Nacional

Diante do quadro de crise de identidade das universidades públicas, um grupo de professores do Fórum de Políticas Públicas da USP elaborou a proposta de reforma universitária que publicamos a seguir.

Durante os últimos quinze anos e, particularmente, nos últimos oito, uma política deliberada de desqualificação das universidades públicas brasileiras produziu três efeitos principais: perante a sociedade, as universidades públicas passaram a ser apresentadas como envelhecidas, burocráticas, ineficientes, improdutivas, corporativas e incapazes de realizar a função social de assegurar o ensino superior gratuito à maioria dos jovens; perante os governos, surgiram como um sorvedouro de verbas mal administradas, destinadas a privilegiados com prejuízo dos direitos à educação de milhões de crianças e jovens da classe trabalhadora; perante si mesmas, as universidades dividiram-se em dois grandes grupos, um deles, promotor da desqualificação, procurou qualificar-se apresentando-se como produtivo, eficaz e moderno porque competitivo e competente, uma ilha de “alto nível” em meio a um mar de “baixo nível”, e o outro, com forte presença sindical, procurou manter a dignidade universitária reivindicando mais verbas para a educação, melhores condições salariais e de trabalho.

Pouco a pouco essas imagens se cristalizaram e deixaram as universidades cada vez mais fragilizadas. Os governos praticaram cortes de verbas e de pessoal, ao mesmo tempo em que se empenharam na massificação do ensino (basta lembrar que as federais passam, de 1990 para cá, de 360 mil para 560 mil estudantes, enquanto o número de seus professores cai de 48 mil para 42 mil) e transferiram recursos para as agências de fomento à pesquisa, destinadas a cultivar as “ilhas de excelência” ou de “alto nível”. Internamente, instalou-se o desalento dos professores, a incerteza sobre seus rumos e mesmo sobre suas funções sociais próprias. Externamente, consolidou-se uma opinião pública que vê as universidades públicas como expressão da desigualdade social, sua gratuidade significando privilégio num país onde não é respeitado o direito de todos os cidadãos à educação.

Os efeitos dessa situação configuram uma verdadeira crise de identidade das universidades públicas, que vários documentos de associações docentes e discentes exprimem, mas não chegam a tematizar, de tal maneira que o impasse parece estabelecer-se entre a palavra de ordem universitária por mais verbas e melhores salários e a palavra de ordem social e governamental (alimentada pelos meios de comunicação) de questionamento da gratuidade do ensino superior público. Tudo parece reduzir-se a um problema de verbas, cuja discussão deixa na sombra outros problemas apontados por professores e estudantes.

Diante deste quadro, um grupo de professores de todo o Brasil se dispôs a discutir várias propostas de reforma universitária, uma das quais foi elaborada pelo Fórum de Políticas Públicas da USP, oferecida ao debate público e à apreciação do governo e, agora, aqui publicada. Os proponentes julgaram necessário “mudar de assunto”. Ou seja, não basta pensar apenas em verbas, com os professores reivindicando aumento do corpo docente e de salários e o governo a imaginar fontes alternativas de financiamento para um sistema abalado pela descrença e incerteza. Acompanhando várias idéias de um documento da Andifes (entregue ao presidente da República em janeiro de 2003), o Fórum da USP julgou necessárias medidas mais profundas: reverter o processo da desqualificação universitária, repensar o papel social da universidade pública e produzir corajosamente correções de rumo em seus diversos níveis de atividade.

Não se trata, de maneira nenhuma, de “reinventar” a universidade, pois existem boas razões para sustentar que se trata de uma instituição que conserva seu vigor conceitual e histórico como forma social de produção de saber e conhecimento. O que se tem em vista é a renovação e a revitalização da universidade pública e, ainda, sua adequação ao momento social e político da vida brasileira, com a preocupação de enraizar tais propósitos em medidas práticas, de modo a acomodá-los ao terreno do possível. Em outras palavras, trata-se de propor um novo modelo para a universidade pública, distanciando-se do passado (quando o modelo visava formar membros da classe média como elite intelectual para a administração do Estado) e do presente (em que o modelo, implantado a partir de 1969, considera a relação com o mercado o definidor das políticas e práticas universitárias). Trata-se de propor o modelo de uma universidade republicana (e não mercantil) e democrática (e não formadora de elites). Sem essa perspectiva, de nada adianta a vinda de mais verbas, pois o modelo existente as destinará para reforçar-se e manter-se em vez de transformar-se. A luta por verbas é indispensável, mas cremos que ela ganhará fôlego se respaldada por um novo modelo de universidade.

O sentimento comum é o da urgência de uma mudança de rumos. Isso depende de ações do governo (que, com o documento produzido pelo Grupo Interministerial, parece ter feito sua lição de casa), mas depende ainda mais e muito mais de uma disposição real de repensar-se por parte da própria universidade.

Os conceitos que orientam a proposta do Fórum de Políticas Públicas da USP são os mesmos que se ouvem hoje por toda parte nas universidades: a exigência de Compromisso Social, Autonomia Institucional e Funcionamento Democrático.

Todos os temas debatidos e todas as medidas sugeridas envolvem problemas e dificuldades de várias ordens, e alguns são bastante polêmicos, como tem ficado claro nas observações, sugestões e críticas enviadas por professores de todo o Brasil, pois, além das questões comuns a todas as universidades públicas, há heterogeneidade na situação das federais, estaduais e municipais, bem como aspectos regionais e locais que as diferenciam. Nesta apresentação, colocamos um item final (Propostas Adicionais), levando em conta um primeiro debate do Fórum (dezembro de 2003) e parte do que nos foi enviado pelos colegas (entre novembro e dezembro de 2003), embora ainda não tenhamos incorporado tudo o que nos enviaram (entre janeiro e fevereiro de 2004), pois estão agendados vários encontros, promovidos pelo Fórum, para a formação de grupos de trabalho que, tomando todas as observações, sugestões e críticas já enviadas e elaborando as suas próprias, cheguem a uma proposta final a ser entregue ao governo federal.

Marilena Chaui e Sérgio Cardoso
Pelo Fórum de Políticas Públicas da USP

Proposta para a revitalização da rede pública das universidades brasileiras

Diretrizes de política acadêmica e de gestão

I) Objetivo: propor um conjunto de medidas para a revitalização das universidades públicas, visando a recuperação de sua capacidade de iniciativa acadêmica, condição do exercício de seu papel social e político.

A perda da capacidade de iniciativa acadêmica pelas universidades públicas decorre de sua perda de iniciativa no tocante ao acesso ao ensino, às pesquisas e à extensão.

Causa da corrosão da vitalidade acadêmica das universidades: o modelo neoliberal, que enfatiza a racionalidade e eficácia do mercado como mola social e política e como modelo de organização das instituições sociais.

Origem do processo de corrosão institucional das universidades: o relatório do Banco Mundial sobre as universidades públicas da América Latina e do Caribe (meados dos anos 1980). Nesse relatório as universidades públicas são apresentadas como improdutivas, ineficientes, pesadamente burocráticas. O relatório propôs uma reforma (realizada pelo MEC) com os seguintes traços principais: transferência das decisões sobre pesquisas e suas avaliações para agências de fomento e para fundações privadas (recomendação de fomento a centros de excelência extra-universitários ou interuniversitários), prioridade para cursos profissionalizantes e de curta duração, escolarização da graduação, privatização de cursos (tanto por meio de fundações e parcerias com empresas privadas quanto por exclusão de determinados cursos nas universidades públicas e sua transferência para universidades privadas), subvenção pública a universidades privadas e seu rápido reconhecimento pelas agências de fomento, implantação da pós-graduação lato sensu etc.

Diagnóstico

Perda da iniciativa quanto às pesquisas: as decisões sobre linhas de pesquisa, temas de investigação, conteúdos e formas das pesquisas, prazos para conclusão de investigações, avaliação de métodos e de resultados, intercâmbios internacionais passaram a ser tomadas e definidas pelas agências de fomento e por fundações privadas operando no interior das universidades públicas.

Perda da iniciativa quanto ao acesso: as decisões sobre o acesso às universidades públicas passaram a ser tomadas por empresas realizadoras dos exames vestibulares e pelas empresas de cursos pré-vestibulares, que definem os conteúdos dos programas e a forma dos exames, bem como os critérios de avaliação dos estudantes.

Perda da iniciativa quanto ao ensino: não são definidas pelas universidades públicas as grades curriculares, o sistema de créditos, a distinção das disciplinas em obrigatórias e optativas, a duração semestral e não anual das disciplinas, a forma de recuperação dos estudantes não aprovados em disciplinas etc. Além disso, as universidades enfrentam a massificação, que decorre: a) do aumento de vagas sem aumento do corpo docente, transformando os cursos em caricaturas do que já se passa nos cursinhos pré-vestibulares; b) da baixa qualidade do ensino médio, tanto nas escolas públicas quanto nas particulares (estas últimas se diferenciam das primeiras porque oferecem computadores, laboratórios, salas de cinema, vídeo e teatro, salas de lazer, quadras esportivas, como se os meios definissem a qualidade dos fins), cujos programas, material didático, formas de avaliação deixam a desejar; além do preparo precário dos docentes, vindos em sua maioria de licenciaturas curtas ou de cursos de pedagogia em faculdades privadas, salarialmente escorchados, submetidos a violências físicas e psíquicas (como nas periferias de São Paulo e do Rio de Janeiro).

Perda da iniciativa quanto à extensão: a extensão universitária passa, cada vez mais, a ser compreendida como prestação de serviços remunerados oferecidos ao mercado e como fonte de recursos suplementares de manutenção para a instituição e de subsídio para a remuneração insatisfatória de docentes e funcionários (cursos de línguas, cursos de curta duração, seminários, estruturas de assessoria etc.).

Conclusão

Essa perda da capacidade de iniciativa das universidades públicas assinala a perda ou a inexistência de sua autonomia, em prejuízo do cumprimento de suas funções sociais próprias.

II) Este documento propõe, assim, medidas práticas para a necessária readequação e revitalização da rede pública das universidades brasileiras – particularmente do sistema federal de ensino superior – tendo em vista a efetivação ou acentuação dos traços institucionais fundamentais que devem caracterizar estas universidades enquanto instituições sociais de interesse público. A saber:

  • Comprometimento, para além de seus fins mais específicos (a educação e formação superior de cidadãos e profissionais especializados e o exercício livre e aberto da interrogação e da atividade crítica e construtiva do conhecimento em seus registros diversos), com o desenvolvimento humano, cultural, sociopolítico e econômico da sociedade brasileira, a inclusão política, econômica e social e a extensão a todos dos benefícios da investigação científica, da tecnologia e de todo conhecimento.
  • Funcionamento interno pautado por valores, regulações e procedimentos democráticos, seja no nível da convivência e cooperação acadêmicas, seja naquele dos processos de decisão e administração atinentes a todos os registros da vida universitária, inclusive naquele de sua infra-estrutura física e financeira.
  • Autonomia na determinação de suas políticas acadêmicas, projetos e metas, bem como em sua gestão administrativa, financeira e patrimonial – concebida não como independência e arbítrio de suas decisões, mas como meio indispensável para o cumprimento adequado de suas funções e finalidades sociais, de tal modo que sua contrapartida necessária seja o diálogo permanente com os poderes públicos e com a sociedade, que promovem e mantêm as universidades e delas se beneficiam.

São tais traços institucionais fundamentais das universidades públicas – compromisso social, funcionamento democrático e autonomia – que as propostas que se seguem visam determinar, especificar e implementar indicando procedimentos aptos a catalisar mudanças profundas no sistema público da educação superior brasileira, tanto na direção de seus princípios norteadores e ideais históricos quanto naquela das exigências do desenvolvimento cultural, social e econômico da sociedade brasileira, bem como ainda das expectativas atuais da própria comunidade universitária.

Proposta n° 1 (gestão)

  • A destinação e a gestão da totalidade dos recursos públicos que constituem as dotações das universidades do sistema federal de ensino superior serão realizadas pelas próprias universidades de acordo com planos de atuação periódicos por elas elaborados, cabendo ao governo federal supervisionar sua utilização e zelar para que se faça em conformidade com os planos de atuação autonomamente determinados pelas próprias universidades.
  • Para tanto, em períodos regulares, os Conselhos Universitários das universidades públicas, a partir da iniciativa e sob a coordenação das respectivas reitorias, elaborarão o plano de atuação de sua universidade para o período subseqüente (anual, bienal ou trienal, conforme decisão das próprias universidades), estabelecendo as diretrizes de suas políticas acadêmica, administrativa, financeira e patrimonial e designando, de modo claro e com as respectivas previsões orçamentárias, as prioridades de ensino e de pesquisa, projetos e metas da instituição, além dos recursos humanos e equipamentos necessários para sua atuação no período.
  • Desde que elaborado pelo Conselho Universitário tal plano de atuação, a reitoria da universidade convocará um Fórum Público para sua apreciação e discussão, para o qual convidará autoridades dos diversos poderes do Estado e representantes da sociedade civil organizada, visando adequá-lo às necessidades e demandas sociais, culturais e econômicas – sobretudo locais e regionais –, mediante a incorporação das sugestões e críticas.
  • O plano de atuação da universidade, assim definido, será finalmente apreciado, discutido, emendado e votado por um colegiado amplo, constituído em sua base por professores representantes das diferentes unidades universitárias (faculdades, institutos etc.) eleitos por seus pares especialmente para este fim, em número proporcional ao do total de docentes da universidade. Integrarão ainda tal colegiado os diretores de unidade e uma significativa representação estudantil e de funcionários, segundo um número proporcional ao da base docente do colegiado.
  • Os Conselhos Universitários serão, internamente, os fiadores do fiel cumprimento do plano de atuação, cabendo às Congregações das diferentes unidades um papel de vigilância, que elas exercerão, nos casos de possíveis irregularidades, mediante representações dirigidas aos respectivos Conselhos Universitários ou ainda, em casos excepcionais, à agência reguladora do governo, estabelecida nos quadros do Ministério da Educação.

Proposta nº 2 (pesquisa)

  • Visto que, em função da política atual de fomento à pesquisa (com todo o seu aparato de diretrizes ideológicas), a capacidade institucional das universidades públicas relativamente à iniciativa, condução e gestão dos projetos e linhas de investigação nelas desenvolvidas tornou-se irrisória, dado que foi – como já assinalado acima – progressivamente transferida para as agências federais e estaduais de fomento, que hoje elegem, controlam e avaliam os projetos, estabelecendo uma relação direta com os professores-pesquisadores (quase sempre pagos pelas próprias universidades em regime de dedicação exclusiva) ou com estudantes e orientadores, não obstante sua vinculação formal à responsabilidade acadêmica e institucional das universidades.
  • Visto, portanto, que as universidades correm o risco de se tornar cada vez mais, no domínio da pesquisa, meros suportes institucionais de uma produção científica parasitária (ainda que freqüentemente de relevância e qualidades indiscutíveis), à qual fornecem bases materiais e estruturas institucionais de legitimação, chancela social e reconhecimento público (heteronomia que se torna patente pelo esvaziamento das “comissões de pesquisa” de suas diversas unidades e pela redução das Pró-Reitorias de Pesquisa a meros órgãos mediadores de programas internacionais de intercâmbio e a zeladorias dos programas das agências de fomento)
  • Considera-se imperativo e urgente devolver às universidades públicas a iniciativa e responsabilidade institucionais (no nível da eleição, condução, supervisão e avaliação) sobre os programas e projetos de pesquisa, bem como seminários, colóquios etc. realizados em seus institutos, departamentos ou laboratórios, sem o que dificilmente poderão responder de forma autônoma, plena e efetiva aos seus fins próprios e compromissos sociais quanto à produção do conhecimento.

Propõe-se, assim, que o financiamento estatal à pesquisa universitária passe paulatinamente a ser feito às próprias universidades, institucionalmente consideradas, levando-se em conta na repartição dos recursos, seja sua capacidade historicamente comprovada de produção científica e de conhecimento, sejam seus planos de atuação e de expansão previstos para o período considerado. Isto se fará através de duas modalidades de financiamento características:

1. Um sistema de cotas relativas ao total dos recursos disponíveis para o fomento à pesquisa (aos moldes do que já se faz hoje com as bolsas de pós-graduação da CAPES ou com aquelas de iniciação científica do CNPq, atribuídas às diferentes instituições e às suas várias unidades), sendo as cotas estabelecidas segundo os critérios acima designados, além daquele da relevância social dos programas a serem desenvolvidos.

2. Um sistema constituído por editais específicos regularmente dirigidos às universidades (públicas e privadas, consorciadas ou não) para a produção de pesquisas referentes a áreas e temas estratégicos ou que impliquem conhecimentos e recursos intelectuais de grande complexidade ou desafio ou ainda capacitação científica e tecnológica muito sofisticada – em qualquer que seja o domínio do conhecimento (não excluídas as diversas disciplinas das humanidades e das artes).

Ao lado do financiamento atribuído diretamente às universidades, o fomento e apoio à pesquisa por parte do governo federal se farão ainda por dois sistemas distintos – geridos, estes, diretamente pelo MCT:

1. Pela manutenção e expansão da valiosa rede dos institutos de pesquisa e tecnologia – especializados em questões de saúde, agricultura, meteorologia, energia etc. (como a Embrapa, o Instituto Oswaldo Cruz, o Instituto Butantã, institutos agronômicos e de tecnologia de alimentos etc.).

2. Pela criação de um sistema de financiamento de carreiras de pesquisadores independentes – indivíduos ou grupos – não vinculados às universidades (segundo o modelo francês do CNRS, que deverá ser devidamente estudado para sua implantação) e ainda de financiamento de projetos pontuais de interesse público (segundo o modelo, por exemplo, do que têm feito várias fundações para áreas do conhecimento e da cultura que apresentam afinidades com seus interesses próprios).

Proposta nº 3 (ensino)

Vários elementos, como já se assinalou acima, têm concorrido tanto para restringir, perversamente, o acesso à rede das universidades públicas quanto para a queda da qualidade da formação nelas oferecida. Podem ser citados: o investimento insuficiente na expansão e qualificação da rede, a precariedade do ensino médio proporcionado por nossas escolas, a inadequação dos sistemas de seleção em vigência (exames vestibulares) e, sobretudo, as respostas equivocadas que foram oferecidas até aqui a estes problemas, resultando numa massificação progressiva do ensino superior e na perda do traço histórico e definidor mais próprio das instituições universitárias, a saber, a associação da transmissão e da produção do conhecimento.

Assim, considerada a necessidade urgente de reversão de tal quadro, propõem-se aqui cinco medidas específicas concernentes às condições de acesso às universidades e cinco outras relativas às suas atividades de ensino, sobretudo de graduação.

Quanto ao acesso às universidades propõe-se que:

1. as medidas relativas às universidades propostas neste documento sejam concomitantes com uma ampla rearticulação do ensino médio e fundamental, visando esta, sobretudo, a implementação de meios eficazes para a capacitação dos docentes, o estabelecimento de um sistema consistente de avaliação dos estudantes e a produção de materiais didáticos de qualidade – ações que deverão contar com uma efetiva contribuição programática e operacional por parte dos diversos setores das universidades.

2. seja promovido um aumento progressivo do número de vagas nas universidades públicas, respaldado, porém, pelo aumento de seus corpos docentes – através de concursos públicos exigentes, de modo a induzir por eles uma preparação mais intensa por parte dos candidatos. Sejam, deste modo, definitivamente descartadas as figuras do professor substituto ou temporário, do professor bolsista, horista etc. como componentes estruturais das funções docentes das universidades.

3. seja significativamente ampliada a oferta de cursos noturnos, estabelecidos com condições adequadas de funcionamento e, sobretudo nas grandes cidades, em locais de fácil acesso para as camadas da população hoje excluídas das universidades.

4. as modalidades de seleção e o teor dos eventuais exames vestibulares (programas, formato das provas, critérios de avaliação) sejam definidos e supervisionados pelos colegiados docentes dos cursos, institutos ou faculdades específicas a que se destinam os estudantes.

5. as diversas universidades considerem, nos casos de manifesta insuficiência de outros mecanismos de inclusão e integração por elas estabelecidos (sistemas de seleção, cursos noturnos, cursos preparatórios etc.), a definição de cotas étnicas e de cotas para os egressos do sistema público de ensino médio para o preenchimento das vagas nelas disponíveis – consultados os movimentos sociais concernidos.

Quanto ao ensino proporcionado pelas universidades públicas, propõe-se que:

1. o corpo docente destas universidades seja fundamentalmente constituído por professores a elas vinculados em regime de tempo integral e dedicação exclusiva – adequadamente remunerados para tal e efetivamente exigidos no cumprimento de seus compromissos – e só suplementarmente, ou excepcionalmente, admitidos em regimes de trabalho de menor envolvimento com a vida universitária. Todos os encargos de gestão ou coordenação das atividades acadêmicas, em todos os níveis, serão reservados aos professores atados à instituição nos termos do regime de dedicação exclusiva.

2. se limitem progressivamente, como regra geral, as classes dos cursos de graduação ao número de quarenta alunos, medida sem a qual as universidades dificilmente poderão desempenhar seu papel formador.

3. sejam repensadas as estruturas curriculares e o sistema de créditos, de modo a remediar a fragmentação atual do ensino oferecido e a permitir uma formação mais sólida principalmente nas disciplinas de base de cada uma das áreas do conhecimento (que poderão oferecer cursos anuais ou seqüenciados). A grade curricular dos diferentes cursos será constituída por dois grupos de disciplinas: um de vigência nacional (definido pelo Ministério da Educação, ouvidas as universidades), outro estabelecido regional ou localmente, a partir das necessidades e demandas particulares das regiões e de acordo com as características próprias e projetos específicos de cada universidade.

4. (tendo em vista particularmente que o ensino universitário não pode reduzir-se à produção de profissionais especialistas, mas deve estender-se à formação do homem e do cidadão) sejam oferecidas todos os anos aos estudantes de graduação disciplinas optativas de caráter interdisciplinar concernentes a Temas de Cultura Geral, concebidas como um conjunto consistente de aulas-conferência organizadas em torno de questões cultural e socialmente relevantes. Tais cursos serão programados conjuntamente por diferentes unidades da instituição, envolvendo seus professores e estudantes, de modo a, subsidiariamente, proporcionar-lhes também a ampliação de sua experiência propriamente universitária.

5. todos os professores-doutores, qualquer que seja seu nível funcional, tempo de serviço ou distinções acadêmicas, ministrem cursos na graduação e na pós-graduação. Tal medida visa levar à sua plena realização a vocação mais fundamental das universidades enquanto instituições em que a formação em uma determinada área do saber se pensa como inseparável da produção deste próprio saber; ela contribui ainda para evitar o estabelecimento de hierarquias entre professores (prática incompatível com a orientação democrática das universidades) e abre aos alunos de graduação a possibilidade de seguir cursos com professores mais experimentados e proporciona aos pós-graduandos a emulação do contato com professores mais jovens e mais próximos de seu estágio de formação.

Proposta nº 4 (extensão)

As atividades de extensão pelas quais as universidades contribuem para a educação permanente dos cidadãos e tornam acessíveis os saberes nelas conquistados a todos aqueles que deles possam precisar e se beneficiar são um dos aspectos fundamentais do compromisso social a que as universidades, via de regra, têm sido incapazes de atender de maneira ampla e satisfatória. É, portanto, imperioso que as universidades públicas dêem a tais atividades a importância e o alcance a elas devidos – enquanto derivadas de suas funções institucionais próprias – e que as compreendam de maneira abrangente, não só como difusão de conhecimentos, mas como meios de inserção cultural e de educação para a vida e a cidadania.

Neste sentido, apresentam-se também aqui cinco propostas:

1. Os planos de atuação periódicos das universidades públicas (cf. Proposta nº 1) conterão obrigatoriamente diretrizes de políticas específicas de extensão e cultura voltadas para os interesses e necessidades das populações locais e concebidas como forma de integração e cooperação eficaz entre a comunidade universitária (professores, estudantes e funcionários) e a sociedade. Tais políticas englobarão atividades culturais, de ensino, treinamentos, assessorias, apoio técnico e estratégico para empreendimentos de caráter econômico, social ou cultural – sobretudo cooperativos – nas diversas áreas do conhecimento (engenharias, saúde, direito, psicologia etc.).

2. Uma porcentagem fixa e permanente dos recursos orçamentários de cada uma das universidades federais será designada e obrigatoriamente destinada à implementação de suas políticas de extensão e cultura, conforme definidas em seus planos de atuação periódicos. Em hipótese alguma as atividades de extensão poderão ter fins lucrativos ou de suplementação dos recursos orçamentários destinados à instituição ou de remuneração indireta a professores ou servidores.

3. A coordenação e gestão das políticas de extensão e cultura estarão sob a responsabilidade de uma Comissão Universitária de Extensão e Cultura de ampla representatividade – integrada por professores de diferentes unidades, estudantes e funcionários –, reunida e coordenada pela respectiva Pró-Reitoria de Extensão e Cultura ou órgão equivalente.

4. As autoridades universitárias providenciarão as condições necessárias para a abertura dos Campi às populações locais, dando-lhes livre acesso aos espaços comuns e incentivando sua presença através de programações de caráter nitidamente cultural (exposições, cineclubes, música, teatro, palestras e cursos), que lhes serão franqueadas – gratuitamente –, assim como a todos os estudantes.

5. Todos os professores das universidades públicas – independentemente de seu grau acadêmico, função institucional ou administrativa –, tendo em vista seu necessário compromisso com os fins gerais da instituição, deverão obrigatoriamente realizar a cada ano ao menos uma atividade caracterizada como de extensão, integrando-se aos programas propostos pela universidade ou a projetos específicos desenvolvidos em suas unidades de origem. Tais atividades serão incluídas na carga horária obrigatória dos docentes.

Fórum de Políticas Públicas da USP – Novembro de 2003

Propostas Adicionais

1. As medidas de política acadêmica e de gestão acima propostas dependem em grande parte de um programa corajoso de recuperação da saúde financeira das universidades públicas (algo como um PROER para as universidades); um programa que contemple solução definitiva para o crônico problema da remuneração dos inativos e a necessidade urgente de um aumento significativo de suas verbas de custeio e manutenção. Sem tal medida as universidades dificilmente poderão enfrentar os desafios da renovação e promover o necessário aumento de seus corpos docentes, passando a desempenhar adequadamente suas funções sociais próprias. Considerem-se também como inadiáveis medidas no sentido de proporcionar uma remuneração mais adequada a professores e funcionários, particularmente aos docentes vinculados ao regime de tempo integral e dedicação exclusiva.

2. Deverá ser reconhecido, valorizado e apoiado o papel suplementar desempenhado no sistema da educação superior brasileira pelo ensino oferecido por instituições privadas. Elas não só colaboram com o Estado no cumprimento de suas tarefas educacionais como garantem um horizonte mais amplo de pluralismo no que se refere às concepções culturais diversas da tarefa da formação humana e profissional. No que se refere a tais instituições, o governo buscará, em vista do interesse público, estabelecer instrumentos mais eficazes e rigorosos para o exercício de seu papel fiscalizador – garantindo a qualidade do ensino e inibindo uma mercantilização de suas atividades incompatível com sua função social própria.

- O governo utilizará também, no exercício de seu papel regulador, um sistema de credenciamento destas instituições (pautado por exigências relativas às condições de ensino, equipamentos, valor das mensalidades etc.) para o acolhimento de bolsistas financiados pelo governo – provenientes preferencialmente das escolas públicas de nível médio e escolhidos a partir de critérios socioeconômicos e de desempenho escolar. Tais bolsas serão concedidas diretamente aos estudantes, que procurarão obter acesso a uma das instituições credenciadas, em função de suas escolhas de formação e de viabilização de seu projeto de educação universitária.

- Todo o apoio do governo federal às instituições privadas de ensino superior se fará por este sistema de financiamento indireto que visa prioritariamente os estudantes e o interesse público, além de revelar-se um instrumento eficaz de incentivo para o aprimoramento destas instituições. O governo evitará, portanto, todas as outras formas de financiamento ao ensino superior privado, mormente aquelas de provimento de recursos diretos para projetos de instalação, programas de equipamento e financiamento institucional para pesquisa (ressalvados os recursos advindos das concorrências a que alude a Proposta nº 2 deste texto), tendo em conta não só os interesses privados envolvidos nestes investimentos como também a exigüidade dos fundos públicos destinados à educação superior.

- As universidades e faculdades particulares, como beneficiárias do ensino de pós-graduação oferecido pelas universidades públicas, a que devem a formação de grande parte de seus quadros docentes, serão chamadas a oferecer contrapartidas a tais benefícios, pela contribuição (juntamente com outros interessados diretos no sistema) a um fundo público destinado ao financiamento e apoio aos cursos de pós-graduação do país.

3. No tocante ao financiamento da pesquisa com recursos repassados às universidades, o mérito será assegurado por quatro medidas principais:

a) pela definição de prioridades de pesquisa determinada pelo plano de atuação (no qual cada universidade definiu democraticamente suas prioridades de ensino e pesquisa, evitando a guerra mortal entre grupos para obtenção de recursos): a subvenção dos projetos levará em consideração tais prioridades, sem contudo tomá-las como único critério, ressalvando as pesquisas de longo prazo, que extravasam o período de um plano de atuação;

b) pela definição de critérios qualitativos e não quantitativos para a avaliação do mérito dos projetos de pesquisa;

c) pela mudança no papel das comissões de pós-graduação e de pesquisa, hoje reduzidas a funções burocráticas: assim como nas agências há comissões de avaliação do mérito dos projetos (eleitas pelos pares, em alguns casos; nomeadas pela presidência, em outros), as comissões universitárias devem passar a ter papel, fazendo valer os critérios qualitativos, definidos por sua universidade;

d) pela presença de pareceristas externos ad hoc: assim como as agências recorrem a pareceristas externos, assim também as comissões universitárias recorrerão a pareceristas externos para avaliação do mérito dos projetos de pesquisa.