Nacional

Entrevista com Jorge Eduardo Saavera Durão, diretor-geral da Associação Brasileira de ONGs

O diretor-geral da Associação Brasileira de ONGs considera positiva a institucionalização da participação no governo Lula, mas manifesta frustração com as expectativas de mudanças

Qual o perfil da Associação Brasileira de Organizações Não-Governamentais, que reúne instituições com interesses muito diversificados? Que papel ela se propõe a desempenhar na sociedade?

A Abong reúne um conjunto de organizações muito marcado por uma determinada trajetória histórica. As primeiras associadas são aquelas ONGs que existiam no tempo da ditadura militar e tiveram papel de resistência. Atuavam com as limitações e discretamente, como a época permitia, mas tiveram um papel importante no processo de reorganização dos movimentos sociais. Muitas ajudaram no processo de criação da CUT em 1983.

São entidades que têm um compromisso com o aprofundamento do processo democrático, entendido como fortalecimento de atores sociais, de sujeitos coletivos populares. Nossas ONGs têm uma carta de princípios na qual se destacam a luta contra a exclusão social, as desigualdades sociais, racial e de gênero, a busca de alternativas sustentáveis de desenvolvimento do ponto de vista socioambiental, além da luta pela promoção e defesa dos direitos sociais.

Há entidades de assistência social, algumas com um sentido mais amplo de atuação em termos de defesa da política de assistência social, de promoção de direitos, outras mais tradicionais no sentido de serem exclusivamente de prestação de serviços, e há ainda as fundações empresariais. São 270 associadas das mais diversas áreas de atuação. O que dá unidade a esse campo é o sentido mais político da ação, a luta por políticas públicas universais, pelo fortalecimento dos movimentos sociais.

A Abong realizou em abril o seminário “Avaliação do governo Lula”. Afinal, os passos do governo Lula neste primeiro ano e meio respondem às esperanças construídas pela ampla mobilização da sociedade nas últimas décadas?

O governo Lula tem frustrado as expectativas mesmo daqueles segmentos que tinham maior abertura para compreender que não seria fácil a transição do governo Fernando Henrique para uma nova política. No início havia grande expectativa de que o governo Lula sinalizaria o caminho da mudança. Mas a partir de determinado momento não só não atendeu a essa expectativa como preferiu reiterar a continuidade, sobretudo da política macroeconômica. Isso significa uma completa limitação da perspectiva de realização de um projeto de governo distinto do anterior, de inserção subordinada do Brasil nesse contexto de dominação dos mercados financeiros, sem crescimento algum.

Justifica-se a política econômica adotada em função da vulnerabilidade externa herdada do governo FHC e também de uma conquista de credibilidade. Vocês discutiram se isso é pertinente?

Um relato objetivo da discussão mostra que esse foi um ponto polêmico, no qual algumas pessoas destacaram algo que nós não devemos perder de vista. Quando Lula assumiu a Presidência da República, o crédito para as exportações brasileiras estava ameaçado, o dólar estava disparando em relação ao real. De maneira que em nosso seminário ninguém subestimou a gravidade do quadro herdado pelo governo Lula.

Em setembro 2003, quando tivemos uma audiência com o presidente Lula, fiquei chocado com o que ele disse sobre estar em vias de superação dessa situação de vulnerabilidade externa por meio exatamente de conquistar a confiança do mercado. Não acredito absolutamente nisso. O mercado reage favoravelmente no dia-a-dia a ações e, de preferência, a omissões dos governos que mantenham seus interesses intocados. Não percebo uma ação positiva do governo no sentido de reduzir a vulnerabilidade externa. Nem há medidas de cunho preventivo, por exemplo, para estabelecer restrições ao fluxo de capitais. A política do Banco Central, a política monetária, a forma como é administrada a taxa de juros não têm reduzido a vulnerabilidade externa do Brasil. É preciso que o governo diga de maneira mais clara para a sociedade como ela está sendo reduzida.

A aposta para reduzi-la é uma só: que os credores da dívida pública, interna ou externa, confiem na vontade política do governo de honrar esses contratos. Quando começamos a ver as previsões no cenário internacional de elevação da taxa de juros nos Estados Unidos, fica evidente que até agora houve circunstâncias favoráveis à recuperação da situação econômica de curto prazo, decorrentes de uma certa liquidez internacional somada à surpresa agradável da política macroeconômica do governo Lula. Muitos economistas e políticos dizem, e parece razoável, que é central para o mercado financeiro que os investidores internacionais confiem em uma determinada economia em sua perspectiva de crescimento econômico. E no caso brasileiro essa perspectiva não está dada.

É possível vislumbrar algum crescimento com a continuidade dessa política?

Não sou economista, mas acho que a continuidade dessa política levará no máximo a momentos de crescimento medíocre.

Em artigo recente o senhor questiona se o “acordo de cavalheiros da transição política já não refletia a decisão de continuidade em relação à política anterior”. Como chegou a essa reflexão?

Para mim, o governo optou por não apresentar o quadro herdado do governo Fernando Henrique em toda a sua gravidade e extensão por ser contraproducente para conquistar confiança por meio da continuidade de alguns aspectos fundamentais da política anterior. Veja a contradição que não me cabe explicar, mas ao governo Lula: como é possível dizer que a política de Fernando Henrique gerou herança maldita e continuá-la em aspectos essenciais sem ao menos indicar para a sociedade o caminho da mudança? Quando eu estava mais otimista ficava ansioso esperando o momento da virada. Mas agora penso que não está no horizonte do governo Lula essa virada, a não ser que ele seja levado a ela por força de circunstâncias que escapem a seu controle.

Que circunstâncias podem ser essas?

A não ser que essa situação de vulnerabilidade externa resulte numa nova situação de crise. O governo Fernando Henrique Cardoso não era o governo que mais fazia jus a credibilidade. Mesmo quando ele estava rezando pela cartilha do FMI, a situação escapou ao controle, como em 2002. Em 1998, o Brasil também foi alvo de um ataque especulativo, uma situação gravíssima da qual só saímos com a desvalorização do real, empréstimo do FMI... Não acredito que o governo Lula tenha as mesmas condições políticas que o governo anterior de administrar esse tipo de situação como parte da normalidade. Até porque acho que a própria expectativa popular se modificou. Em 1998, na passagem do primeiro para o segundo mandato, Fernando Henrique ainda tinha o crédito muito grande da estabilização da moeda, do controle da inflação. O controle da inflação não é mais suficiente para manter a base de sustentação política de um governo que foi eleito com outros compromissos, de retomada do crescimento econômico, geração em massa de empregos... Fico espantado quando o presidente fala: “Nós nos comprometemos a respeitar os contratos...” Entendo que a promessa de criar milhões de empregos é um contrato firmado tacitamente com os milhões de eleitores que votaram nesse governo. É um compromisso político.

O seminário promovido pela Abong produziu um documento em que frisa a necessidade de pressionar o governo por mudanças. Como se dará isso?

Nós temos plena consciência de nossas limitações enquanto associação, não é um movimento de massas, um sindicato. ONGs não se confundem com partidos políticos. Mas atuamos como formadores de opinião, em espaços institucionais de controle de políticas públicas. Nossa ação se legitima muito mais pela coerência com determinados compromissos, programáticos, ou com determinadas causas. Nosso papel é ajudar a manter vivas no debate político questões que às vezes os partidos brasileiros, pelas flutuações da luta política, acabam esquecendo. Nossa forma de pressão é reafirmar no cotidiano esses valores e objetivos, apontando falhas e acertos nas políticas públicas. Não é como saiu em um jornal: “Neste abril vermelho ONGs iniciam um ataque contra o governo Lula”.

Como foi o encontro com o presidente, houve desdobramentos, acordos, promessas?

Parte da minha percepção de como o governo encara a situação é resultante dessa conversa com o presidente. Porque ele insistiu muito nos temas da conquista da credibilidade, da gravidade da herança recebida, e disse que não seria coerente com a necessidade de obter essa credibilidade dramatizar o quadro herdado do governo anterior.

Vocês reivindicaram canais de participação...

Não reivindicamos porque reconhecemos que o governo Lula é bastante aberto à participação da sociedade civil. Tínhamos uma agenda de interesse específico das ONGs, questões como marco legal, com relação à política de cooperação internacional, a fundos públicos, e o presidente deu encaminhamento para a Secretaria-Geral da Presidência da República.

A Secretaria-Geral da Presidência tem se dedicado a estabelecer essa interlocução com os movimentos, com a sociedade. O PPA, por exemplo, é um dos frutos desse trabalho. Como o senhor avalia os resultados dessa relação?

A missão da Secretaria-Geral é abrir canais e facilitar essa interlocução, aspecto sobre o qual nossa avaliação é positiva. A participação está institucionalizada de maneira ampla, e as ONGs participam de inúmeros conselhos de políticas públicas – Consea, Conselho Nacional das Cidades, do CNAS. Em cada um desses, em relação a cada uma dessas políticas, os resultados são diferenciados. No caso do PPA, a Abong se dispôs a ter um papel facilitador. Atendemos a um pedido da Secretaria-Geral e valeu a pena, porque foi uma experiência nova e importante ouvir não as ONGs, mas amplos segmentos da sociedade civil em 27 estados. Por outro lado, questionamos o alcance desse processo de participação porque algumas das posições assumidas com mais freqüência pela sociedade civil nesse processo não foram consideradas. Por exemplo, em muitos estados houve manifestações críticas com relação ao superávit primário, a necessidade de reduzi-lo.

Outras emendas foram encaminhadas ao Congresso Nacional, mas não foram incorporadas. Houve um incidente significativo, que foi a substituição do relator do PPA, senador Saturnino Braga, sendo que um dos motivos foi o fato de ele ter incorporado num relatório a idéia de uma redução progressiva do superávit primário – o que mostra o peso da área econômica.

Claro que também não temos ilusões de que esse processo de democracia participativa no Brasil se sobreponha a instâncias decisórias do Congresso Nacional e do Poder Executivo. Apesar de o governo Lula ter assumidamente uma visão avançada com relação à participação, o problema é seu alcance prático, na medida em que ela se refere a um conjunto de políticas públicas e acaba esbarrando nos limites da política econômica, nos limites da implementação dessas políticas.

Com relação a algumas questões mais específicas das ONGs, ou do chamado Terceiro Setor, como o marco legal, o governo Lula não tinha uma posição clara. Tentou criar um novo marco jurídico paralelo ao antigo, cheio de aberrações, de arcaísmo.Parte da legislação que incide sobre a atuação de organizações da sociedade civil no campo social é herdada dos anos 30, do Estado Novo, que a criou para regular o trabalho assistencial desenvolvido, feito pela Igreja Católica ou por pequenas entidades, às vezes com recursos de entidades patronais. É dessa época o título de utilidade pública, que pode ser federal, estadual ou municipal, de entidade beneficente, filantrópica. Isso foi modificado em parte pela Lei Orgânica da Assistência Social.

Há uma grande confusão: parte das entidades ditas beneficentes ou filantrópicas são, na minha opinião, empresas disfarçadas de entidades filantrópicas. As PUCs, por exemplo, são consideradas entidades beneficentes de educação e têm os chamados Cebas, Certificados de Entidades Beneficentes de Assistência Social, o que lhes dá direito a imunidade tributária, a não pagar contribuição previdenciária patronal. É um problemão, que inclusive se tornou objeto de grande interesse no governo Fernando Henrique não com o propósito de melhorar a assistência social ou o setor, mas de ordem fiscalista. Então, lidamos com esse quadro contraditório. Somos sensíveis à preocupação dos governos em não permitir renúncia fiscal indevida, mas não sem ter política positiva de fortalecimento da seguridade social ou da assistência social.

Fernando Henrique criou um novo estatuto legal, a Lei das Oscip, Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público, que permite termos de parceria. Essa lei é um avanço, porque cria o reconhecimento do interesse público das entidades da sociedade civil que preenchem determinados requisitos e atuam nesse campo, mas como não mexeram na lei anterior, ou não tiveram força política, existem duas legislações paralelas.

Não existe na lei brasileira nada que se chame de ONG, há associação civil ou fundação. Essas organizações podem ter o caráter que tiverem, até de clube de futebol, grêmio literário, podendo receber ou não qualificações legais. Então, entidade beneficente de assistência social é uma qualificação, Oscip é outra, mas não é um formato jurídico. Se o governo quiser ter uma política positiva, coerente, terá de fazer um grande investimento.

Participamos de uma espécie de audiência promovida pela Secretaria-Geral, com representantes de vários ministérios. Estão formando ainda uma análise do governo com relação à questão. E nossa expectativa é de que finalmente passe a funcionar um grupo de trabalho, paritário, enfim, com participação da sociedade civil e do governo, em que haja debate e as posições distintas possam aparecer.

Ainda com relação à participação da sociedade, qual sua opinião sobre o CDES, o Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social?

Houve muitas críticas no campo das ONGs e de outras entidades da sociedade civil à composição do CDES, que talvez reflita um certo olhar sindicalista sobre a sociedade, com grande quantidade de empresários... Há forte peso do capital, secundariamente do trabalho e muito menor de outras expressões da sociedade civil.

Apesar dessa composição, o conselho se revelou um espaço de expressão de insatisfações com relação, sobretudo, aos rumos da política econômica. Em mais de um momento o presidente compareceu ao CDES para reforçar a autoridade do ministro Palocci e do presidente do Banco Central, quase que invertendo, de certa maneira, minhas expectativas. Esperava uma atitude mais aberta do governo e um conselho menos crítico. Na verdade, o CDES se revelou mais crítico e o governo mais fechado a essas críticas.

É importante recuperar o que está na origem desse conselho: uma declaração de Lula, entre o primeiro e o segundo turno, de que era preciso construir um novo pacto social no Brasil. Dizíamos que Lula tinha um compromisso com a redução das desigualdades sociais, com o desenvolvimento sustentável e com a retomada do crescimento econômico. Mas expressávamos nossa preocupação, pois como Lula poderia construir esse pacto se teria de administrar necessidades tão contraditórias, como, por exemplo, do agronegócio? É inegável que o agronegócio é importante no curto prazo para ampliar o saldo da balança comercial brasileira, mas é uma ameaça à sustentabilidade ambiental. O ministro Tarso Genro se referia a esse processo, que chamava de concertação, como se o governo Lula tivesse vinte anos pela frente.

No que diz respeito aos programas sociais, qual é a avaliação de vocês?

A necessária combinação de uma ação no campo social que privilegie políticas universalistas, mas também leve em conta políticas focalizadas, voltadas para determinados segmentos, somente é possível se houver recursos suficientes para implementação dessas políticas. Avaliamos que as restrições, os constrangimentos colocados pela política econômica põem em xeque essa combinação. O Fome Zero, por exemplo, foi acolhido com expectativas muito positivas, pois em sua concepção tinha uma combinação bastante inteligente de medidas emergenciais com políticas estruturais, como reforma agrária, políticas de emprego – que é um ponto fraquíssimo do governo Lula, terreno no qual não houve avanço nenhum. Não reduzia o enfrentamento da fome a programas de transferência de renda, cestas básicas... A reforma agrária também é uma verdadeira queda-de–braço, muito vinculada à prioridade dada ao superávit primário. Em 2003, o Fome Zero gastou menos do que estava orçado. Aliás, não é uma referência apenas ao governo Lula, o Brasil tem de ter um orçamento impositivo, e não autorizativo. O que está no orçamento deve ser executado, como nos países desenvolvidos.

O ministro Guido Mantega disse que o orçamento do governo Lula seria para valer, mas eu não vejo a conseqüência prática dessas palavras. Era preferível ter um orçamento restritivo e executá-lo. Isso aumentaria o poder do Congresso Nacional, o poder da sociedade civil por meio de seus mecanismos de participação, e criaria um ambiente de previsibilidade quanto à atuação do Estado.

Então o problema maior é de implementação.

No caso do Fome Zero parece ser. Ou porque a equipe não estava preparada para a implementação rápida, em larga escala, ou, o que é mais provável, havia restrições orçamentárias. Na prática isso parece ter sido demonstrado pelo fato de que mesmo aqueles recursos destinados ao Fome Zero no primeiro ano não foram inteiramente gastos. Se houvessem sido alocados recursos para iniciá-lo simultaneamente nas áreas de concentração de pobreza rurais e urbanas teria sido ainda maior o problema. O presidente Lula anunciou duas vezes liberação de recursos para o saneamento básico, e reconheceu na Conferência Nacional das Cidades que estava reiterando uma promessa feita anteriormente que não havia sido levada à prática.

O economista Celso Furtado declarou recentemente no jornal O Globo que é inadmissível que um país, cujas necessidades básicas da maioria da população não foram atendidas, se dê ao luxo de não fazer os investimentos e os gastos públicos necessários para isso... Se pelo menos pudéssemos dizer que Lula está sendo tão responsável que até sacrificou sua popularidade e seu primeiro mandato para criar uma base sólida para que o Brasil se desenvolva socialmente, humanamente, sem bloqueios no mandato seguinte, seja ele eleito ou não... Mas infelizmente não é isso! Essa política mantém o nível de endividamento do país absurdamente alto, a relação entre o endividamento e o PIB, embora Delfim Neto insista em dizer que isso é uma maluquice do mercado, porque essa relação é baixíssima, 56%.

Uma decisão bastante positiva foi a unificação dos programas sociais, e o ministro Patrus Ananias goza de certo crédito de confiança, mas ainda não há resultados muito visíveis dessas mudanças. Talvez seja um pouco cedo para avaliar o que foi a reestruturação do Ministério na área social.

Na área de meio ambiente parece que existe uma boa relação do ministério com os movimentos.

O próprio programa de governo do PT de meio ambiente foi construído com um envolvimento muito grande das pessoas que atuam nessa área. E o desafio que a ministra Marina Silva se propôs, quando declarou que a atuação do Ministério do Meio Ambiente seria marcada pela transversalidade, foi identificado com muita lucidez, porque política para o meio ambiente tem de ser desenvolvida pela ação integrada de todos os ministérios e com participação da sociedade civil. Em algumas questões a ministra teve de enfrentar quedas-de-braço muito difíceis, como a dos transgênicos. Qual a racionalidade desses produtores de soja no Brasil? Os únicos que me parecem ter um comportamento racional são do Paraná, com a política do governador Requião, que mantendo o estado imune ao plantio de transgênicos está garantindo um mercado cativo, porque há demanda de soja que não seja geneticamente modificada.

O Brasil poderia estar apostando nisso, mas está apostando numa coisa que cria restrições em determinados mercados. A Monsanto já iniciou a cobrança de royalties, ou seja, o risco é de uma dependência absurda, com relação a uma única empresa monopolista.

As críticas não são ao Ministério do Meio Ambiente, são a outros aspectos da política governamental que a nosso ver inclusive se chocam com o que o ministério gostaria de realizar. As ONGs ora estão sendo atacadas porque criticam o governo – ou, como dizem alguns jornais, porque defendem o licenciamento ambiental, o que na opinião destes é um obstáculo ao crescimento, ao desenvolvimento –, ora são atacadas porque atuam dando sustentação ao ministério, como é o caso, por exemplo, da doação de mogno feita à Fase como forma de driblar o jogo das madeireiras que atuam ilegalmente. Havia uma campanha, SOS Mogno, e o ministério pôs em prática uma nova legislação que permitia fazer essa doação. A doação não foi para a entidade, que tem apenas o ônus de administrar um fundo para projetos sociais de terceiros, mas sofreu feroz campanha no Jornal do Brasil. O objetivo era atacar não a Fase, mas o Ibama e o Ministério do Meio Ambiente.

Houve o episódio do licenciamento ambiental, em que o presidente exigiu que a ministra se reunisse com uma entidade de obras de infra-estrutura, como se o problema estivesse na lentidão do Ibama em conceder licenças ambientais, quando, na verdade, o Instituto Sócio-Ambiental realiza estudos extremamente minuciosos e consistentes, mas, se as empresas não dão valor à questão ambiental e não elaboram estudos de impacto ambiental bem-feitos, os processos param no Ibama, que é responsabilizado por não ter condição de conceder a licença. O problema é debitado na conta do governo, quando é do setor privado. Antes se tentava passar por cima dessas exigências e o Estado era leniente com isso. Nesse ponto, a atuação do Ministério do Meio Ambiente só não pode receber um apoio mais entusiástico porque ele sofre as limitações de ser parte de um governo em que outras partes não ajudam como deveriam.

É possível vislumbrar no processo Fórum Social Mundial um caminho capaz de quebrar o neoliberalismo?

São grandes os desafios de mudança para um país como o nosso, numa periferia do capitalismo, num quadro de hegemonia financeira e militar dos Estados Unidos sem nenhum contrapeso. É uma situação cheia de condicionamentos e limites, mas a prática mostra que outros Estados com limitações semelhantes às do Brasil conseguem seguir rumos alternativos. Não digo que são bons, mas, por exemplo, a China, a Índia, a Malásia, até a Argentina ultimamente, não se submetem ao mesmo tipo de restrições que o Brasil.

Concordo com a professora Maria da Conceição Tavares quando diz que a política externa parece ser o único campo onde esse governo brasileiro revelou capacidade estratégica.

Essa espécie de suspensão da democracia que é causada, senão pela globalização, pelo discurso neoliberal sobre a globalização – essa idéia de que não há espaço para políticas que contrariem os rumos da globalização, de que as forças do mercado devem atuar sem nenhum controle da sociedade, de que os Estados têm como única missão facilitar a acumulação selvagem de capital e quebrar direitos – deve ser enfrentada numa luta de âmbito internacional.

Foi no Fórum Social Mundial que se evidenciaram as primeiras contradições e ambigüidades do governo Lula, logo no início, quando o presidente vai a Porto Alegre e, no mesmo momento, anuncia a sua ida a Davos. Os avanços na política externa acabam fragilizados por esta não estar a serviço de uma estratégia no campo econômico que possa maximizar ganhos da política econômica. Em alguns momentos até ficou evidente algum choque entre o ministro Furlan e o ministro Celso Amorim, em negociações da OMC, da Alca, quando dizem que o Brasil estava tendo posições intransigentes, embora ninguém consiga chegar aos pés dos Estados Unidos em matéria de intransigência.

Esse é um terreno no qual em algumas ocasiões, como em Cancún, as ONGs tiveram a experiência inusitada de se sentir atuando em sintonia com o governo brasileiro no campo internacional.

Já a agenda do Fórum Social Mundial vai muito além desses avanços importantes, mas de menor alcance, tendo em vista as possibilidades de um Estado. O Fórum, para ter futuro, no sentido de conservar sua relevância, tem de avançar na direção que foi sinalizada a partir de Mumbai – não ser apenas um espaço de intercâmbio de idéias e de reflexão, mas em que se consigam identificar algumas bandeiras, algumas plataformas de luta. Por exemplo, o Fórum de 2002, sem nenhum processo formal, propiciou a realização de manifestações de milhões de pessoas pela paz, antes do início da guerra no Iraque.

O senhor é membro do Conselho Nacional de Promoção da Igualdade Racial...

No seminário que realizamos, o reconhecimento pelo governo Lula do racismo como elemento da desigualdade racial, a criação da Secretaria Nacional de Promoção de Igualdade Racial com o status de ministério e a criação do Conselho Nacional de Promoção da Igualdade Racial foram destacados como ações positivas. A Abong definiu em sua assembléia de 2003 a luta contra a desigualdade racial como prioridade, por isso, na medida em que o governo propôs a participação da Abong no conselho, fui indicado para ser titular. O fato de defendermos a necessidade de que as políticas sociais tenham um tratamento universalista não nos leva a questionar que haja políticas focadas para determinados segmentos, como é o caso dessas políticas de promoção da igualdade racial, cotas etc.

Rose Spina é editora da revista Teoria e Debate