Internacional

Houve importantes avanços no processo de estender o Mercosul a toda a América do Sul. A integração dos países desse continente define o destino comum da nação sulamericana

Se analisarmos a política externa do governo Lula no primeiro ano, o balanço é muito positivo. Talvez isso seja percebido mais nitidamente no exterior do que no próprio Brasil. Essa afirmação genérica não implica cair no panglossianismo, de fechar os olhos às enormes dificuldades, maiores sem dúvida do que as esperadas, às travas colocadas pelos grandes centros de poder mundial, às carências e ao arrefecimento dos ritmos. No entanto, foi dado um grande pontapé inicial na direção certa e concertaram-se uniões e alianças entre forças diversas para levar as iniciativas à prática. Tudo isso repercute no terreno internacional e se orienta a uma mudança na correlação de forças em nível mundial e a favor das aspirações da maioria da humanidade.

Hoje está em questão o destino da civilização. Vivemos uma situação de guerra, aberta ou solapada, e de ocupação militar de vários países. Os Estados Unidos pretendem impor ao mundo a doutrina da guerra preventiva, que cerceia as normas de convivência entre as nações. Nesse panorama, a vigorosa política externa brasileira é um aporte considerável à causa da paz e à vigência do direito internacional, princípios que fez prevalecer em todos os âmbitos, na ONU inclusive.

O outro enorme problema mundial é o da pobreza e da fome, que degrada a condição humana e o sentimento de auto-estima. Recordo que quando se falava do mercado como panacéia suprema, Lula apontava que grande parte dos brasileiros está totalmente fora do mercado. O programa Fome Zero passou a ser um tema de definição, e não só no Brasil, onde está dando os primeiros passos, mas em âmbito mundial. Lula levou-o do III Fórum Social Mundial de Porto Alegre ao Fórum Econômico de Davos e depois à reunião do G7+1 em Evian, apresentou-o na Assembléia Geral da ONU e, depois da viagem à Índia, promoveu em Genebra, com o apoio de Kofi Annan e dos presidentes Jacques Chirac e Ricardo Lagos, o lançamento de uma campanha global contra a fome e a pobreza. Com a particularidade de que se esboçaram soluções de financiamento, como a taxação à venda de alguns tipos de arma e a certas transações financeiras (no estilo da taxa Tobin). O tema se traslada para a América Latina. Segundo o secretariado executivo da Cepal, a pobreza e a indigência cresceram na região: 227 milhões (44,4%) vivem abaixo da linha de pobreza e 20% na pobreza extrema. Lula anunciou sua intenção de reunir em Nova York, antes da Assembléia Geral da ONU em setembro, mais de trinta chefes de Estado ou de governo para concretizar as formas de angariar recursos destinados à criação do fundo de combate à fome.

Com essas ações convergentes, Lula contribui para criar consciência mundial em relação a esse problema capital, condição necessária, embora – obviamente – insuficiente para começar a andar. Como dizem os chineses, para percorrer mil léguas há que começar pelo primeiro passo. Criar consciência mundial é imprescindível porque as mudanças vitais só poderão ser realizadas com a ação conjunta dos povos, de suas múltiplas organizações, e dos governos empenhados em alcançar objetivos para o bem comum.

Outra constante da política externa brasileira é a busca de alianças e ações pactuadas entre as nações do Hemisfério Sul. Entre as diversas iniciativas se destaca a criação do G-3, com a Índia e a África do Sul, referendado na viagem do presidente aos países africanos São Tomé e Príncipe, Angola, Moçambique, Namíbia, que culminou precisamente na África do Sul. O fato aproximou a América Latina em seu conjunto do continente africano vizinho, seguido pela visita aos países árabes (Síria, Líbano, Egito, Emirados Árabes e Líbia), pela viagem à Índia – com a assinatura de importantes acordos bilaterais – e pela planejada visita à China. Nesses casos procurou-se valorizar o potencial dos países do Sul, suas possibilidades latentes de desenvolvimento, a intensificação de seus vínculos comerciais e com uma forte marca cultural, ajuda recíproca nas áreas de saúde e educação, destacando as possibilidades de ações acordadas frente a organismos internacionais como o FMI e a OMC.

Precisamente na reunião da OMC em Cancún, em setembro de 2003, o Brasil liderou a criação do G-20, que se posicionou ante tal organismo com as reivindicações dos países do Sul e pôs freio às imposições das potências do Primeiro Mundo. Foi uma ação de resistência contra este centro de poder real. Na reunião da Unctad, a se realizar em junho no Brasil, com a presença do primeiro-ministro da Índia, Lula proporá às nações do G-20 a assinatura de acordos com a Índia similares aos subscritos por seu país.

Nesse plano, sem dúvida o mais importante é o vigoroso impulso dado por Lula ao Mercosul antes mesmo de assumir, em sua visita a Buenos Aires. Nesse período se produziram importantes avanços no processo de estendê-lo a toda a América do Sul, apesar de persistirem travas para a adoção de alguns novos institutos propostos. O Parlamento do Mercosul, por exemplo, é rejeitado pelo governo e por políticos conservadores do Uruguai, sem que se atente para o fato de que organismos desse tipo, vide o exemplo europeu, favorecem os países menores.

O avanço mais relevante é o acordo de livre comércio entre o Mercosul e a Comunidade Andina de Nações (CAN), assinado em 3 de abril em Buenos Aires, com a seguinte apreciação do Itamaraty: “Culmina assim um processo negociador iniciado há oito anos e que tomou impulso em 2003. O novo Acordo completa a aproximação entre o Mercosul e a Comunidade Andina, já que Bolívia e Peru, os outros dois membros da CAN, já haviam assinado acordos similares com o Mercosul, do qual são membros associados. O Acordo constitui um passo importante na configuração de um espaço de integração sul-americana. Concluído o processo de desagravação tributária previsto, ficará constituída uma zona de livre-comércio entre o Mercosul e a CAN, que abarca uma população de aproximadamente 350 milhões de habitantes e um PBI que beira US$ 1 trilhão. Além de um incremento substantivo do comércio, serão criadas condições para uma maior integração das cadeias produtivas, melhoras de competitividade das empresas com um aumento na escala dos mercados e melhor utilização dos insumos regionais. Serão também ampliadas as possibilidades de cooperação entre os países-membros dos dois blocos”.

Esse acordo constitui a base para uma comunidade sul-americana de nações, levando em conta que o Chile, além de manter acordos bilaterais com nações andinas, já aderiu ao Mercosul na qualidade de país associado. Segundo a Gazeta Mercantil, deu-se um grande passo rumo ao Amercosul, faltando somente agregar a Guiana e o Suriname, o que poderá ser facilitado pelos projetos de conexão terrestre do Brasil com estes países de sua fronteira setentrional.

Assim concebido, o tema da integração sul-americana, além de não gerar problemas de lideranças ou de preeminências, trata de definir o destino comum da nação sul-americana. E ainda mais: a aliança entre a Argentina e o Brasil no seio do Mercosul repousa sobre sólidos fundamentos. Em outubro de 2003 ambos assinaram o Consenso de Buenos Aires – que prioriza o crescimento em lugar dos credores, defende o multilateralismo e a igualdade soberana dos Estados –, cuja relevância internacional se acrescenta por estar concebido como o reverso do Consenso de Washington. Em seguida, Lula e Néstor Kirchner subscreveram a Ata de Copacabana e a Declaração sobre a Cooperação para o Crescimento Econômico com Eqüidade (Rio de Janeiro, 16 de março), em que estabelecem pleno acordo sobre múltiplos temas: atuação conjunta na ONU e no Conselho de Segurança, condenação de todas as formas de terrorismo, acordo do Mercosul e da Comunidade Andina com vistas a uma Comunidade Sul-Americana de Nações, negociações com a União Européia, acordo comercial Mercosul-Índia, cúpula de países sul-americanos e árabes, impulso à conferência regional de emprego do Mercosul, colaboração entre as representações diplomáticas e consulares de ambos os países, impulso a obras de infra-estrutura, coordenação energética, prêmios binacionais de arte e cultura.

É de grande importância o primeiro ponto da declaração, que estabelece: “Conduzir as negociações com os organismos multilaterais de crédito, assegurando um superávit primário e outras medidas de política econômica que não comprometam o crescimento e garantam a natureza sustentável da dívida, de modo a preservar inclusive o investimento em infra-estrutura”. Isso constitui um elemento novo nas relações com os organismos financeiros internacionais. Brasil e Argentina coordenaram uma orientação comum nas negociações de cada um com o FMI. Mais ainda: na 45ª Assembléia Anual do BID, no final de março em Lima, o Brasil propôs excluir os investimento em infra-estrutura do cálculo de superávit primário estabelecido pelo FMI (o que significa não considerá-lo como gasto) e conseguiu o apoio de todos os países da América do Sul, mais o México, e do presidente do BID, Enrique Iglesias.

A Frente Ampla do Uruguai expressou seu apoio à Ata de Copacabana e à Declaração, por considerá-las um aporte construtivo ao desenvolvimento regional e ao saneamento das relações internacionais. Nesse período pôde-se constatar no Uruguai os efeitos benéficos da integração regional. Subscreveram-se acordos sobre o “cidadão da fronteira” entre Uruguai e Brasil, relativos a vistos de residência, estudo e trabalho que melhorarão as condições de vida dos residentes nas zonas limítrofes. Também se concretizaram acordos energéticos com o Brasil para enfrentar uma emergência crítica. Desde já, caso se concretize a possibilidade certa do Encontro Progressista–Frente Ampla–Nova Maioria chegue ao governo, dele derivará também um impulso considerável ao Mercosul, tratado com relutância pelo atual governo, que prioriza as relações bilaterais com os EUA. Estudos históricos demonstram que os EUA sempre se opuseram aos entendimentos entre Brasil e Argentina e sua diplomacia procurou invariavelmente atiçar as contradições entre ambos.

Em meados de abril irrompeu surpreendentemente a proposta do governo mexicano de integrar o Mercosul como membro pleno. O pedido é estranho, dado que nos dias antecedentes tanto o chanceler Luis Ernesto Derbez como o presidente Vicente Fox haviam se manifestado a favor de um acordo de livre-comércio entre o México e o Mercosul. É difícil concertar o ingresso do México no Mercosul com sua pertinência ao Nafta, que liga os três países da América do Norte.

Tudo isso está relacionado à Alca. Abordamos o tema a partir de um estudo ilustrativo de Marco Aurélio Garcia, que demonstrou há anos que o projeto se baseia na Iniciativa para as Américas, lançada pelo presidente Bush pai em 1990 com o objetivo de reforçar o domínio dos EUA sobre todo o continente, característica que se viu reforçada no período transcorrido. Em suas relações com a América do Sul, os EUA pretendem manter todos os seus privilégios, particularmente em matéria de subsídios agrícolas, e impor seus interesses na área de compras governamentais, serviços, patentes, entre outras. Desde sua reunião inicial com Bush, Lula disse que o Brasil defenderia seus interesses com a mesma intensidade com que os EUA defendem os deles, com a particularidade de que ao fazê-lo contempla os interesses da América Latina em seu conjunto. De fato, Brasil e Argentina, e também Venezuela, constituíram o núcleo duro de oposição ao projeto de Alca que os EUA pretendiam impor. Fracassou a reunião de Puebla, como a da OMC em Cancún, e em ambas se expressou uma nova realidade continental. De uma postergação a outra por falta de acordo (e porque os EUA não podem baixar os subsídios em um ano eleitoral), ficou sepultada a possibilidade de que a Alca se concretize em 2005, como almejava o governo de Washington.

A iniciativa brasileira sobressaiu também em outros campos de nossa América. Um deles foi sua gestão diplomática conjunta com a Argentina para engenhar uma solução à dramática situação boliviana em outubro de 2003, sem derramamento de sangue e com a normal transferência de governo. Outro foi sua proposta de conformação de um amplo grupo de amigos da Venezuela para evitar que a tensa situação interna desembocasse numa guerra civil. O terceiro se refere à busca de uma solução pacífica e negociada na Colômbia em meio às tensões geradas pelo Plano Colômbia, pela ativação de bases militares e pelas ações repressivas.

Um problema que se coloca a todo governo de esquerda que chegou para mudar é quanto a suas margens de manobra, os limites de sua política, a tensão entre a vontade de fazer e as possibilidades reais, aliadas à situação herdada e a pressões externas. Ao mesmo tempo, ele não deve se resignar nem se acomodar diante de dificuldades nem invocar a herança maldita, e sim fazer o possível e o que à primeira vista parece impossível a fim de viabilizar as mudanças.

Na história – obra dos homens, em última instância – realizaram-se obras que, avaliadas por antigos parâmetros, pareciam impossíveis. Há em primeiro lugar um problema conceitual, vinculado ao que habita a cabeça de milhões de seres humanos. A luta contra o pensamento único é essencial. Em debates sobre a política brasileira, vi ser defendida a tese do piloto automático, que considero paralisante e nega a priori a ação política. Lula colocou a ênfase inicial no campo das idéias, de criar consciência nacional e mundial dos problemas reais e das vias para resolvê-los, e levou essa concepção a seu país, ao continente e ao mundo. Não vacilou em travar a luta em território inimigo. Seguro de suas verdades, defendeu-as em todas as partes. Creio que o nível da discussão é rebaixado quando se usa o qualificativo de pragmático para descaracterizar essas ações políticas, pois não se trata apenas de compreender e interpretar, mas de mudar nos fatos, na vida real. A arte é encontrar os caminhos para materializar tais mudanças, para alargar os limites.

Lula não responde a nenhuma fórmula preconcebida, mas sim descoberta por meio da prática humana e social, sobretudo para se unir às forças que traduzam essas idéias em realidade. O resto é literatura. Em todo caso, cabe aos intelectuais, que às vezes assumem o cômodo papel de erigir-se em consciência crítica e assinalar o que falta fazer, contribuir para criar essa consciência, sem esquecer que as idéias se transformam em uma força material e definidora quando passam a ser patrimônio das grandes massas do povo.

No terreno internacional o Brasil está protagonizando uma experiência inédita, que aponta para uma mudança substancial nos temas fundamentais da humanidade. O desenlace desta batalha não está escrito nas estrelas. Depende da luta de grandes massas de homens, movidos por uma clara consciência. Esta é a grande lição da história, e de alguma maneira, quem sabe aos tropeções, por tentativas e erros, neste mundo convulsionado o Brasil está escrevendo uma parte desta história, apesar de às vezes não nos darmos conta, pois estamos submersos no turbilhão dos acontecimentos, embora convencidos, isso sim, de que a humanidade merece melhor destino e deve mudar seu rumo.

Niko Schvarz é escritor uruguaio, membro da Comissão de Assuntos e Relações Internacionais da Frente Ampla - artigo traduzido por Beatriz Leandro