Nacional

A instituição de um Judiciário autônomo e independente é imprescindível ao Estado de Direito.

“Trata-se de uma experiência eterna que todo homem que possui o poder é levado a dele abusar; ele vai até onde encontra limites.” E “para que não se possa abusar do poder, é preciso que, pela disposição das coisas, o poder limite o poder”. É o que afirmou, no século 18, Charles-Louis de Secondat, o barão de Montesquieu, em seu célebre O Espírito das Leis.

“Trata-se de uma experiência eterna que todo homem que possui o poder é levado a dele abusar; ele vai até onde encontra limites.” E “para que não se possa abusar do poder, é preciso que, pela disposição das coisas, o poder limite o poder”. É o que afirmou, no século 18, Charles-Louis de Secondat, o barão de Montesquieu, em seu célebre O Espírito das Leis. Partindo dessa premissa, formulou a teoria de que as funções do Estado haveriam de ser realizadas por três órgãos diversos, de maneira a que o poder fosse fracionado e não pudesse ser exercido de modo absoluto por uma única pessoa ou por um mesmo grupo de pessoas. Um, o Poder Legislativo, seria responsável pela criação das leis. Outro, o Poder Executivo, encarregado de executar essas leis. E o último, o Poder Judiciário, teria por missão aplicar castigos aos criminosos e julgar as querelas entre particulares.

Essa visão, conjugada a de outros pensadores do período, acabou por formar a base da concepção do denominado Estado de Direito. Um Estado que no seu agir é limitado e regulado pela lei igualmente aplicada a todos os seus cidadãos. Afirma-se então a idéia de que se, por um lado, ao poder público cabe agir com prerrogativas de autoridade na busca da satisfação daquilo que a lei entende ser o interesse público, por outro, estará ele sempre rigorosamente contido dentro dos estreitos limites por ela assinalados.

Dentro dessa concepção, é natural que se apresente como imprescindível ao Estado de Direito a instituição de um Poder Judiciário autônomo e independente que, em harmonia com os outros Poderes, garanta o cumprimento da lei, seja aplicando sanções àqueles que a desrespeitam, seja dirimindo conflitos de interesses. Por sua atuação será assegurada a manutenção da ordem e do status quo e garantido o respeito de limites de ação para o agir de agentes públicos, e ainda será garantida a previsibilidade e a segurança jurídica, tidas como valores indispensáveis para o desenvolvimento das sociedades capitalistas modernas.

Por isso, não é difícil entender a contundência com que a sociedade brasileira vem clamando, e já há muito tempo, pela necessidade da reforma do Poder Judiciário. Desde o momento da entrada em vigor de nossa atual Constituição Federal, em 5 de outubro de 1988, ninguém nega que, no plano institucional e formal, exista dentre nós um autêntico Estado de Direito, em que se assegura a existência de um Judi­ciário autônomo e independente. Contudo, ninguém também afirma, em sã consciência, que esse Poder venha cumprindo com eficiência o importante papel que a Constituição lhe reservou. A morosidade na solução de processos e na aplicação das penas, a absoluta falta de modernidade em sua atuação, a ausência de transparência e de controle efetivo sobre sua administração interna e na imposição de sanções disciplinares sobre seus membros são realidades incontestáveis. Da mesma forma, o difícil acesso à Justiça pelos mais pobres e excluídos, a indiscutível presença de focos de corrupção na máquina judiciária e a ausência de uma distinção racional e ética entre prerrogativas indispensáveis para o exercício de competências e indevidos privilégios funcionais atribuídos a seus membros têm atingido frontalmente sua imagem, sua credibilidade e sua própria legitimidade perante os olhos de todos os brasileiros.

A desejada reforma do Poder Judiciá­rio, porém, não se traduziu, pelo menos até o início do atual governo, em atos concretos e efetivos. Há anos circulam estudos, propostas, teses, projetos de lei e de emendas constitucionais, sem que essa reforma tenha deixado o mundo das idéias. Todos concordam que a atual situação é insustentável, que sua permanência implica insegurança para investimentos, sério obstáculo ao desenvolvimento econômico, e bradam que a reforma do sistema de prestação jurisdicional do Estado brasileiro é inadiável e prioritária. Mas pouco, ou quase nada, acontece.

Há que perguntar: por quê? Por que algo que é necessário para a manutenção do próprio status quo e se soma aos interesses econômicos dominantes teimou e teima tanto em sair do papel? Por que mudanças que poderiam assegurar a efetividade social de direitos de cidadãos excluídos não são minimamente efetivadas? Por quê, enfim, um desejo comum de toda a sociedade demora tanto para se materializar?

Não é fácil responder a estas perguntas. Uma visão simplista do problema poderia nos conduzir à crença de que tudo se explicaria por uma acentuada indolência parlamentar, por uma falta de amadurecimento das propostas existentes para essa reforma, ou por ambas as situações. Não seria, porém, uma explicação verdadeira. Nos últimos anos, muitas matérias polêmicas passaram por aguerridos embates no Congresso Nacional, demonstrando que nosso Poder Legislativo, enquanto casa de representação política, freqüentemente responde, tanto para o bem como para o mal, às exigências e às cobranças da opinião pública quanto a questões socialmente vivenciadas como problemáticas pela sociedade. Por outro lado, dizer que as propostas relativas à reforma do Judiciário ainda não se encontram maduras para ser apreciadas e decididas seria incorrer em uma heresia intelectual. Todos sabem que propostas como a do controle externo do Poder Judiciário, a da instituição das nefastas súmulas vinculantes, a da transformação do Supremo Tribunal Federal em tribunal constitucional, e tantas outras que ocuparam através dos anos as páginas dos jornais, passaram por amplos debates, por variadas formulações e análises. São conhecidas e estão prontas a ser submetidas a um processo de decisão democrático, seja para sua aprovação, seja para sua rejeição.

A paralisia decisória se prende, de fato, a outros fatores mais complexos. Um deles, e talvez um dos mais importantes e decisivos, guarda relação com os interesses diretos e reflexos das diferentes corporações e pessoas que atuam no sistema de prestação jurisdicional de nosso Estado ou gravitam em torno dele.

Com efeito, quando falamos da reforma do Poder Judiciário, não estamos falando apenas de uma alteração de competências de órgãos públicos ou da estrutura de um braço orgânico do Estado. Falamos de mudanças que atingem todo o sistema de prestação jurisdicional e todo o conjunto de interesses profissionais e pessoais que com ele se relacionam. Falamos de alterações que podem afetar situações concretas de magistrados, promotores, delegados de polícia, advogados, enfim, de todos os operadores do direito e daqueles que estão de algum modo envolvidos com os serviços prestados pela máquina judiciária. Falamos de uma reforma que pode atingir as pretensões daqueles que são favorecidos pela demora da prestação jurisdicional do Estado, incluindo-se aqui o perverso interesse de governantes que, para não arcar com o ônus de decisões desfavoráveis da Justiça, preferem adiar indefinidamente o desfecho das demandas em que se envolveram, tanto em nome próprio como em nome do Estado. Falamos também do efetivo interesse de alguns em que não se alargue o acesso de uma camada da população ao resguardo efetivo de direitos que hoje só existem no plano da forma e da retórica jurídica, e não na realidade.

É sem dúvida neste cenário, em que se alternam poderosamente desejos de mudança e de que nada se altere, em que se chocam interesses corporativos de grupos ou de pessoas que exercem parcela do poder do Estado ou que nele têm influência, que os obstáculos à concretização da reforma do Poder Judiciário aparecem e se consolidam. A distinção entre o público e o privado, entre as prerrogativas indispensáveis para o exercício da função pública e privilégios imorais deferidos a certos agentes públicos, passa a ganhar, nesse contexto, um contorno retórico, enviesado e ideológico. A discussão sobre a reforma do Poder Judiciário passa então a aparecer aos olhos da sociedade como algo complexo, obscuro, e em uma dimensão argumentativa em que não raras vezes interesses pessoais e mesquinhos são apresentados em discursos como autênticas razões de Estado.

Por isso, discutir formas de controle externo e de transparência pode ser um incômodo para muitos, especialmente para os que, pensando em seu status ou em suas vantagens pessoais, esquecem as premissas de pensamento de Montesquieu que justificam a existência dos Poderes do Estado e com cabotina desfaçatez argumentam que seria saudável a existência de uma democracia e de um Estado de Direito com a presença de uma máquina judiciária que só a si própria deva satisfação de seus atos e só a seus membros preste contas em grau definitivo. Do mesmo modo, falar de agilização da prestação jurisdicional também pode ser um incômodo para aqueles cujo maior talento é evitar o desfecho de litígios.

Além disso, não poucas vezes, há quem, na contramão de uma verdadeira reforma, se aproveite da necessidade de mudança para buscar conseguir implantar modelos autoritários ou o aumento das próprias prerrogativas e privilégios. Isso, naturalmente, implica reações adversas dos que se apercebem da manobra, que passam a fazer tudo para paralisar o andamento daquilo que lhes parece ser mais um retrocesso do que um verdadeiro avanço. E então, pelo equilíbrio de forças, as coisas não caminham. Nem para um lado, nem para outro.

Exemplo típico dessa situação é o que vem ocorrendo com as denominadas súmulas vinculantes. A pretexto de agilizar o processo de tomada de decisões judiciais e eliminar a possibilidade de interposição de recursos inúteis, pretendem seus defensores, por meio dessas súmulas, atribuir aos tribunais superiores o poder de fixação de interpretações que vinculem e forcem todos os magistrados a decidir os processos da mesma maneira. Assim, afirma-se, as decisões seriam mais uniformes e rápidas, uma vez que os litígios seriam sempre decididos de acordo com este querer interpretativo superior.

A percepção óbvia do autoritarismo e do caráter antidemocrático desse instituto levou a uma contundente reação oposta. Como se sabe, o mais importante em uma lei não é o que ela diz gramaticalmente, mas o como ela é compreendida e interpretada em seus termos, ou seja, definida em seu sentido e alcance. Uma lei é menos suas palavras do que o sentido interpretativo que delas se extrai para obrigar as pessoas. Permitir aos tribunais superiores a fixação vinculante da interpretação de uma regra legal é atribuir a um grupo de magistrados, não eleitos e vitalícios, o poder de dizer, de forma genérica e definitiva, e em substituição à manifestação dos representantes eleitos pelo povo (parlamentares e chefia do Executivo), qual é a verdadeira vontade da maioria da sociedade materializada pela lei. É permitir que as esferas superiores do Judiciário legislem, à revelia da sociedade e de seus mandatários diretos.

Em substituição a essas súmulas vinculantes, assim foi formulada a proposta das denominadas súmulas impeditivas de recursos. Por estas, os magistrados não teriam de seguir as ordens interpretativas dos tribunais superiores. Apenas se vedaria a possibilidade de interposição de recursos inúteis quando os juízes decidissem de acordo com o entendimento da jurisprudência dominante. Aos magistrados, contudo, restaria assegurado o direito de, uma vez discordando do entendimento das instâncias superiores, poder proferir sentenças da maneira que entendessem mais justas, reservando-se à parte insatisfeita a prerrogativa de recurso às instâncias superiores da Justiça para eventual revisão da decisão. Desse modo, recursos inúteis e protelatórios seriam eliminados, sem o autoritarismo de impedir que novos argumentos e novas teses possam ser levados às instâncias superiores do Poder Judiciário e sem que o peso das togas passe a se afirmar como mais poderoso que o do voto dos cidadãos. Resolve-se, dessa maneira, um problema, sem que se crie outro.

Colocou-se então a disputa, súmulas vinculantes versus súmulas impeditivas de recursos. Como a força dos oponentes é igual, o jogo permanece empatado, mas sem que o juiz apite seu fim. E assim fica pendente a disputa, paralisado o campeonato, enquanto na arquibancada a torcida impaciente espera que alguma coisa
seja feita.

Mas é necessário encarar o problema, doa a quem doer. Com a firme disposição do atual governo federal de enfrentar a questão da reforma do Poder Judiciário, talvez agora possamos ter, finalmente, em pouco espaço de tempo, alterado esse cenário. Não porque a ação governamental possa, nesse caso, alinhar facilmente uma maioria parlamentar em torno das propostas que vier a defender. Mas porque a transformação de meros estudos ou de propostas em políticas de governo haverá de trazer luz e visibilidade intensa a essa discussão, e em condições de aprofundamento e amplitude que até hoje não existiram. A única maneira de derrotar o espírito corporativo e a obstrução feita por motivações autoritárias ou pouco éticas é a transparência do debate e da discussão acerca do que é melhor para a reforma de nosso sistema jurisdicional.

Não há nada que iniba mais a ação dos que lutam por privilégios e vantagens pessoais injustificadas do que a luz do debate público. Os mais ferozes lobos se transformam em democráticos cordeiros diante da pressão popular e da opinião da coletividade.

Por isso temos agora a oportunidade histórica de fazer com que finalmente essa reforma passe do papel à realidade. Que se ampliem o mais rapidamente possível as discussões. Que se apresentem da forma mais didática possível aos cidadãos as propostas, em toda a sua complexidade e em todo o seu antagonismo. Que se parta para a decisão democrática, mesmo correndo o risco da derrota. Afinal, desta vez, não podemos deixar escapar pelos nossos dedos a oportunidade que temos de fazer do Estado de Direito não apenas uma afirmação formal da nossa Constituição, mas uma realidade histórica que avance no processo de aprofundamento e de radicalização de nosso desenvolvimento social, econômico e democrático.

José Eduardo Martins Cardozo é deputado federal (PT-SP), presidente da Comissão Especial de Reforma do Judiciário da Câmara dos Deputados