Economia

A política industrial e tecnológica definida pelo governo depende da estabilização macroeconômica e a reforça. Entretanto, requer o complemento das políticas de desenvolvimento social, especialmente a educacional

A política industrial é um elo perdido na cadeia do desenvolvimento nacional. O elo se rompeu no início da década de 1990, no governo Collor, quando se reagiu, como a tudo na época, de maneira voluntarista à crise do Estado. O problema não estava em abrir a economia brasileira, após uma década inteira de crise e estagnação econômica. A questão é que essa medida, como foi realizada, veio indissociável do seqüestro da poupança, da reforma administrativa desorganizadora da função pública e de planos econômicos do tipo “bala de prata”. Buscavam-se uma reforma do Estado e um aumento de competitividade econômica a toque de caixa, coisa que se aprofundou de maneira dramática na primeira metade do governo FHC, sob o efeito duplo e ruinoso de câmbio apreciado com revisão tarifária. Sabe-se bem a seqüência de ambos os eventos.

Os anos 1990 foram de fraco desempenho do comércio exterior e de perda de participação do Brasil no fluxo comercial mundial, numa época em que um dos principais fenômenos da economia internacional era o aumento acelerado das trocas comerciais, a um ritmo de mais de 7% por ano. As empresas brasileiras, já pouco estimuladas à inovação, aprofundaram, nesse período, suas características de importadoras de tecnologia.

Setores inteiros da atividade industrial foram devastados, embora tivessem ocorrido também ganhos de competitividade em vários setores econômicos. Mas, de novo, isso se deu sem grandes ganhos em termos de marcas, patentes e processos inovadores, que são a base da competitividade no longo prazo e fator indispensável para acompanhar o contínuo avanço tecnológico.

O comércio internacional é a grande arena em que a competitividade é testada. É também a fonte maior de deslocamento de riquezas entre nações e, portanto, fator essencial para a superação do atraso nos países retardatários. Na primeira metade dos anos 1980 o Brasil participava com 1,39% das exportações mundiais; já no final de 2002 estávamos em 0,79%. Só agora, com a grande expansão das exportações, voltamos a superar a barreira do 1%. Para sustentar esse crescimento, vital também para o desenvolvimento do mercado interno, o Brasil precisa de uma política industrial, tecnológica e de comércio exterior articulada, como nosso governo formulou. Ser o grande celeiro agrícola mundial ajuda, mas não é suficiente. Assim, ter chegado às “Diretrizes” da política industrial não foi uma tarefa trivial. Mais complexo ainda será implementá-las.

Mesmo que nosso programa de governo tivesse afirmado a necessidade da política industrial, houve um tempo de maturação até a formulação do conjunto de idéias que a embasam. O problema relevante, como já apontado em artigo conjunto com o ministro Antonio Palocci para o jornal O Estado de S. Paulo, em janeiro deste ano, é que, nesta matéria, o dissenso na sociedade é um dado ao qual o governo não é imune. A estagnação dos anos 1980 e a fratura da capacidade de planejamento do Estado na década seguinte reforçaram sobremaneira as opiniões basea­das na ideologia liberal de que, se há falhas de mercado, ao mercado cabe a resolução dessas falhas. Ou, como gostam de dizer, a intervenção estatal deve ser evitada porque ela é fonte inata de ineficiência econômica. Por isso, havia de, primeiro, retirar o anátema que pesava sobre o tema.

A definição das linhas da política industrial, tecnológica e de comércio exterior levou em conta nossas tradições e experiências, tanto para o bem quanto para o mal. Em primeiro lugar, constatar a ruptura que houve nos anos 1990 não quer dizer endossar automaticamente o nacional-desenvolvimentismo vigente até então. Quer dizer, apenas, que não era o caso de tratar as experiências do passado como pouco mais do que entulho a ser removido, como se fez, com rupturas voluntaristas e ideológicas típicas daquele período. O melhor êxito do governo FHC, que foi a criação do real, ocorreu por meio de um processo de transição e com previsibilidade, descompensado posteriormente com o erro da sobrevalorização da nova moeda. Em segundo lugar, criticar esse tipo de ruptura não quer dizer tampouco que mudanças, profundas, não fossem necessárias. Só que instituições, contratos, culturas e tradições não se mudam, exceto em revoluções, por meio, apenas, de “vontade política”. É preciso crítica, planejamento e reformas bem ajustadas.

Em nosso governo, por exemplo, cometemos no primeiro ano o sério equívoco de procurar reinventar a roda justamente num dos ministérios, o de Ciência e Tecnologia, que melhor tinha funcionado na segunda metade do governo FHC e legado uma política tecnológica consistente para o país. O erro começou a ser reparado desde a posse do ministro Eduardo Campos e os ajustes estão sendo feitos agora, a partir do enfoque integrado de que a política tecnológica tem uma forte articulação com a política industrial. E também a partir do enfoque de que a inovação tecnológica é a chave para a estruturação de medidas eficazes destinadas a impulsionar a competitividade do país.

Ainda na primeira fase do regime militar, em março de 1967, numa demonstração de que a sociedade brasileira, apesar do golpe, pulsava e procurava corrigir rumos, essa questão foi abordada num importante relatório divulgado por um grupo de trabalho designado pelo Conselho Nacional de Pesquisas. O antigo CNP, hoje CNPq, constituído em 1951, indicara uma comissão de cientistas, pesquisadores e empresários brasileiros para trabalhar com pesquisadores da Academia de Ciência dos Estados Unidos, durante um ano, na identificação das políticas fundamentais para o desenvolvimento nacional. Refletindo o melhor da experiência internacional então disponível, tanto nos EUA quanto na Europa, o relatório “A pesquisa industrial no Brasil como fator de desenvolvimento” abriu uma janela no padrão de política industrial vigente até aquele momento, o nacional-desenvolvimentismo.

Sem rupturas nem diatribes estéreis, o relatório constatava o conteúdo de ineficiência nas políticas industriais aplicadas e propunha retificações. Herdada da era Vargas, recondicionada sob JK e continuada pelos governos militares, a política industrial nacional-desenvolvimentista baseava-se fundamentalmente na substituição de importações, com ampla proteção tarifária frente aos bens importados. Sob baixa competição internacional e sem destacar como ponto central a inovação, a política industrial tendia a premiar a ineficiência empresarial. Não era uma regra absoluta, mas era um desvio constante. Entretanto, não se propunha como antídoto a abertura generalizada do país; enfocavam-se no relatório como aspecto fundamental a pesquisa e a inovação:

A verdadeira independência de um país, no mundo contemporâneo, exige uma capacidade tecnológica nacional suficiente para permitir a este país a exploração eficiente de todos os recursos disponíveis.

É indispensável a qualquer nação equipar-se com estruturas, instituições e diretrizes adequadas a fim de poder utilizar beneficamente os conhecimentos tecnológicos mundiais.

Na sociedade moderna, a mudança e a inovação só podem ocorrer na medida em que os setores criadores e usuários de conhecimentos estejam sistematicamente integrados.

Com base nessas definições, o documento sugeria um conjunto de providências prioritárias para orientar o Brasil no esforço de reduzir o desnível tecnológico em relação aos países avançados. As recomendações, quase todas atuais até hoje, propunham o seguinte decálogo de medidas:

  • Concentrar os limitados recursos financeiros públicos nos setores prioritários, na atual fase de desenvolvimento do país.
  • Canalizar recursos dos vários organismos financeiros para as áreas prioritárias da pesquisa industrial.
  • Atrair o interesse dos dirigentes industriais para as vantagens da pesquisa industrial e obter o seu apoio para a tarefa dos pesquisadores.
  • Desenvolver administradores industriais e de pesquisa competentes, a fim de aumentar a produtividade da pesquisa industrial.
  • Sincronizar, no campo da pesquisa, as atividades universitárias e dos institutos tecnológicos com a indústria.
  • Aumentar o número e melhorar a qualidade dos pesquisadores industriais.
  • Dar aos institutos tecnológicos condições adequadas para a realização da pesquisa industrial.
  • Dotar o país de um Centro Nacional para planejar e manter atualizada uma política de informação e documentação técnico-científica e coordenar a implantação dessa política através de serviços descentralizados.
  • Propor um modelo de instituto de pesquisas como meta, tanto a ser atingida pelos institutos tecnológicos existentes, quanto por um novo instituto a ser eventualmente criado.
  • Facilitar e reduzir o ônus da utilização de produtos e processos patenteados.

 

Decorridos quase quarenta anos deste texto, o Brasil mudou muito, modernizou-se, mas continua com as mesmas necessidades de ter um enfoque adequado para inovação e pesquisa industrial. De tal modo que padecemos, ainda hoje, do diagnóstico daquela época: “Entre as razões que impedem o desenvolvimento agressivo da pesquisa industrial no Brasil figura o mal-entendido de que a pesquisa industrial deve ser realizada principalmente, ou mesmo, exclusivamente, em instituições tecnológicas e laboratórios universitários, ao invés de constituir atividade das próprias empresas industriais”.

De certo modo, a primeira Pintec, pesquisa nacional realizada pelo IBGE sobre o estado da tecnologia, em 2000, constata a distorção de que as atividades de Pesquisa e Desenvolvimento (P&D) são mais realizadas no setor público que no privado. Assim, dos dispêndios em P&D verificados naquele ano, o governo respondeu por 60,2% do total, enquanto o setor privado ficou com 39,8%. Os dados da Pintec incluem também os dispêndios em inovação das empresas (considerando, por exemplo, compra de equipamentos e aquisição de tecnologias), com o que a participação subiria para 76% do total aplicado em P,D&I. Entretanto, se olharmos para a quantidade de patentes internacionais depositadas anualmente pelo país, que se encontram estagnadas no mesmo patamar de uma centena desde 1980, veremos, por outro ângulo, que os dispêndios em P,D&I têm sido pouco efetivos em termos de geração de competitividade internacional das firmas brasileiras.

Por que nos encontramos neste estado, enquanto outros países, como a Coréia do Sul, que se encontravam em pé de igualdade com o Brasil há trinta anos avançaram? Em primeiro lugar porque a sucessão de crises de dívida, crises externas, desequilíbrios fiscais e inflação, sobretudo nos anos 1980, criaram um clima adverso para o desenvolvimento da inovação. Em segundo lugar, a abertura dos anos 1990 foi conduzida de modo a dispensar o país do necessário esforço de desenvolver tecnologia industrial, com base na inovação. Em terceiro lugar, os ziguezagues do país nas duas décadas aconteceram justamente num período em que o conhecimento se tornou um fator crítico do crescimento econômico.
Durante esse período, os segmentos de microeletrônica e de software cresceram sistematicamente acima do desempenho da economia mundial. Produziram grande externalidade sobre o conjunto dos setores econômicos, tornando-se impulsionadores dos aumentos de produtividade. Em convergência com as telecomunicações, criaram o setor de tecnologia da informação. Não obstante, o Brasil praticamente se isolou, como ator efetivo, desse movimento da economia global. Apenas para citar um exemplo: no final dos anos 1980 havia 27 empresas de semicondutores no Brasil, com algumas das maiores multinacionais do segmento instaladas aqui; hoje dispomos de apenas três companhias. Na área de software, desde o começo da década de 1990 se colocou como meta ter uma participação ativa nas exportações mundiais, que deveria atingir hoje mais de US$ 1 bilhão, enquanto o que temos são vendas externas abaixo de US$ 100 milhões.

Em outros setores intensivos em conhecimento também estivemos sujeitos ao mesmo tipo de perda de posição, como foi o caso de fármacos e medicamentos. Quando elegemos esses setores, junto com bens de capital, como prioritários, o que visamos é mais do que substituir importações e cobrir o rombo comercial que eles causam. O pior prejuízo é isolar o país dos ganhos potenciais com atividades de alto valor agregado, que são fator de dinamismo no comércio internacional. Por essa razão, vamos buscar, com a política industrial, concentrar recursos públicos disponíveis; alocá-los de modo eficiente e transparente em setores e atividades prioritários; estabelecer padrões de retorno adequados; criar mecanismos de incentivo à inovação nas empresas, a exemplo do que está sendo feito pelo projeto da Lei de Inovação; instituir, sempre em consonância com o equilíbrio das contas públicas, novos instrumentos de crédito, tributários, de logística e de registro de propriedade intelectual que motivem a maior contratação de pesquisadores pelas empresas e uma interação mais eficiente entre estas, universidades e institutos de pesquisas públicos.

Outros instrumentos diretamente voltados para empresas, grupos de empresas e segmentos econômicos devem ser utilizados, em especial pelas instituições públicas de fomento, buscando dar maior musculatura às empresas brasileiras em sua disputa no mercado internacional.
No caminho do desenvolvimento das nações, os governos lançam mão de diversas políticas voltadas para acelerar o crescimento econômico. As políticas industriais são um desses instrumentos, e o mundo assistiu, nas últimas décadas, à emergência de vários países na Ásia que usaram adequadamente esse arsenal de medidas. O Japão se reconstruiu, no pós-guerra, com um sistema peculiar de políticas industriais e projetou um modelo que inspirou a Coréia do Sul, Taiwan e outros países da região. Agora vemos esse ciclo se ampliar para China e Índia. Mas também podemos olhar em outra direção e ver o progresso de países como a Espanha, que conviveu longos anos com elevadas taxas de desemprego, mas se ajustou às metas fiscais da União Européia e hoje é um dos que mais crescem na UE. Assim como se pode olhar para o exemplo da Irlanda.

Evidentemente, esses países se inserem num ambiente propício ao investimento intra-regional, como ocorre na UE, e os asiáticos têm uma especial tendência à geração de poupança, em torno de 35% do PIB, motivada em boa medida pela inexistência de previdência social. Tais níveis de poupança favorecem o equilíbrio fiscal, a estabilidade monetária, a baixa tributação e, por conseqüência, o investimento privado. Além disso, a política macro é complementada pela agressiva política de comércio exterior, da qual as políticas industriais e tecnológicas são pilares. De todo modo, essas políticas não estão isoladas de medidas eficazes para o ensino básico e fundamental de qualidade.

Em resumo, a política industrial e tecnológica definida pelo governo é um passo importante no sentido de reciclar as experiências do país e de absorver o melhor do que se faz no mundo em busca do aumento da competitividade das empresas e da economia nacional. Ela depende da estabilização macroeconômica e a reforça, na medida em que impulsiona os aumentos de produtividade e eleva a competitividade. Entretanto, para seu pleno êxito no médio e longo prazo, requer o complemento das demais políticas de desenvolvimento social, especialmente da política educacional.

Do ponto de vista operacional, requer uma articulação muito mais eficaz dos instrumentos de decisão, infelizmente espalhados por diferentes ministérios. A dispersão e sobreposição de instrumentos, aliás, são uma das características mais marcantes de todos esses anos, cujos resultados são a lentidão e a falta de objetividade dos processos decisórios. Por isso mesmo, o governo está constituindo o Conselho Nacional de Desenvolvimento Industrial e a Agência Brasileira de Desenvolvimento Industrial, cuja função consiste, em boa medida, em “planejar e manter atualizada uma política de informação e documentação técnico-científica e coordenar a implantação dessa política através de serviços descentralizados”, como apontava o relatório de 1967.

Afinal, é sobre uma boa base de informações que se pode eleger prioridades, concentrar esforços, corrigir rumos e estruturar um conjunto de idéias que tenha permanência nas instituições de Estado. Esse sentido de planejamento foi o que Brasil perdeu nas últimas duas décadas e meia. Recuperá-lo é uma das tarefas maiores de nosso governo.

Edmundo Machado de Oliveira é assessor especial do ministro da Fazenda