Nacional

A reforma do Judiciário é uma daquelas coisas sobre as quais todo mundo fala, mas ninguém sabe exatamente de que se trata. O que será reformado? E por quê?

“Finalmente!”, comemoram alguns. Após tantos anos, a reforma do Judiciário vai sair do papel. Finalmente, a sociedade verá seus processos julgados com rapidez. Finalmente, tudo andará melhor neste país, que ficará mais justo.

Falso. Isso não acontecerá. A reforma do Judiciário transformou-se em uma daquelas coisas sobre as quais todo mundo fala, mas ninguém sabe exatamente de que se trata. Porém, comemora-se que haverá “controle externo” e “súmula vinculante”, e isso vai resolver tudo! É como se um dia se anunciasse a cura do câncer.

“Finalmente!”, comemoram alguns. Após tantos anos, a reforma do Judiciário vai sair do papel. Finalmente, a sociedade verá seus processos julgados com rapidez. Finalmente, tudo andará melhor neste país, que ficará mais justo.

Falso. Isso não acontecerá. A reforma do Judiciário transformou-se em uma daquelas coisas sobre as quais todo mundo fala, mas ninguém sabe exatamente de que se trata. Porém, comemora-se que haverá “controle externo” e “súmula vinculante”, e isso vai resolver tudo! É como se um dia se anunciasse a cura do câncer.

Então, afinal, de que estamos falando? O que será reformado? E por quê? O que acontecerá depois da reforma? É isso que procurarei abordar, de maneira sintética, neste texto.

O que é o Judiciário, afinal?

Por vezes esquecemos o que significa ser o Judiciário um dos três Poderes da República. O Judiciário não possui relação de subordinação com os outros Poderes; não possui atribuição de tomar a iniciativa para a execução de políticas públicas nem elabora leis. Sua função fundamental é a de julgar conflitos: entre pessoas, entre pessoas e o Estado, entre o Estado e um acusado de um crime. Por isso é preciso assegurar ao Judiciário e aos juízes condições especiais para a preservação da imparcialidade – não há quem duvide de que é preciso dar ao juiz garantia de que, mesmo se julgar uma causa contra o governo, não será despedido ou transferido para local distante. É por isso que o juiz possui vitaliciedade e inamovibilidade. Esses “privilégios” são na verdade garantias para a sociedade de que o juiz não estará sujeito a pressões em seu julgamento. Simples assim.

Alguns dizem que o juiz deve ser submetido a mais controles que os outros membros de Poder, porque não é eleito e por isso não se submete ao controle do voto a cada quatro anos. Isso também não se sustenta. Claro que o juiz também precisa de controles (tratarei disso mais adiante), mas a legitimidade de sua atuação decorre de outros fatores que não o voto. Ele é selecionado por concurso público acessível a todos – portanto democraticamente – e, em seus julgamentos, não precisa agradar ao governo ou à opinião pública para ser “reeleito” ou “reconduzido”. Ainda bem! Se não fosse assim, seria o fim da imparcialidade na atividade de julgar, instituindo-se a submissão, pelo juiz, à “opinião pública” formada pela mídia para orientar seus julgamentos, a fim de assegurar sua reeleição.

Isso não dá ao juiz poder absoluto ou arbitrário; há mecanismos para supervisionar sua atuação. Suas decisões são obrigatoriamente fundamentadas, sujeitas a recursos, e ele é submetido a controle disciplinar. O juiz julga de acordo com a lei, a Constituição e a interpretação que dá a essas normas e aos fatos que lhe são apresentados. Em sua sentença, deve explicar às partes os fundamentos que o levaram à decisão. O sistema, assim, é bom e não precisa ser abandonado; é preciso fazê-lo funcionar melhor.

Por que se fala em reformar o Judiciário?

Porque a Justiça é lenta. Apesar da alta produtividade dos juízes e servidores, ninguém contesta a existência de um déficit na capacidade de julgamento dos processos por parte do Judiciário. A falta de meios materiais e de informática, o número insuficiente de juízes, as leis processuais burocráticas, a falta de meios para que o juiz puna quem utilize o processo para postergar o cumprimento de obrigações, tudo isso contribui para que a prestação de justiça no país deixe a desejar. Mas há muito mais.

O tema “reforma do Judiciário” ressurge periodicamente das profundezas do discurso político. A reforma iniciou-se há doze anos no Congresso Nacional, mas na maior parte do tempo permaneceu no limbo em que residem os temas não-prioritários para o governo ou o Congresso. Ressurge, em geral, quando não há outra prioridade na agenda política nacional; quando é proferida alguma decisão polêmica ou que atinja algum poderoso, que adota a tática de acusar o julgador que o condenou; ou quando surge algum caso de corrupção que envolva um juiz.

Então, passamos a assistir a heróicos brados midiáticos: “Vamos reformar o Judiciário”, “Temos de fazer o controle externo”, “Precisamos da súmula vinculante”. Coisas que, com franqueza, ao que parece poucos entendem o que exatamente venham a ser. Muitos personagens políticos importantes cedem à tentação desse discurso fácil, mas falacioso, em que as premissas e a conclusão são totalmente dissociadas entre si: “A polícia é corrupta, a segurança pública não combate o crime organizado, as prisões são péssimas; logo, precisamos reformar o Judiciário, para fazer o controle externo.” Parece óbvio que essa não é uma abordagem séria da questão.

De onde vem o déficit de eficiência?

Em uma análise abrangente do problema, podemos reconhecer a existência, no país, de algo que poderíamos chamar de “sistema judiciário”, que envolve o julgamento de conflitos, a elaboração de leis processuais e a interpretação das leis e da Constituição, mas também a segurança pública, a investigação criminal, o sistema prisional, a defensoria pública, o Ministério Público, a advocacia e outros. Tudo visando à distribuição de justiça em cada caso concreto, decidindo quem tem razão em processos civis e fazendo cumprir as decisões; investigando crimes e punindo os culpados, fazendo-os cumprir a pena aplicada.

Decorrência lógica é admitir que a eficácia desse “sistema judiciário” depende da eficiência de várias instituições dos três Poderes, interdependentes entre si. A atuação falha de uma delas pode implicar na falência de todo o sistema. Abaixo, dois exemplos:

1) Se um crime foi cometido, o objetivo da atuação estatal será investigá-lo, descobrir seu autor, processá-lo e fazê-lo cumprir a pena. Teremos, então, a investigação e o inquérito conduzidos pela polícia (inclusive a técnica), a acusação formulada pelo Ministério Público à Justiça, o processo propriamente dito, perante o Judiciário, e a execução da pena – em geral, no sistema prisional. Todos esses órgãos, do Executivo e do Judiciário, agindo segundo as regras estabelecidas nas leis aprovadas pelo Legislativo.

A perícia não pôde ser feita por falta de equipamentos? A polícia não pôde conduzir adequadamente o inquérito (polícia: Poder Executivo!)? Ora, isso inviabiliza a colheita de provas no processo judicial e a futura condenação. As leis processuais exigem que caminhos burocráticos inúteis sejam percorridos no processo e admitem recursos infinitos (leis processuais: Poder Legislativo!)? O processo não termina nunca. E, se a crônica falta de funcionários, equipamentos e juízes (orçamento e “contingenciamento”: Poderes Executivo e Legislativo!) não tiver levado à prescrição do crime e o réu for condenado, o cumprimento da pena se dará onde? Em um sistema prisional falido que ou põe o condenado em condições subumanas, ou permite que continue comandando sua quadrilha de dentro do presídio, ou simplesmente permite a fuga com facilidade impressionante – às vezes, as três coisas (sistema prisional: Poder Executivo!).

2) No processo civil, a necessidade de assegurar o equilíbrio e a igualdade entre as partes leva a um certo grau de formalidade. Nossa lei processual, contudo, elevou essa formalidade a uma ritualística quase religiosa. Por medo ou desconfiança, as decisões dos juízes de primeira e segunda instâncias são totalmente desvalorizadas. A regra é que se possa recorrer sempre, de tudo, e “até o Supremo Tribunal Federal”! As penas para quem transforma o direito de defesa em instrumento de procrastinação do cumprimento de suas obrigações são brandas (leis processuais: Poder Legislativo!). O poder público é o maior “clientee” do Judiciário, com aproximadamente 80% dos processos em andamento. Esse dado já indica que há algo errado na relação entre o poder público e o cidadão, e na postura do poder público em juízo (Poder Executivo!). Tradicionalmente, os governos e autarquias, sob o pretexto da “indisponibilidade” de seus interesses, recorrem sempre, mesmo nos casos em que a jurisprudência já lhes é unanimemente contrária.

Na realidade, pretendem com isso empurrar o cumprimento da obrigação ao próximo governo. Tendo em vista o enorme alcance dos atos do Executivo, sua repercussão significa a propositura de centenas de milhares de ações, sobrecarregando o Judiciário por anos a fio. Para citar exemplos recentes, somente a questão da correção monetária do FGTS significou a propositura de 800 mil ações. Uma discussão já pacificada sobre o reajuste de benefícios de aposentadoria levou à propositura de 1 milhão de ações contra o INSS em 45 dias nos Juizados Especiais Federais. Claro que a Justiça demorará para processar essa avalanche de ações. Será pela própria deficiência ou pelo desrespeito do Executivo em relação ao cidadão e à autoridade das decisões do Judiciário?

Não pretendo, com esses exemplos, eximir os tribunais de culpa pela lentidão dos processos. Estruturas administrativas arcaicas e burocráticas, com um alto grau de hierarquização e baixo grau de democratização interna, impedem por vezes que se enfrentem os problemas com a profissionalização que a boa administração exige. Mas os problemas internos ao Judiciário são já bastante conhecidos. Procurei, aqui, mostrar que há causas externas ao Judiciário que estão na gênese de sua crise.

O que mudará com essa reforma?

Na Constituição estão as linhas gerais da estrutura dos Poderes, suas atribuições e o relacionamento entre eles. No caso do Judiciário não é diferente: lá se prevêem quais os tribunais e as “Justiças”, sua competência e quem serão seus membros. Portanto, a reforma constitucional do Poder Judiciário em andamento é na verdade tão-somente uma proposta de alteração estrutural.

Ou seja, não é na reforma, nem com o “controle externo”, que se resolverá o problema da morosidade dos processos ou o da impunidade dos criminosos – pois não é em nossa Lei Maior que isso é tratado. Sou favorável à criação do Conselho Nacional de Justiça; contudo, rejeito qualquer afirmação de que ele ajudará a resolver a lentidão das ações. O CNJ deverá funcionar como órgão de planejamento estratégico do Poder Judiciário, definindo metas, planos, cuidando de encontrar prioridades e gargalos etc.

A autonomia dos tribunais, hoje vigente, é necessária para assegurar sua independência, mas alcançou níveis tais que os transformou em ilhas sem comunicação entre si. Sua integração é importante não apenas pela unicidade do Poder Judiciário do país, mas por vários outros motivos – por exemplo, porque os recursos das decisões das instâncias inferiores subirão aos tribunais superiores, que são encarregados de uniformizar a interpretação das leis e da Constituição. O CNJ poderia proporcionar certa uniformidade na esfera administrativa dos tribunais do país, como no tratamento dado a magistrados e servidores (inclusive quanto à remuneração), na distribuição de verbas orçamentárias entre os tribunais, na execução de projetos, na correção de distorções. Poderia, ainda, suplementar as corregedorias dos tribunais: os juízes de primeira instância estão sujeitos à corregedoria do tribunal a que estão vinculados, mas é comum que, na segunda instância, os desembargadores não se submetam a nenhum controle disciplinar.

A composição do Conselho Nacional de Justiça deve contemplar a presença de membros dos vários tribunais e também de todas as instâncias. Somente assim será assegurada a pluralidade de visões oriundas das várias “Justiças” e também sua democratização interna. Admite-se, ainda, a presença de membros vindos da advocacia e do Ministério Público. Uma das funções do conselho deve ser privilegiar a transparência do Judiciário, e essa presença pode ser admitida como parte do “controle sociall” da atuação do Judiciário, que irá se somar aos outros controles a que é submetido: controle da aprovação orçamentária (Legislativo) e de sua aplicação (“contingenciamentos” do Executivo), controle de suas contas pelo Tribunal de Contas da União (órgão do Legislativo), controle pela mídia, Ministério Público e pela própria sociedade, decorrentes da publicidade de suas decisões.

Apenas para ressaltar. Jamais se pode admitir que o conselho seja composto de uma maioria de membros externos ou possa revisar o teor de decisões judiciais: o Judiciário é poder de controle e, a se aceitar isso, teríamos novo controle, sem jamais encontrar a resposta à pergunta: “Quem controla o controlador?” As decisões judiciais devem ser atacadas pelas vias recursais próprias e, esgotadas estas, aceitas como definitivas.

O que precisamos na verdade?

Como se vê, o problema é bem mais complexo do que se gostaria e não se esgota na reforma constitucional. Para melhorar a Justiça e acelerar os processos necessitamos, no mínimo:

a) Reconhecer que é preciso fortalecer o Judiciário, e não enfraquecê-lo ou amarrá-lo, para assegurar o cumprimento de suas decisões pelos cidadãos e pelos demais Poderes;

b) Alterar profundamente as leis processuais: por exemplo, limitando o número de recursos; aumentando a força das decisões das instâncias inferiores e diminuindo as hipóteses de acesso aos tribunais superiores; valorizando as ações coletivas, para evitar a multiplicação de demandas idênticas; fortalecer os juizados especiais, levando as experiências de desburocratização e informatização neles adotadas ao processo tradicional. Os muitos projetos de lei em tramitação no Legislativo para modernizar o processo judicial precisam de atenção urgente;

c) Que haja uma mudança radical de postura do Executivo em juízo: que este Poder passe a respeitar as decisões judiciais definitivas dos tribunais superiores, abandonando a prática de recorrer de toda e qualquer decisão, mesmo sabendo inútil o recurso, para protelar seu cumprimento. Acatar as decisões judiciais favoráveis aos cidadãos e estender seus efeitos a todos pouparia muito tempo para o Judiciário e muito dinheiro para o próprio Executivo, que economizaria também em juros, multas e honorários advocatícios;

d) Que o problema da impunidade seja levado a sério: que o Executivo equipe a polícia e apresente soluções adequadas para a crise do sistema prisional, bem como ofereça condições para o bom cumprimento das penas alternativas. Não adianta dizer que a Justiça não pune criminosos. A Justiça somente julga os processos, não faz rondas, nem investiga, nem constrói presídios;

e) Que o Executivo implante efetivamente a Defensoria Pública da União, cumprindo a obrigação constitucional de oferecer assistência jurídica à população;

f) Que se torne realidade a autonomia financeira do Judiciário. Anualmente o Judiciário precisa implorar ao Executivo e Legislativo por verbas para sua modernização, informatização e contratação de mais juízes e servidores, para buscar atender à demanda. É preciso assegurar uma porcentagem mínima do orçamento da União para o Judiciário, e que sua aplicação não esteja sujeita a “contingenciamentos” por parte do Executivo;

g) Que o Judiciário prossiga em seu caminho de busca da eficiência administrativa, transparência em sua atuação e democratização interna.

O problema é dos três Poderes

Em resumo, o que realmente precisamos é do engajamento efetivo dos três Poderes no trato da questão, de maneira sincera e séria. Falar de reforma do Judiciário somente apontando os defeitos alheios é fácil. Difícil, mas necessário, é cada um assumir as próprias deficiências e demonstrar seu empenho em melhorar o que está a seu alcance.

Os juízes são tão frustrados pelo congestionamento do Judiciário e pela demora nos processos quanto as partes. Se a reforma do que chamei acima de “sistema judiciário” for tratada por todos sem acusações recíprocas e palavras de ordem, mas com a profundidade que merece, poderemos então caminhar para os resultados concretos que a reforma em andamento não trará.

Paulo Sérgio Domingues é juiz federal em São Paulo, presidente da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe)