela da população que vive do campo e até o operariado. Paga mal, se possível usa o trabalho escravo. Há pouco assassinaram três fiscais em Minas Gerais.

A agricultura moderna do Brasil guarda um compromisso básico de qualquer país, que é matar a fome de seu povo? Como se relaciona esse modelo de agroindústria com o modelo alternativo, hoje vigente em grande medida na agricultura familiar?

Em princípio, não mata a fome. É um equívoco. Mesmo do Vaticano, que tolera os transgênicos por achar que eles visam matar a fome. Transgênicos visam lucro, hegemonia, concentração na mão de um só, talvez até de diversas empresas – gigantes se comendo mutuamente. O último a ser pensado é o faminto.

De forma alguma a reforma agrária pode excluir o agronegócio. Aí entra a grande responsabilidade do governo. A primeira é óbvia: salvar a mãe terra. Não aceitamos um governo que tolera a destruição do cerrado e de sua biodiversidade, que, segundo dizem, é mais importante para o equilíbrio do planeta que a própria Amazônia. O Cerrado é fragílimo, é quase invisível, para descobrir sua riqueza é preciso muita atenção.

As 1.500 nascentes do Rio São Francisco estão sendo destruídas com a monocultura do eucalipto, que, dizem, foi plantado para fazer carvão vegetal para as indústrias do aço. O Rio Pindaré, o Rio Grajaú estão baixando... O governo é responsável por isso. Ele pode ser o administrador econômico com a preponderância da justiça, e não abrir caminho para as empresas explorarem e produzirem divisas.

A segunda coisa é mesmo a dignidade do povo. Um povo que não participa, que é posto à margem como peão, trabalhador sazonal ou operário que faz trabalho em cadeia, não cresce. O agronegócio pode muito bem funcionar levando em conta esses elementos: a ecologia e a participação.

Isso não significa que a reforma agrária vai eliminar a utilização de novas tecnologias...

Reforma agrária não significa a volta à enxada. Pelo contrário, as experiências mostram grupos que de forma comunitária têm produzido o melhor produto da agroindústria, competindo até com a Parmalat – quando esta era considerada expressão do avanço tecnológico. É preciso responsabilidade do governo. Muitas vezes nos perguntamos se ele estaria atento a tudo isso ou sendo levado pela pressão do grande capital.

A CPT, organismo que você preside hoje e do qual foi co-fundador em 1975, tornou-se a principal fonte de referência de documentação sobre conflitos no campo no Brasil – o que em grande parte se deve ao trabalho sistemático e criterioso iniciado pelo padre italiano Mário Aldighieri. No primeiro ano do governo Lula, a imprensa divulgou que houve um aumento explosivo de ocupações e também de mortes de trabalhadores do campo em comparação com o período anterior. A que você atribui esse aumento da tensão no campo? E qual é a responsabilidade do governo federal nesses números?

O aumento é pelo lado positivo. Lula assumiu e criou uma expectativa. Era uma boa notícia para o campo, e o pessoal foi se credenciando à posse da terra. A forma tradicional dos que não podiam comprar a terra era ir longe, na posse mansa e pacífica. Hoje a posse tornou-se organizada, mais audaz até. Então, o número de ocupações dobrou, os acampados triplicaram. Tudo em função da expectativa. O pessoal dizia: “Agora é a vez da reforma agrária. Lula chegou, é nosso; a terra também é nossa”.

A reação não demorou do lado do latifúndio. As velhas organizações que pareciam defuntas, como a UDR, foram ressuscitadas e outras foram criadas, com milícias ostensivas, fechando rodovias. Os fazendeiros se uniram. É uma forma de pressionar o governo. A reação foi fulminante: 71 mortos, uma quantidade jamais vista nos tempos mais duros da ação do latifúndio contra os trabalhadores, além do coro da mídia contra os lavradores e suas organizações.

A CPT vem registrando há vinte anos esses conflitos, e ficamos assustados porque vinham de todos os cantos do país. O sistema de coleta é ligado às bases da própria CPT, que está distribuída em 22 regionais, uma rede bastante consistente. O que por essa rede é flagrado talvez ultrapasse o que a própria imprensa possa denunciar. Esse sistema existe não para promover a violência, mas é uma forma profética de denúncia, de apresentar a chaga para que venha a cura, da responsabilidade de todos, da sociedade e do governo.

Essa situação tem uma exceção: o trabalho escravo, que começou a ser erradicado logo no começo do governo Lula. O governo atuou de maneira muito satisfatória e, a meu ver, inibiu o crescimento.

A conclusão a que chegamos é que foi uma violência ligada à tensão que há entre o latifúndio – e acrescentaria também os interessados no agronegócio, que acaba sendo maior adversário da reforma agrária que o próprio latifúndio – e os trabalhadores, que, se antecipando, já passaram a selecionar áreas a ocupar para a reforma agrária.

Há mais de 25 anos o então ministro do Interior do governo Geisel se propôs a resolver o problema indígena por meio da emancipação. Dizia que em quinze anos não haveria mais índios no Brasil. Hoje a população indígena experimenta um crescimento substancial, talvez devido não só à resistência em suas terras, mas também às políticas públicas de saúde implementadas. No entanto, no início deste ano tivemos duas frentes de tensão bastante expressivas nos estados de Mato Grosso do Sul e Roraima. E durante o ano passado foram assassinadas 23 lideranças indígenas em todo o país. Como você avalia esse processo de demarcação das áreas indígenas nessas diversas regiões?

Se Lula contraiu uma dívida, foi com relação aos povos indígenas. A sucessão de fatos aponta na linha de retroceder até no que os índios já estavam conquistando, porque eles se organizaram. Têm organização nacional, conseguiram espaço na Constituição. E a situação no governo Lula não avançou. Podemos constatar isso ouvindo as melhores lideranças indígenas e até o próprio órgão ligado à Igreja, o Porantim, expressão do Cimi. Há uma mágoa grande, da qual eu compartilho. Infelizmente, áreas foram reduzidas. O ministro reduziu uma área caiapó e as demarcações não avançaram. A Funai continua como era antes, um órgão emasculado, sem nenhuma força. Enquanto isso, acontecem grandes negociações com os políticos. No caso de Roraima foi bem típico, com os interesses dos políticos locais, sendo que sua maior expressão, o governador Flamarion, passou para o PT, e depois teve toda aquela crise.
Justiça seja feita, Raposa Serra do Sol, em Roraima, está no caminho da desapropriação apesar de todas as pressões, apesar das cooptações vergonhosas que sempre se fazem com os índios, que são pobres e precisam de recursos. Nesse caso, o governo teve uma postura honesta.

O episódio de Raposa Serra do Sol expôs uma contradição entre vários setores: a população indígena, majoritariamente a favor da demarcação contínua da reserva, os fazendeiros, alguns índios cooptados que tiveram espaço na mídia para dizer que apóiam os fazendeiros numa demarcação descontínua, a Igreja, envolvida nesse processo desde dom Aldo Gurjão, que chegou lá no final dos anos 70, o governo e a população. Como você analisa esse painel?

À medida que nos aproximamos da área indígena, em qualquer parte do país, é grande a animosidade da população. Não podemos contar com a população circundante em favor dos índios. Mas o pior é o elemento político ligado aos interesses econômicos. São eles que têm acesso à mídia, que circulam, que vão de lugar em lugar formando opinião. Esse é o problema. Agora, a população indígena, felizmente, adquiriu um espírito de unidade, o que permitiu, por exemplo, a grande assembléia de 2000, comemorando os ditos 500 anos, com 3 mil representantes de todos os povos indígenas. Fenômeno inédito na história deste país, que terminou reprimido pela polícia de Fernando Henrique Cardoso.

Já as cooptações, sempre houve. Lembro de uma assembléia em Goiânia em que um índio tucano dizia chorando: “Eu lamento constatar que tenho irmãos, companheiros índios, alimentados a dólar”. Mas o importante é o governo federal. Sempre, na questão indígena, quisemos que a problemática fosse avocada à Presidência da República. Nem a um ministério, onde entram e saem os empresários, os interessados, os políticos. No caso citado, Raposa Serra do Sol, creio que o processo foi salvo devido a uma atitude coerente do governo Lula. Digo isso por justiça, mas não quero dizer que a questão indígena no Brasil está caminhando.

Nessa linha, não sei se seria pedir demais que, durante este governo, fosse revisto o Decreto 1.775 – produzido por Nelson Jobim, que considero o maior inimigo dos índios no Poder Judiciário –, que estabeleceu o contraditório. A partir daquele momento, foi barrada de forma definitiva a demarcação das terras indígenas.

Seria um ótimo serviço à história se a gente pudesse se livrar desse instrumento legal que favorece as invasões das terras indígenas pelas grandes empresas.

Você definiu a Funai como um órgão emasculado, sem força. Desde que foi criada, ela é sempre alvo de ataques de todos os lados, de fazendeiros, de lideranças indígenas e às vezes de antropólogos, estudiosos da questão indígena, missionários.Que perspectiva teríamos para a criação de um instrumento adequado à relação entre o Estado brasileiro e as comunidades indígenas?

Eu conheci a Funai quando era dirigida por generais. Era uma força, um poder comparável ao que a Petrobras tem hoje, tinha autonomia. Trata-se de um serviço a povos, não é um serviço social qualquer, não é uma LBA... Isso foi se diluindo, justamente para favorecer outros no jogo dos interesses, das pressões daqueles que têm acesso direto não só à mídia, mas também aos órgãos governamentais.

A questão indígena é ambígua. Por exemplo: não é possível pensar uma Funai dos índios, é coisa de governo. O governo não é um governo de índios, está a serviço dos índios e tentando pagar uma dívida, devido ao fato de lhes ter tomado a terra. É claro que é interessante ter uma presença dos índios num órgão como esse, mas isso gera ambigüidade porque há disputa também de poder entre eles, favorecimento tribal, familiar, doméstico... Não podemos, sob a forma de basismo, indigenismo, cair nisso. Seria uma ingenuidade.

Com relação aos demais segmentos citados, a tradição missionária depois de Medellín – não só católica, mas os evangélicos históricos, luteranos, presbiterianos etc. – pautou-se pela mesma linha. Acredito que grande parte do avanço das organizações indígenas deveu-se ao serviço do Cimi. Servir a eles como sujeitos, não mais como objetos de uma ação missionária caritativa, catequética, mas vendo-os como protagonistas da própria história.

Também respeito muito os antropólogos, depois de Darci Ribeiro, que teve a sensibilidade de perceber a cultura indígena como um marco fundador da cultura brasileira, da criação de nossa história. Esse conjunto foi chamado agora a atuar. Mantenho a esperança de que a política governamental mude com relação à situação dos povos indígenas. Há acenos dentro do próprio governo, depois de um tempo de ausência.

Com todas as contradições já apontadas, como se conduziu a ação do Ministério da Justiça?

O que não assimilamos bem é o fato de ser o Ministério da Justiça o encarregado dos povos indígenas. É por acaso um caso de polícia? Agora, esse ministro [Márcio Thomaz Bastos] foi um acerto, por sua capacidade, competência, humanidade. Graças a ele se avançou muito na erradicação do trabalho escravo. Ele é leal, claro, não escorrega, não é viscoso. Isso é muito importante, tratando-se de um ministério que é a ponta avançada do governo com relação ao próprio Judiciário. É um ponto a ser avaliado como altamente positivo, porque todas essas questões, quando se quer emperrar, se leva à instância judiciária.

Eu não digo que a desejada reforma do Judiciário seja a única solução, mas esperamos que essa visão nova, prudente, humana siga nessa linha. Não basta que Lula fale em “caixa-pretaa”, é preciso levantarmos elementos precisos com relação à desordem que todo mundo vê no Judiciário. A força para uma reforma do Judiciário virá a partir desses elementos visíveis, palpáveis e inteligíveis que acabam convencendo até os próprios elementos do Judiciário, apesar do corporativismo.

Em sua opinião, quais são as possibilidades de que o diálogo entre o governo e os movimentos sociais avance para a reforma agrária e a demarcação das terras indígenas?

Entramos em um terreno que não é neutro e é tenso. Porque é um terreno de correlação de forças, mesmo sendo o governo Lula. Entram vários elementos complicadores. Vou citar o exemplo da Marcha. Era uma mobilização autônoma. Os sem-terra fizeram duzentos quilômetros, com 1.500 pessoas, por reforma agrária. Eles tinham sérios motivos para temer um isolamento por parte do governo.

Nem tudo são flores dentro do governo Lula em relação a esses movimentos. Há tolerância, compreensão, mas acolher todas as suas reivindicações, propostas de políticas e sobretudo o que é exigido como prioridade é outra coisa. Sucedeu, porém, que o fórum teve o reconhecimento do governo, o próprio ministro Rossetto constatou a união de todas as organizações. Imagine, a Contag unida ao MST! Talvez fosse até mais interessante para o governo alimentar mais um setor, deixando o outro à própria sorte.

Há um fato que considero determinante: a base. O sindicato dos trabalhadores rurais tem sofrido a crise de todos os sindicatos do mundo. Recebeu uma oxigenação poderosíssima a partir das ocupações, o que contagiou todo mundo e fez com que todos, não pela busca de uma estratégia, mas como conseqüência mesmo de uma vivência, se sentissem juntos naquela hora histórica. Isso está definindo hoje o relacionamento. Os próprios movimentos populares sentem desvantagem na correlação de forças. Mesmo mais fortes, talvez os movimentos não conseguissem o que é possível conquistar com este governo, que, tendo em vista sua origem, vivência e sensibilidade, poderá atender às reivindicações. É o que no teste será observado, avaliado, cobrado e, conseqüentemente, poderá até produzir uma evolução no próprio processo de reforma agrária.

Tendo gerado muita expectativa, o desempenho da área social deixou a desejar no primeiro ano do governo Lula, segundo até seus mais ardorosos defensores. Você acredita que a unificação das políticas sociais agora no Ministério do Desenvolvimento Social, sob a coordenação de Patrus Ananias, pode mexer no perfil do governo?

Em minha opinião, o caminho não é por aí. O caminho seria o modelo do próprio governo. Sem deixar de ser competente na condução da política econômica, o governo deve ter um perfil social. Para mim, o que falta é mudar a face, que ainda é econômica. Ninguém me convence do contrário. De maneira que pode ser útil chamar Patrus Ananias, mas não é isso que vai mudar a cara do Brasil.

É preciso ter competência no econômico, porque este realmente é um quebra-cabeça, uma cilada. Lembro que, quando Fernando Henrique Cardoso teve sucesso com a reforma do real, o PT ficou perdido. Ninguém entendia como era possível acabar com a inflação. E hoje isso ainda prevalece, e talvez a euforia de estar um pouco dominando a charada possa acarretar um desvio de espinha dorsal, o que seria lamentável se acontecesse.

Hamilton Pereira é presidente da Fundação Perseu Abramo