Nacional

Morosidade, ausência de transparência entre outros termos são associados ao Judiciário. Aqui está um debate sobre a reforma.

Na Idade Moderna, só se pode considerar democrático o regime político fundado na soberania popular e cujo objetivo último consiste no respeito integral aos direitos fundamentais da pessoa humana. A soberania do povo, não dirigida à realização dos direitos humanos, conduz necessariamente ao arbítrio da maioria. O respeito integral aos direitos do homem, por sua vez, é inalcançável, quando o poder político supremo não pertence ao povo.

O Poder Judiciário, enquanto órgão de um Estado democrático, há de ser estruturado em função de ambas essas exigências. Ressalte-se, contudo, que, diferentemente dos demais poderes públicos, o Judiciário apresenta uma notável particularidade: embora seja ele, por definição, o principal garante do respeito integral aos direitos humanos, na generalidade dos países os magistrados, salvo raras exceções, não são escolhidos pelo voto popular.

Na verdade, o fator que compatibiliza o Poder Judiciário com o espírito da democracia (no sentido que Montesquieu conferiu ao vocábulo) é um atributo eminente, o único capaz de suprir a ausência do sufrágio eleitoral: é aquele prestígio público, fundado no amplo respeito moral, que na civilização romana denominava-se auctoritas. Ora, esta, numa democracia, funda-se essencialmente na independência e na responsabilidade com que o órgão estatal em seu conjunto e os agentes públicos individualmente considerados exercem as funções políticas que a Constituição, enquanto manifestação original de vontade do povo soberano, lhes atribui.

Se quisermos, portanto, verificar quão democrático é o Poder Judiciário no Brasil, devemos analisar sua organização e seu funcionamento, segundo os requisitos fundamentais da independência e da responsabilidade.

Na Idade Moderna, só se pode considerar democrático o regime político fundado na soberania popular e cujo objetivo último consiste no respeito integral aos direitos fundamentais da pessoa humana. A soberania do povo, não dirigida à realização dos direitos humanos, conduz necessariamente ao arbítrio da maioria. O respeito integral aos direitos do homem, por sua vez, é inalcançável, quando o poder político supremo não pertence ao povo.

O Poder Judiciário, enquanto órgão de um Estado democrático, há de ser estruturado em função de ambas essas exigências. Ressalte-se, contudo, que, diferentemente dos demais poderes públicos, o Judiciário apresenta uma notável particularidade: embora seja ele, por definição, o principal garante do respeito integral aos direitos humanos, na generalidade dos países os magistrados, salvo raras exceções, não são escolhidos pelo voto popular.

Na verdade, o fator que compatibiliza o Poder Judiciário com o espírito da democracia (no sentido que Montesquieu conferiu ao vocábulo) é um atributo eminente, o único capaz de suprir a ausência do sufrágio eleitoral: é aquele prestígio público, fundado no amplo respeito moral, que na civilização romana denominava-se auctoritas. Ora, esta, numa democracia, funda-se essencialmente na independência e na responsabilidade com que o órgão estatal em seu conjunto e os agentes públicos individualmente considerados exercem as funções políticas que a Constituição, enquanto manifestação original de vontade do povo soberano, lhes atribui.

Se quisermos, portanto, verificar quão democrático é o Poder Judiciário no Brasil, devemos analisar sua organização e seu funcionamento, segundo os requisitos fundamentais da independência e da responsabilidade.

Independência

Esclareçamos, desde logo, o sentido técnico do termo. Diz-se que o Poder Judiciário em seu conjunto é independente, quando não está submetido aos demais Poderes do Estado. Por sua vez, dizem-se independentes os magistrados, quando não há subordinação hierárquica entre eles, não obstante a multiplicidade de instâncias e graus de jurisdição. Com efeito, ao contrário da forma como é estruturada a administração pública, os magistrados não dão nem recebem ordens, uns em relação aos outros.

A independência funcional da magistratura, assim entendida, é uma garantia institucional do regime democrático. O conceito de garantia institucional foi elaborado pela doutrina publicista alemã à época da República de Weimar, para designar as formas de organização dos poderes públicos, cuja função é assegurar o respeito aos direitos subjetivos fundamentais, declarados na ConstituiçãoSobre o assunto vejam-se, na doutrina brasileira, Paulo Bonavides, Curso de Direito Constitucional, 7ª ed., Malheiros Editores, capítulo 15; e na doutrina alemã contemporânea, Klaus Stern, Das Staatsrecht der Bundesrepublik Deutschland, tomo III/1, Munique, Verlag C.H. Beck, 1988, § 68..

Desde a nossa primeira Constituição republicana, seguimos, em matéria de organização dos poderes públicos, o modelo original norte-americano, cujo pressuposto ideológico foi o cuidado em delimitar e restringir a competência do Poder Legislativo, o qual teria, na opinião dos Pais Fundadores dos Estados Unidos, uma inclinação natural ao abuso de poder. “O corpo legislativo”, escreveu Madison, “estende por toda parte a esfera de sua atividade, e engole todos os poderes no seu turbilhão impetuoso.”The Federalist, ensaio nº 48, The Modern Library, Nova York, p. 322. Acrescentou que o Poder Executivo deve ser temido num regime monárquico, ou mesmo quando o povo exerce diretamente a função legislativa. “Mas numa república representativa”, ponderou, “em que a magistratura executiva é limitada, tanto na extensão como na duração dos seus poderes, e onde o poder de legislar é exercido por uma assembléia cheia de confiança nas suas próprias forças, pela certeza que tem da sua influência sobre o povo; [...] em tal estado de coisas é contra as empresas ambiciosas desse poder que o povo deve dirigir os seus ciúmes e esgotar todas as precauções.”Ibidem, p. 322-323.

Acontece que em nosso país – como na generalidade das nações latino-americanas, de resto – a tradição colonial moldou os costumes políticos no sentido da máxima concentração de poderes na pessoa do chefe de Estado. Ao adotarmos, pois, o regime presidencial de governo, em que o chefe de Estado é, ao mesmo tempo, chefe de Governo, nada mais fizemos do que criar, sob pretexto de uma reprodução do modelo norte-americano, um presidencialismo exacerbado.

Já durante o regime monárquico, aliás, a predominância inconteste da vontade imperial sobre todos os órgãos do Estado, e até mesmo acima da vontade popular, pelo exercício do Poder Moderador, era bem conhecida. Como frisou o marquês de Itaboraí (Rodrigues Torres), “o Imperador reina, governa e administra”. Sua Majestade concentrava em suas mãos todas as prerrogativas do Poder Executivo, o qual, como reconheceu Joaquim Nabuco, sempre foi onipotente, sendo esta onipotência, em suas palavras, “o traço saliente do nosso sistema político”Um Estadista do Império, Rio de Janeiro, Nova Aguilar, p. 239..

Não era, assim, de admirar que durante todo o período imperial o Judiciário se apresentasse como fiel servidor do governo. Ele era “uma mola da máquina administrativa” Um Estadista do Império, Rio de Janeiro, Nova Aguilar, p. 239., como reconheceu sem disfarces o visconde de UruguaiEnsaio sobre o Direito Administrativo, t. II, Rio de Janeiro, Typographia Nacional, 1862, p. 261.. Nas palavras candentes de José Antonio Pimenta Bueno, o futuro marquês de São Vicente e o mais autorizado constitucionalista do período imperial, “o governo é quem dá as vantagens pecuniárias, os acessos, honras e distinções; é quem conserva ou remove, enfim quem dá os despachos não só aos magistrados, mas a seus filhos, parentes e amigos” Apontamentos sobre o Processo Criminal Brasileiro, 2ª ed., Rio de Janeiro, 1857, p. 39..

A Constituição de 1891, procurando corrigir tais abusos, determinou em seu artigo 57 que “os juízes federais são vitalícios e perderão o cargo unicamente por sentença judicial”. Acrescentou que “os seus vencimentos serão determinados por lei e não poderão ser diminuídos”. Mas, como a Constituição só se referiu, aí, aos juízes federais, alguns estados resolveram não observar essas garantias em relação a seus magistrados. O Supremo Tribunal Federal, chamado a se pronunciar sobre o assunto, julgou que as garantias de vitaliciedade, inamovibilidade e irredutibilidade dos vencimentos da magistratura deviam ser observadas, como princípio constitucional, por todos os estados da Federação; o que veio, afinal, a ser consagrado pela reforma constitucional de 1926. No entanto, como tais garantias não se consideravam aplicáveis aos juízes temporários, essa escapatória foi largamente aproveitada, não só pela União como também pelos estados federados.

Consolidou-se, com isso, o costume político segundo o qual as relações entre o Executivo e os demais órgãos estatais não são de potência a potência, mas de quase vassalagem destes para com aquele; ou, mais exatamente, de submissão geral à pessoa do presidente ou do governador de estado – o que representa, de certo modo, a transposição na esfera estatal do tradicional relacionamento do coronel do interior com seus agregados e capatazesRelembre-se o já clássico ensaio de Victor Nunes Leal, Coronelismo, Enxada e Voto, cuja 1ª edição é de 1949.. Da mesma forma, entre o povo e o Estado, personificado na figura do chefe do Executivo, quase nunca se estabelece uma relação de cidadania, mas sim uma situação de dependência ou proteção pessoal, análoga à que existe entre pais e filhos, ou entre padrastos e enteados. O povo não foi educado a exercer direitos e a exigir justiça, mas tem sido habitualmente domesticado a procurar auxílios e favores.

É isso o que tende a falsear completamente a posição da magistratura em nossa organização de poderes. É ingênuo acreditar que a evolução constitucional pôs, finalmente, juízes e tribunais ao abrigo da avassaladora hegemonia governamental.

Se quisermos, portanto, garantir a independência do Poder Judiciário, precisamos, sobretudo, protegê-lo contra as indevidas incursões do Executivo em seu território.

É nesse sentido que passo a alinhar algumas sugestões de reforma.

Preenchimento de cargos nos tribunais

O Supremo Tribunal Federal deveria ser composto de quinze ministros, um terço dos quais por indicação do próprio Tribunal, o outro terço indicado pelo Ministério Público Federal e o último terço pela Ordem dos Advogados do Brasil. As indicações seriam sempre feitas em listas tríplices, e a escolha dos ministros competiria ao Senado Federal, em votação com o quorum qualificado de dois terços dos senadores.

No Superior Tribunal de Justiça, manter-se-ia a mesma composição prevista no artigo 104, parágrafo único, da Constituição, mas a designação dos ministros incumbiria também ao Senado Federal, deliberando com o mesmo quorum qualificado que se acaba de indicar.

Igualmente para o Tribunal Superior do Trabalho, manter-se-ia a mesma composição determinada no artigo 111, § 1º, da Constituição, mas as indicações seriam feitas em listas tríplices pelo próprio Tribunal, pelo Ministério Público do Trabalho e pela Ordem dos Advogados do Brasil, com a escolha definitiva sendo feita pelo Senado Federal, nas mesmas condições acima referidas.

Quanto aos demais tribunais federais e os tribunais dos estados e do Distrito Federal, quatro quintos de seus integrantes deveriam ser escolhidos dentre juízes de Direito, alternativamente por antiguidade e por concurso público, e o quinto restante na forma do disposto no artigo 94 da Constituição. Seria, assim, abolido o critério de escolha por merecimento, o qual enseja uma inevitável margem de arbítrio por parte dos tribunais de Justiça.

Emendas constitucionais reguladoras da organização, das prerrogativas e do funcionamento do Judiciário

Em se tratando de emendar a Constituição para regular a organização e o funcionamento dos poderes públicos, bem como para a fixação das prerrogativas de seus agentes, a proposta deveria ser submetida a referendo popular. Nada é mais característico da consolidada usurpação da soberania do povo, estabelecida entre nós, do que a facilidade com que o impropriamente chamado poder constituinte derivado se atribui a prerrogativa de decidir, em definitivo, assuntos de tanta relevância para a vida democrática.

Em relação ao Judiciário, porém, essa exigência ainda não é bastante. É que, ao contrário dos demais Poderes, ele tem estado, pela tradição constitucional, alheio ao procedimento de emenda ou reforma da Constituição. Entendo que, dada a posição relativamente inferior do Judiciário em relação aos demais Poderes do Estado no equilíbrio constitucional de competências, é indispensável estabelecer a regra de que toda e qualquer proposta de emenda à Constituição, relativa ao Poder Judiciário e à magistratura nacional, seja de iniciativa exclusiva do Supremo Tribunal Federal, analogamente ao que estabelece a Constituição no que concerne ao Estatuto da Magistratura (artigo 93).

Autonomia financeira do Poder Judiciário e fixação dos subsídios da magistratura

A Constituição Federal, em seu artigo 99, estabeleceu a autonomia administrativa e financeira do Poder Judiciário. Isso não impediu, contudo, que o Executivo, pressionado pelo Fundo Monetário Internacional, e com a cumplicidade do Congresso Nacional, promulgasse a chamada Lei de Responsabilidade Fiscal (Lei Complementar 101, de 4/5/2000), que fixou limites intransponíveis para as despesas de pessoal do Judiciário, sem que este houvesse participado oficialmente do processo de elaboração da lei.

O adequado funcionamento da Justiça para a proteção efetiva da dignidade humana, princípio supremo da ordem jurídica, não se compadece, claro está, com essa visão fiscalista da coisa pública. É indispensável e urgente iniciar uma vigorosa campanha nacional para a fixação, por lei complementar, de um número mínimo de juízes de primeira instância, na União, nos estados e no Distrito Federal, em função do número efetivo de habitantes, e de uma correspondente proporção mínima de magistrados dos tribunais de segunda instância, em relação aos juízes de primeira instância, bem como de um número mínimo de membros dos tribunais superiores, em relação aos integrantes dos tribunais de segunda instância. Nunca é demais lembrar que a prestação de justiça é a mais nobre das atividades-fim do Estado, não podendo, portanto, em hipótese alguma, subordinar-se à regra instrumental de balanceamento das contas públicas.

Quanto à fixação dos subsídios da magistratura, dever-se-ia partir, no plano federal, da regra de que os subsídios dos ministros do Supremo Tribunal Federal, do presidente e do vice-presidente da República, bem como dos deputados federais e senadores, seriam estabelecidos conjuntamente pelos representantes desses três Poderes.

Competiria, em seguida, ao Supremo Tribunal Federal fixar os subsídios dos magistrados dos tribunais superiores, dos tribunais regionais federais, dos tribunais e juízes eleitorais, dos tribunais e juízes do trabalho e dos tribunais e juízes militares federais. No plano estadual, haveria análogo procedimento, respeitados os limites máximos fixados pela Constituição.

Isenção política dos magistrados

Ultimamente, tem-se vulgarizado a prática de magistrados, sobretudo dos tribunais superiores da República, fazerem pronunciamentos públicos sobre assuntos de governo, sem nenhuma ligação com os interesses da magistratura nacional. Entrevista concedida pelo presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Maurício Corrêa, a uma revista de circulação nacional, bem ilustrou esse abuso.

Será ainda preciso relembrar que tais atitudes contribuem fortemente para destruir o prestígio público e a necessária aura de imparcialidade que é apanágio dos magistrados? Quem não percebe, afinal, que, depois de pronunciar-se publicamente, fora do contexto de um litígio judicial, contra ou a favor da atuação de governantes ou parlamentares, o magistrado perde a isenção para julgar, eventualmente, causas em que esses governantes ou parlamentares se achem, direta ou indiretamente, envolvidos?

Faz-se mister, portanto, acrescentar à vedação constante do artigo 36, inciso III, da atual Lei Orgânica da Magistratura NacionalÉ vedado ao magistrado: ...III – manifestar, por qualquer meio de comunicação, opinião sobre processo pendente de julgamento, seu ou de outrem, ou juízo depreciativo sobre despachos, votos ou sentenças, de órgãos judiciais, ressalvada a crítica nos autos e em obras técnicas ou no exercício do magistério..”, mais uma, concernente a pronunciamentos públicos, feitos por magistrados fora dos processos judiciais, sobre políticas de governo ou atos de quaisquer agentes públicos, ressalvada a crítica impessoal manifestada em obras doutrinárias ou no exercício do magistério.

Responsabilidade

A essência do regime republicano, como a etimologia indica, é o fato de que o poder político não pertence, como um ativo patrimonial, aos governantes ou agentes estatais, mas é um bem comum do povo. Res publica, res populi, dizia-se em Roma Cícero, De republica, livro I, XXV, 39.. É só neste preciso sentido que se pode falar em poder público.

Ora, o corolário lógico desse princípio fundamental é a necessária correlação existente entre poder e responsabilidade. Quanto maior o poder, maior a responsabilidade, entendida esta como o dever que incumbe ao detentor do poder, em nome de outrem, de responder pela forma como o exerce.

A responsabilidade desdobra-se, na verdade, em duas relações: a correspondente ao dever de prestar contas (que na língua inglesa denomina-se accountability) e a relação de sujeição às sanções cominadas em lei pelo mau exercício do poder (liability).

Numa república democrática, os controles institucionais de abuso de poder pelos órgãos do Estado são de duas espécies: o horizontal, ligado ao mecanismo da separação de Poderes, e o vertical, fundado na soberania popular. Na verdade, a democracia é o regime político no qual ninguém, nem mesmo o povo soberano, exerce um poder absoluto, sem controles. O poder soberano do povo só pode ser exercido, legitimamente, no quadro da Constituição. E é, justamente, ao Poder Judiciário que incumbe a magna função de interpretar os limites constitucionais dentro dos quais há de ser exercida a soberania popular.

Se assim é, se o próprio povo soberano tem sua ação limitada nos termos da Constituição, com maioria de razão deve a atuação do Judiciário ser submetida a uma fiscalização permanente de sua regularidade. Ora, é forçoso reconhecer que os controles institucionais da ação do Judiciário, em nossa sociedade, são muito frouxos e mesmo, em certos setores, praticamente inexistentes.

Comecemos pelo controle horizontal. Se se exige, com razão, total independência do Judiciário no julgamento dos demais poderes públicos à luz dos mandamentos constitucionais e legais, não se compreende por que o corpo de magistrados não deva se submeter, por igual, a um controle externo de seu comportamento por outros órgãos, para efeito de apuração de suas responsabilidades, tanto no nível penal quanto no civil e no disciplinar.

É falacioso objetar que a fiscalização ab extra da ação dos magistrados importaria na perda de sua independência de julgamento e de seu poder disciplinar interno. Em primeiro lugar, porque esse exame não implica, em hipótese alguma, uma revisão das decisões processuais ou de mérito, dadas por juízes e tribunais. Ele tem por objeto, de um lado, o modo como os magistrados se desempenham no exercício dessa sua função privativa e, de outro lado, sua conduta pessoal fora dessa atuação funcional. Em segundo lugar, porque o controle externo não pode jamais abranger a competência de julgamento, assim como a censura judicial dos atos do Poder Legislativo e do Poder Executivo não significa a assunção pelo Judiciário das funções privativas desses ramos do Estado. Em terceiro lugar, porque um mecanismo de exame externo do funcionamento do Judiciário não acarreta a abolição do poder disciplinar interno dos órgãos judiciais, mas o complementa.

Atualmente, existe um poder censório geral do Judiciário, atribuído ao Conselho Nacional da Magistratura (Lei Orgânica da Magistratura Nacional – Lei Complementar 35, de 14/3/1979). Mas esse órgão, constituído por sete ministros do Supremo Tribunal Federal, tem sido de todo inoperante, pois não dispõe, como é óbvio, da menor condição de exercer a fiscalização do desempenho funcional de todos os juízes e tribunais do país.

Sem dúvida, o mais adequado, numa democracia, é ter a fiscalização não judicial dos Poderes do Estado exercida por um órgão de representação popular. Entre nós, porém, nenhum dos órgãos legislativos existentes apresenta condições aceitáveis para desempenhar essa função. O Senado Federal não representa o povo brasileiro, mas sim os estados federados e o Distrito Federal. E, quanto à Câmara dos Deputados e às assembléias legislativas, elas mal dão conta das funções que lhes foram atribuídas pela Consti­tuição, e não suportariam, como é evidente, assumir mais outra, de tão grande complexidade.

O ideal seria instituir outro órgão de representação popular, tanto no nível federal quanto no estadual, com a competência exclusiva de exercer todas as funções de fiscalização e inquérito atualmente atribuídas aos órgãos legislativos, além da supervisão permanente do funcionamento do Poder Judiciário.

A segunda melhor solução seria instituir, na União, em cada estado e no Distrito Federal, um órgão de controle, composto de agentes das funções essenciais da Justiça, a saber, o Ministério Público e a advocacia (nesta incluídas a advocacia e a defensoria públicas). Esse órgão teria a incumbência de verificar o cumprimento, por todos os magistrados, inclusive os ministros do Supremo Tribunal Federal, dos deveres funcionais declarados em lei (atualmente, artigo 35 e seguintes da Lei Orgânica da Magistratura) e encaminhar a conclusão de seus inquéritos às autoridades competentes para a aplicação das sanções legais.

Nessa ordem de idéias, não parece adequado que, em matéria de crimes comuns, os ministros do Supremo Tribunal Federal mantenham o privilégio de ser julgados por seus pares. Poder-se-ia, assim, cogitar da criação de um órgão judiciário especial para tais casos, composto de cinco ministros mais antigos em atuação no Superior Tribunal de Justiça.

No tocante ao controle vertical da atuação da magistratura, convém recordar que a Carta Política do Império, em seu artigo 157, instituiu uma ação criminal contra os juízes de direito, “por suborno, peita, peculato e concussão”, a qual poderia ser intentada “dentro de ano e dia pelo próprio queixoso, ou por qualquer do povo, guardada a ordem do processo estabelecida na lei”.

Sem dúvida, essa espécie de ação popular criminal, limitada exclusivamente à hipótese em que o réu é magistrado, não mais se justifica nos dias atuais. Conviria, no entanto, criar uma ação popular criminal subsidiária, mediante adaptação do disposto no artigo 5, inciso LIX, da Constituição Federal, toda vez que o réu seja um agente público. Em tal hipótese, a ação penal subsidiária deveria ser admitida, ainda quando o representante do Ministério Público se recusasse, expressamente, a oferecer a denúncia.

Por outro lado, não se deve nunca esquecer de garantir cumpridamente a todos os jurisdicionados o respeito ao direito fundamental de obter, no Judiciário, um julgamento isento.

Nesse sentido, proponho a adoção de uma providência processual simples, a fim de resolver o problema – assaz freqüente, aliás – de os jurisdicionados se encontrarem efetivamente privados do direito de ser julgados de forma imparcial na comarca em que são domiciliados. Suponha-se a hipótese de um juiz de direito que, em região de agudo conflito agrário, coloque-se objetivamente – de modo intencional ou não, pouco importa – do lado dos proprietários rurais e se empenhe em distribuir, mais a torto que a direito, condenações criminais a mancheias contra todos os que atuem, direta ou indiretamente, a favor da reforma agrária; além de julgar sistematicamente improcedentes as ações possessórias e reipersecutórias intentadas por essas mesmas pessoas. As regras processuais concernentes à suspeição não têm aí aplicação, em princípio, pois não se consegue provar nenhum interesse pessoal do magistrado na solução das lides submetidas a sua decisão.

Para a solução de casos dessa natureza, poder-se-ia cogitar de atribuir a qualquer parte em juízo, em qualquer espécie de processo, o direito de obter o desaforamento do feito para o juízo que vier a ser designado pelo tribunal de segunda instância. Seria um direito potestativo, exercitável, portanto, sem que seu titular tenha de alegar motivo algum. A freqüência com que for exercido esse direito, em determinado juízo, serviria como indício de que o magistrado já não goza da indispensável confiança dos jurisdicionados, havendo perdido sua auctoritas funcional.

Eis aí as sugestões que me pareceu importante e oportuno oferecer à consideração geral, como subsídio aos trabalhos de aperfeiçoamento da organização do Poder Judiciário em nosso país.

Fábio Konder Comparato é doutor honoris causa da Universidade de Coimbra e doutor em Direito da Universidade de Paris e professor titular da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo