Economia

O governo Lula tem enfatizado estrategicamente a geração popular de trabalho e renda

Durante os “trinta anos de ouro” (1945-75), assim chamados porque se caracterizaram por elevado crescimento econômico, ausência de crises e emprego quase pleno, emprego tornou-se sinônimo de trabalho. Nos países desenvolvidos, 80% ou mais da força de trabalho estava então a serviço de empresas capitalistas ou do setor público da economia. Em países semidesenvolvidos, essa porcentagem era menor, mas tendia a crescer pari passu com o desenvolvimento da economia. Por isso, as pessoas que estavam sem trabalho remunerado eram consideradas desempregadas, o que subentendia que estavam em busca de emprego, no setor privado ou público.

De lá para cá, tanto nos países desenvolvidos como nos semidesenvolvidos, a organização social do trabalho mudou. As empresas capitalistas reduziram drasticamente a mão-de-obra contratada, mediante a adoção de técnicas poupadoras de trabalho e da terceirização, isto é, da subcontratação de serviços de autônomos, empresas menores ou cooperativas. O setor público, condicionado pelo surto de neoliberalismo, que vê no gasto público o pior dos males, também terceirizou grande parte dos serviços-meio (que se destinam a apoiar a atividade-fim), reduzindo assim a quantidade de funcionários de carreira. Além disso, o crescimento das economias tornou-se claudicante, periodicamente interrompido por crises financeiras, o que diminuiu a demanda por força de trabalho das empresas.

O resultado dessas mudanças foi não apenas o desemprego em massa como também a multiplicação de outras relações de trabalho que não o assalariamento formal: trabalho por conta própria, individual, familiar ou coletivo (em cooperativas e associações), assalariamento informal e modalidades degradadas de trabalho, como o infantil e o escravo. Todas elas – consideradas atípicas em relação ao padrão emprego formal – se originam tanto da recusa pelos ex-empregadores de cumprir as obrigações decorrentes da legislação do trabalho como da iniciativa de pessoas “desempregadas” de gerar a renda de que necessitam por meio de atividades por conta própria.

Portanto, emprego e trabalho já não são sinônimos. Emprego formal escasseia cada vez mais, porém trabalho atípico tende a aumentar, tornando-se crescentemente a única alternativa com que os trabalhadores contam, não só os de escolaridade e renda baixas, mas também os que têm diploma universitário. “Em cada dez ocupações geradas entre 1989 e 1995, apenas duas eram assalariadas, ante oito não-assalariadas, sendo quase cinco por conta própria e três de ocupações sem remuneração. Enquanto as ocupações sem remuneração apresentaram uma taxa de variação média anual de 5%, os trabalhadores por conta própria registraram 3%, os empregadores 0,8% e os assalariados 0,48%. (...) Os empregos assalariados sem registro apresentaram, por sua vez, taxa de crescimento média anual de 3,12%. Em razão disso, ocorreu uma geração média anual de 541,5 mil empregos assalariados sem registro no mesmo período em exame e uma perda total estimada em 350 mil empregos assalariados com registro.”1

A geração capitalista de trabalho e renda

A criação de postos de trabalho não se dá mais predominantemente por meio da acumulação de capital em empresas privadas, mas também por meio da iniciativa popular. Há portanto um processo dual, com duas componentes, cada uma com a própria lógica.

A geração capitalista de ocupação obedece, no fundamental, ao crescimento da demanda efetiva (total) por bens e serviços e da produtividade do trabalho. Se em determinado ano a demanda efetiva crescer 3% e a produtividade do trabalho também 3%, a geração líquida de ocupação será zero, pois a mesma força de trabalho ocupada produz 3% a mais do que um ano antes. De forma geral, a geração de postos de trabalho, no setor capitalista privado, constitui o diferencial entre o aumento da demanda e o da produtividade do trabalho.

A expansão da demanda efetiva por bens e serviços depende de diversos fatores, dos quais os mais importantes são: a variação do tamanho da população, o gasto dos consumidores e das empresas, que por sua vez é determinado pela variação da renda da população economicamente ativa e pela disponibilidade e custo do crédito. A esses fatores se acresce a despesa pública do governo federal, estadual e municipal.

A demanda efetiva é influenciada por decisões de política econômica, sobre oferta de crédito, taxas de juros e gastos públicos. Pode-se admitir que o crescimento populacional varia pouco no curto prazo, de modo que, de ano a ano, a demanda efetiva varia fundamentalmente em função do crédito e dos juros (política monetária) e do montante do gasto público em relação à arrecadação tributária (política fiscal). Como o Brasil exporta cerca de um décimo de seu Produto Interno Bruto, a demanda externa por nossas exportações também exerce influência, mas menor que a das duas políticas governamentais.

A variação da produtividade do trabalho resulta da incorporação de nova tecnologia pelos ramos de produção. Quanto maior a competição entre as empresas instaladas no país e entre elas e as que exportam para cá, tanto maior será a incorporação de tecnologia nova, pois esta permite abaixar os custos e portanto alcançar maior competitividade. A abertura do mercado às importações, desde 1990, foi certamente um dos fatores que mais contribuíram para o rápido crescimento da produtividade do trabalho, tanto na indústria como na agricultura, o que levou à destruição de milhões de postos de trabalho. Convém observar que o setor de serviços é pouco atingido pela abertura do mercado, pois a maioria dos serviços tem de ser consumida no local e no momento em que é produzida, e por isso não pode ser comercializada internacionalmente.

A geração capitalista de trabalho e renda depende, pois, de políticas públicas, que são intensamente disputadas pelo capital financeiro (aplicado em ativos financeiros) contra o capital produtivo (aplicado na produção e distribuição) aliado aos trabalhadores. Enquanto os últimos lutam para que o governo adote políticas monetária e fiscal expansivas, o primeiro teme que a queda do desemprego acarrete pressões por aumentos de preços e salários, que acabariam resultando em inflação. Os capitalistas financeiros abominam a inflação porque ela desvaloriza seu capital e tende a se tornar permanente; os capitalistas produtivos e os trabalhadores também não gostam de inflação, mas acham o desemprego e a quase estagnação piores.

A geração popular de trabalho e renda

Em todos os países em que a pobreza é grande e está concentrada no espaço existe uma profusão de microempresas e de associações produtivas, que oferece à venda bens produzidos em geral artesanalmente – roupas, calçados, comida, brinquedos, enfeites, bijuterias etc. – e serviços comerciais, de limpeza, jardinagem, reparações diversas, muitas vezes realizados no domicílio do freguês. Além de serviços financeiros, prestados por agiotas ou agentes de clubes de poupança, e de saúde, prestados por curandeiros, vendedores de ervas medicinais etc. Essas atividades constituem a economia popular, cuja característica distintiva é que produtores, intermediários e consumidores pertencem às classes populares, isto é, são pobres.

A volta do desemprego em massa e do trabalho precarizado, que se dá no Brasil a partir dos 1980, multiplica a pobreza e conseqüentemente enseja a expansão da economia popular. Penetram nela milhões de novos pobres, pessoas que perderam empregos formais e lançam mão de suas economias e Fundo de Garantia para iniciar algum negócio por conta própria. À mesma época, a Cáritas começou a promover Projetos Alternativos Comunitários (PACs), capitalizados por fundos rotativos. São milhares de grupos de produção pelo Brasil afora, no campo e nas cidades, que inserem grande número de pessoas em atividades produtivas. A partir de meados dos 1990, surgem em dezenas de universidades Incubadoras de Cooperativas Populares, que ajudam grupos comunitários a desenvolver coletivamente atividades econômicas.

A economia popular se divide conceitualmente em duas partes: a pequena produção de mercadorias, formada por microempresas individuais ou familiares, e a economia solidária, constituída por agrupamentos cooperativos, que repartem igualitariamente o poder de decisão e os ganhos entre seus membros. A diferenciação entre as duas economias é de grau, pois a pequena produção também exibe ocasionalmente práticas solidárias, como a ajuda mútua entre microempresários. Na economia solidária, cooperação e ajuda mútua são praticadas sistematicamente, sendo a principal razão de ser das sociedades. Por isso, tem cabimento falar de uma economia popular e solidária, que, sem ser homogênea, tem por base comum o pertencimento às classes populares.

Sendo fruto das crises do capitalismo e de sua incapacidade de absorver o conjunto da população que precisa trabalhar para viver, a economia popular e solidária cresce em função de uma dinâmica negativa externa a ela. Mas os esforços para desenvolvê-la geram trabalho e renda, na medida em que conseguem organizar novas atividades produtivas. Como a recuperação de empresas em crise terminal, mediante sua tomada pelos ex-empregados, organizados em sociedades ou coope­rativas. São hoje centenas de empresas recuperadas, em que se preservam dezenas de milhares de postos de trabalho. Ou a conquista de terra para cultivar por meio da reforma agrária. Já há meio milhão de famílias assentadas, produzindo em seus lotes em forma individual ou associada, além de duas centenas de milhares acampadas, à espera dos próximos avanços da reforma agrária.

Clubes de troca, que desempenharam papel crucial na crise argentina de 2002, vão se multiplicando nos bairros populares. Cada um adota uma moeda “social” própria, que é aceita em confiança pelos membros para transacionar entre si bens e serviços. Assim, mesmo quando a moeda oficial é arrochada, produtores populares em seus clubes criam mercado para eles através de um meio circulante próprio, que cresce à medida que aumentam seu número e o valor de suas transações. Papel semelhante desempenham bancos do povo e cooperativas de crédito, que suprem as necessidades de financiamento de microempresários e empreendimentos solidários, permitindo-lhes expandir suas atividades e gerar postos de trabalho. O Projeto Palmas, por exemplo, num bairro popular de Fortaleza, uniu de forma criativa um banco emissor de moeda social com a prestação de microcrédito, expandindo a economia comunitária e ensejando a formação de novas cooperativas.

A geração de trabalho e renda por iniciativa popular se dá em formas próprias, distintas das que promovem a acumulação de capital nas empresas privadas. Nestas, a produção só é aumentada quando há sinais seguros de que a demanda está crescendo. Na economia popular e solidária, o aumento da produção resulta da multiplicação dos que precisam trabalhar. Quando são muitos os que decidem iniciar atividades produtivas, oferta e demanda se expandem simultaneamente, pois cada novo produtor gasta o que ganha para sustentar a si e sua família.

Na economia capitalista, a acumulação de capital cria nova capacidade produtiva, cujo aproveitamento eventual gera novos postos de trabalho. Na economia popular e solidária, a capacidade produtiva já está lá, mas desaproveitada pelo capital. Quando ela é ativada, mediante a recuperação de empresas, a distribuição de terra ociosa, a formação de clubes de troca, a incubação de cooperativas e/ou a expansão do microcrédito etc., o resultado é a geração de trabalho e renda. Pelos dados apresentados por Pochmann, fica claro que a grande maioria dos novos postos de trabalho, criados nos 1990, se encontra na economia popular e solidária e nos setores terceirizados e precarizados da economia capitalista.

Políticas de geração de trabalho e renda

As políticas que visam a geração capitalista de trabalho e renda são as mesmas que promovem o crescimento da economia toda. São as políticas que ampliam a oferta de crédito, a juros baixos, e expandem o gasto público em programas habitacionais, em transporte de massas urbano (metrô), em saneamento básico, em assistência à saúde e em educação. Ao fazer a economia crescer, essas políticas automaticamente geram trabalho e renda, a não ser que a produtividade do trabalho aumente mais que o total produzido. Portanto, para que o setor capitalista de fato gere trabalho e renda, é preciso que o ritmo de crescimento da produção supere o da produtividade.

Para promover a geração popular de trabalho e renda, o essencial é a ação do próprio movimento da sociedade civil de organização e aprimoramento da economia popular e solidária. Não se trata, como na economia capitalista, de fazer com que as empresas empreguem mais gente, pois as microempresas e as cooperativas ou sociedades se expandem ou se multiplicam conforme aumenta a quantidade de gente necessitada de trabalho remunerado. Na economia popular e solidária, a pobreza dos agentes limita fortemente o montante de capital investido por lugar de trabalho, o que restringe a competitividade dos empreendimentos e portanto os mercados em que ela tem condições de penetrar.

A expansão da economia popular e solidária se dá apenas em mercados em que há pouca economia de escala e pouco capital por trabalhador. Ora, mercados com tais características são em número limitado, de modo que, quando a economia se expande, esses mercados tendem a saturar, fazendo com que despenque o nível de ganho dos trabalhadores. Para gerar trabalho e renda decentes (na consagrada expressão da OIT), é necessário que os empreendimentos populares e solidários qualifiquem melhor seus trabalhadores e possam se capitalizar mais, para poder atuar em mercados novos, não saturados.

Isso requer políticas como o Plano Nacional de Qualificação do Ministério do Trabalho e Emprego, que destina recursos especificamente para a capacitação de trabalhadores da economia solidária. O MST tem investido na qualificação de seus membros, através de convênios com universidades, além da construção de um sistema próprio de ensino para os assentados. O Proninc (programa nacional de incubadoras), sustentado por Senaes, Finep, Fundação Banco do Brasil, Banco do Brasil e Coepe, financia projetos das incubadoras universitárias de cooperativas, que incluem entre suas atividades a capacitação dos cooperados.

A capitalização da economia popular e solidária requer crédito direcionado a ela, com juros, prazos e garantias adequados. São exemplos o Pronaf, programa de microcrédito dirigido a diversas categorias de agricultores familiares; o Proger urbano e outros programas financiados com recursos do Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT); programas de microcrédito (como o Credi-Amigo do Banco do Nordeste do Brasil) dirigidos a microempresas, garantidos por grupos de aval solidário e operados por agentes de crédito, que além da intermediação financeira assistem os mutuários.

O governo de Lula tem enfatizado a geração popular de trabalho e renda como sua principal estratégia, mesmo porque no setor capitalista a geração de trabalho e renda está restringida pela limitação do gasto público em função do grande superávit primário. Uma medida fundamental, adotada em julho do ano passado, foi a abertura dos bancos públicos aos mais pobres, que poderão receber créditos sem ter de oferecer garantias. Só a Caixa Econômica Federal abriu 1,2 milhão de contas no último meio ano. O Banco do Brasil criou o Banco Popular do Brasil com a mesma finalidade. O resultado será uma considerável capitalização da economia popular e o aumento dos gastos de consumo por parte dos mais pobres.

Outra medida que amplia a oferta de serviços financeiros à economia popular é a abolição de restrições à formação de cooperativas populares. A isso se soma a grande ampliação dos programas de renda mínima, que, unificados no Bolsa-Família, representam a injeção de bilhões de reais na economia popular. O efeito esperado é não somente o alívio das carências alimentares e outras dos mais pobres, mas a criação de microempresas e cooperativas populares.

Vale a pena observar que essas políticas de geração popular de trabalho e renda são muito menos dispendiosas por trabalhador inserido ou qualificado do que políticas análogas, que visam a geração capitalista de emprego e renda. Apesar disso, é vital que ambos os tipos de política sejam executados para que o aumento do desemprego e a precarização das relações de trabalho sejam revertidos.

Paul Singer é secretário nacional de Economia Solidária do Ministério do Trabalho e Emprego