Nacional

Sob a ótica do governo federal, esta reforma tem como objetivos principais a ampliação do acesso da população ao Judiciário e a melhoria de sua gestão

A reforma do Judiciário é tema de uma discussão já antiga no Brasil. A morosidade da Justiça, a obsolescência, a ineficiência e a pouca transparência da máquina pública a serviço do Poder Judiciário são alguns dos problemas apontados aqui e ali a justificar a necessidade da reforma. Na Assembléia Constituinte que elaborou a Constituição Federal de 1988 e nas diversas oportunidades surgidas no âmbito do Congresso Nacional a partir de então, temas relacionados ao aperfeiçoamento do Poder Judiciário são freqüentemente colocados na agenda política do país.

A reforma do Judiciário é tema de uma discussão já antiga no Brasil. A morosidade da Justiça, a obsolescência, a ineficiência e a pouca transparência da máquina pública a serviço do Poder Judiciário são alguns dos problemas apontados aqui e ali a justificar a necessidade da reforma. Na Assembléia Constituinte que elaborou a Constituição Federal de 1988 e nas diversas oportunidades surgidas no âmbito do Congresso Nacional a partir de então, temas relacionados ao aperfeiçoamento do Poder Judiciário são freqüentemente colocados na agenda política do país. Há certo consenso, entre os que se ocupam em refletir sobre o tema, de que o Poder Judiciário precisa passar por uma reforma. Mas que reforma é essa de que tanto se fala?

Desde o início do governo Lula – aliás, desde a campanha eleitoral para a Presidência da República – a reforma do Poder Judiciário foi identificada como uma prioridade. O discurso de posse do ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, foi marcado pela ênfase que ele atribuiu ao tema.

A identificação da reforma do Poder Judiciário como tema prioritário para o país não representa propriamente nada de novo. Há muito se fala sobre o assunto. O que há de novo é o fato de ter sido ele apropriado pelo Poder Executivo e definido como prioridade de governo. A avaliação é de que a formulação de uma política pública para o Poder Judiciário é, sim, assunto que cabe ao Poder Executivo, ou melhor, a um governo que, eleito democraticamente pela população, pretenda se dedicar às questões nacionais mais relevantes para o aperfeiçoamento da nossa democracia.

A inexistência de um órgão central com condições e competência legal para articular e coordenar as discussões acerca da reforma do Judiciário como um todo fortaleceu a convicção do governo quanto à conveniência de criar um órgão para exercer, a partir do Executivo, este papel.

A criação da Secretaria de Reforma do Judiciário, no âmbito do Ministério da Justiça, suscitou discussão no meio jurídico e críticas de parcela da magistratura, principalmente de representantes das cúpulas dos tribunais superiores, que alegavam que a reforma do judiciário é assunto que interessa somente a este Poder – é questão interna corporis que não deve fazer parte das preocupações do governo. Houve, dos mais exaltados, a afirmação de que a simples criação da secretaria era uma intromissão inaceitável. Logo ficou claro que a resistência ao posicionamento do governo e à criação da secretaria decorria da própria resistência à reforma em si. Nossas preocupações iniciais, portanto, foram direcionadas ao esclarecimento sobre o papel que quería­mos desenvolver.

Deixamos claro que não preten­díamos preparar e implementar, a partir do Executivo, uma reforma para e no Poder Judiciário. A missão da secretaria é articular iniciativas, elaborar propostas, provocar a indução a mudanças e, principalmente, participar do debate sobre o tema.

O plano de trabalho da Secretaria de Reforma do Judiciário compreende basicamente o desenvolvimento de três ações coordenadas entre si: diagnóstico, modernização do Judiciário e alterações legislativas. Esse planejamento de trabalho deve ser compreendido como a própria proposta do governo federal para a reforma do Poder Judiciário. Tal observação se torna necessária para que não se pense que a reforma, para o Executivo, se restringe à discussão sobre as propostas de emendas constitucionais acerca do Poder Judiciário.

Um diagnóstico profundo e global sobre o Poder Judiciário é fundamental para que se conheça melhor sua estrutura. Os operadores do direito, seja juiz, membro do Ministério Público, defensor público, advogado ou serventuário da Justiça, não conhecem globalmente o funcionamento do Judiciário. Cada um tem noção do universo com o qual se relaciona profissionalmente, mas esse conhecimento é sempre parcial e não permite a tradução num diagnóstico global. Estudos parciais existentes levam ainda à constatação de que as diversidades são muito significativas e devem ser consideradas, com suas respectivas peculiaridades, para que as generalizações não comprometam a isenção do trabalho.

O conhecimento sobre o funcionamento do Judiciário deverá possibilitar a identificação de suas dificuldades e as experiências bem-sucedidas de gestão já em funcionamento. Deverá fornecer também elementos que permitam a definição de indicadores de eficiência, produtividade e qualidade para seu funcionamento.

A modernização do Poder Judiciário, a segunda frente de ação da secretaria, constitui-se de medidas que independem de alterações legislativas. Acreditamos que a reforma do Judiciário passa necessariamente pela modernização de sua gestão. A incorporação de novas tecnologias de informação, a desburocratização, a padronização de procedimentos racionais, a simplificação de sistemas operacionais, a capacitação de pessoal, o apoio a projetos de financiamento para a modernização são exemplos de iniciativas que podem tornar o Judiciário mais eficiente e ágil. Não se pretende reinventar a roda. Pretende-se captar as melhores experiências de gestão (best practices), já desenvolvidas pelo próprio Judiciário, valorizá-las, torná-las públicas e provocar sua implementação em outras localidades e juizados, demonstrando que a reforma será feita com e pelos próprios juízes.

Nesse contexto, encontram-se também medidas destinadas a melhor capacitar os servidores do Judiciário, principalmente os magistrados, para o exercício das atividades administrativas pelas quais são responsáveis e para as quais não recebem, na maior parte das vezes, nenhum treinamento.

Vale mencionar a preocupação com a postura do Estado (União, estados e municípios) em relação ao Judiciário. O governo é o maior cliente do Poder Judiciário – algo em torno de 80% dos processos e recursos que tramitam nos tribunais superiores tratam de interesses do governo, seja ele federal, estadual ou municipal. Estamos convencidos de que se deve buscar a definição de uma nova postura do Estado em relação ao Judiciário. Foi criado um grupo de trabalho no âmbito do governo federal com o objetivo de definir nova conduta dos diversos órgãos da União, por meio da tomada de medidas que inibam a propositura de ações judiciais ou interposição de recursos sobre matérias a respeito das quais já exista jurisprudência razoavelmente pacificada.

A terceira ação da secretaria refere-se a medidas que implicam alteração legislativa, tanto as emendas constitucionais quanto mudanças nas leis infraconstitucionais, que podem trazer maior celeridade aos processos judiciais. A atualização da legislação processual civil e penal deve ser permanente, visando sempre à simplificação na tramitação dos processos. A Secretaria de Reforma do Judiciário está elaborando projetos com o propósito de, garantido o princípio constitucional do amplo direito de defesa, assegurar a tramitação mais célere dos processos judiciais.

Um desses projetos prevê a insti­tuição de procedimentos de solução alternativa de conflitos como medição e conciliação. Outro simplifica o processo de execução judicial. Estamos desenvolvendo ainda um projeto de simplificação do número de recursos e estudando o fortalecimento dos juizados especiais e a adequação do Estatuto da Magistratura aos princípios da reforma.

Há também a identificação, por óbvio, da necessidade de alterar a Constituição Federal na parte que trata do Poder Judiciário. O projeto de Emenda Constitucional que tramita hoje no Senado teve início em 1992, a partir de iniciativa do ex-deputado federal pelo PT de São Paulo Hélio Bicudo. O projeto foi aprovado pela Câmara Federal com a relatoria da deputada Zulaiê Cobra (PSDB-SP) e depois enviado ao Senado Federal, onde foi designado como relator, na legislatura anterior, o senador Bernardo Cabral (PMDB-AM). O texto chegou a ser aprovado, com alterações expressivas, na Comissão de Constituição e Justiça do Senado. Na atual legislatura, foi designado como novo relator da matéria o senador José Jorge (PFL-PE).

No âmbito da secretaria, após sistematizar as discussões e refletir sobre as propostas delas decorrentes, definimos os princípios fundamentais da reforma, com as principais propostas pertinentes a cada um:

I) Democratização e Controle do Poder Judiciário – Várias proposições apontam para a necessidade de democratizar a estrutura do Poder Judiciário, tornando-a administrativamente mais aberta ao conjunto da magistratura, em especial aos juízes de primeiro grau. A criação de órgãos de controle externo do Poder Judiciário e do Ministério Público (Conselho Nacional de Justiça e Conselho Nacional do Ministério Público), como está no texto aprovado pela Câmara Federal, é apontada pelo governo como uma das condições fundamentais para que o Poder Judiciário se torne mais transparente e esteja submetido a algum nível de controle da sociedade. A proposta aprovada pela Câmara prevê a constituição de um órgão de controle externo composto de quinze membros (nove magistrados, dois membros do Ministério Público, dois advogados e dois cidadãos), com atribuições de controle sobre as atividades administrativas e financeiras do Poder Judiciário e sobre os desvios funcionais dos juízes, podendo determinar inclusive a perda de cargo. Faz-se necessário ressaltar que este órgão não terá nenhuma atribuição de controle sobre a atuação jurisdicional dos juízes. Há ainda, por exemplo, propostas relativas a alteração de composição do Supremo Tribunal Federal, tribunais superiores e tribunais regionais e eleições para os órgãos especiais e diretivos dos tribunais.

II) Eficiência e celeridade do Judiciário – As alterações constitucionais não trarão, isoladamente, maior celeridade à tramitação processual, mas algumas propostas que se encontram em discussão apontam para a maior racionalidade do sistema como um todo. Uma das propostas mais polêmicas é a que institui a súmula vinculante, que tem sido criticada pelo governo, pois tolhe a liberdade dos juízes de primeiro grau, impedindo a salutar oxigenação da jurisprudência de primeiro grau. Como alternativa à súmula vinculante, há a proposta formulada originalmente pela Associação dos Magistrados Brasileiros, de instituição da súmula impeditiva de recurso. Há ainda em pauta propostas referentes a transformação do Supremo Tribunal Federal em Corte Constitucional, alterações das hipóteses de prerrogativas de foro e federalização dos crimes contra direitos humanos.

III) Autonomia e independência dos magistrados – É aspecto fundamental da reforma, para o governo, a afirmação dos princípios constitucionais da autonomia e independência dos magistrados. As principais propostas relativas a esse princípio são as que tratam da autonomia financeira do Poder Judiciário, do estabelecimento de critérios unificados para ingresso na magistratura e no Ministério Público, da vedação ao nepotismo e da instituição da quarentena para o exercício da advocacia por parte dos juízes antes e depois de exercerem essa atividade.

IV) Funções essenciais e acesso à Justiça – O fortalecimento das funções da Justiça definidas na Constituição Federal como essenciais é condição necessária para o fortalecimento do próprio Poder Judiciário. Nesse sentido, há propostas que visam atribuir autonomia às procuradorias estaduais e às defensorias públicas, bem como estabelecer critérios objetivos para a instalação de tribunais e institucionalização com maior difusão dos juizados itinerantes.

Os objetivos principais da reforma do Poder Judiciário, vista sob a ótica do governo federal, são a ampliação do acesso da população ao Judiciário e a melhoria de sua gestão. O cumprimento destes ocorrerá a partir do desenvolvimento coordenado das ações referidas, e não somente da aprovação da emenda constitucional. Há que se reconhecer, contudo, que a maior democratização da estrutura do Judiciário e a sua maior transparência são exigências fundamentais para a própria consolidação da democracia em nosso país.

Sérgio Renault é advo­gado, secretário de Reforma do Judiciário do Ministério da Justiça. Foi secretário especial de Reforma Administrativa e secretário da Administração na Prefeitura de São Paulo (1989-1992)