Economia

Dada a persistência da vulnerabilidade externa, a economia continuará sujeita a surtos de instabilidade financeira provocados por choques internacionais ou problemas sociais e políticos internos

Foram bem-sucedidas, em certo sentido, as políticas macroeconômicas seguidas pelo governo Lula até o momento. Chegou-se, em 2003, a uma situação de relativa estabilidade monetária e financeira, desmentindo as expectativas pessimistas que existiam sobre o Brasil e o novo governo em 2002, particularmente no exterior.

Persistiram, contudo, dúvidas sobre a solidez da estabilidade alcançada e a compatibilidade da política econômica com a retomada do crescimento em ritmo satisfatório e a melhora das condições sociais do país. Essas dúvidas aumentaram em 2004, como conseqüência da reativação lenta e desigual da economia, de taxas elevadas de desemprego e de novas rodadas de turbulência nos mercados financeiros.

Adesão ao modelo vigente

No campo econômico, o ponto de partida do novo governo era, como se sabe, muito difícil. Seu desafio inicial foi enfrentar a crise cambial e a aceleração da inflação – primeiro passo na administração da pesada herança econômico-financeira deixada pelo governo anterior.

A instabilidade resultava em parte do nervosismo dos agentes econômicos, em especial dos mercados financeiros, quanto às medidas que o novo governo tomaria. Nesse ambiente, poucos discordaram da idéia de que o caminho da cautela era o mais recomendável. Não convinha começar o governo com mudanças rápidas de curso na área econômico-financeira.

O que se anunciou, num primeiro momento, foi que a cautela e continuação das políticas anteriores fariam parte de um “programa de transição”, que criaria as condições para concretizar, numa segunda etapa, as mudanças econômicas com que se comprometera Luiz Inácio Lula da Silva antes e depois das eleições de 2002. Evidentemente, esse compromisso nada tinha de acidental, uma vez que refletia o profundo e generalizado descontentamento dos brasileiros com os resultados da gestão econômica no período Fernando Henrique Cardoso.

Muito do que foi feito na área econômica desde janeiro de 2003 era realmente indispensável. Dadas as condições fiscais e financeiras, não havia alternativa senão produzir superávits primários expressivos nas contas públicas. O controle da inflação precisava ser recuperado. Convinha, além disso, manter o câmbio flutuante, regime a que o Brasil chegou com grande dificuldade e atraso, depois do desastre cambial do primeiro mandato de Fernando Henrique Cardoso.

Porém, o que se apresentou inicialmente como uma política de transição para um novo modelo converteu-se, aos poucos, em uma adesão pura e simples ao modelo macroeconômico do governo anterior.

Ortodoxia fiscal e monetária

Sabia-se que o governo Lula seria cauteloso em matéria de política econômica – até um certo conservadorismo era esperado. O que surpreendeu foi a total incapacidade de inovar nessa área e, conseqüentemente, o contraste acentuado, para não dizer escandaloso, entre as expectativas criadas durante a campanha e a linha econômica adotada no governo.

A adesão ao modelo econômico vigente incluiu até mesmo a radicalização de alguns de seus aspectos. O novo governo resolveu, por exemplo, investir grande parte de seu capital político inicial na aprovação pelo Congresso de uma proposta de reforma da previdência social pública mais dura do que as que vinham sendo apresentadas pelo governo anterior. Passou, também, a buscar um superávit primário ainda mais alto nas contas públicas. Integrantes do governo repetiam insistentemente que medidas desse tipo eram necessárias para conquistar credibilidade, reduzir as taxas de juro e retomar o crescimento.

Nunca foram muito convincentes os argumentos utilizados para defender o aumento do superávit fiscal primário em 2003 e para aferrar-se à meta de 4,25% do PIB nos anos seguintes. Para uma economia estagnada ou em recessão, um superávit primário de 3,75% do PIB (a meta negociada pelo governo anterior com o FMI) já teria representado um esforço considerável em 2003. A decisão de fixar uma meta ainda mais ambiciosa impôs um sacrifício adicional provavelmente desnecessário. Políticas fiscais exageradamente restritivas acabam constituindo importante obstáculo ao desenvolvimento, na medida em que imobilizam o setor público, limitam sua capacidade de investir ou sobrecarregam o setor privado de impostos.

Com o setor público obrigado a gerar superávits primários superiores a 4% do PIB, independentemente do nível de atividade econômica, algumas conseqüências são inevitáveis. Primeiro, em decorrência de cortes de gastos operacionais, setores essenciais da máquina pública continuarão funcionando precariamente. Segundo, investimentos públicos prioritários (em infra-estrutura de transporte e de energia, por exemplo) não serão feitos em volumes e prazos adequados. Terceiro, programas sociais, de combate à pobreza e distribuição de renda e riqueza, ficarão limitados por escassez de recursos. Quarto, a carga tributária permanecerá elevada, sufocando o consumo e o investimento do setor privado e reduzindo a competitividade internacional das empresas brasileiras. Quinto, a restrição fiscal contribuirá para que a demanda interna cresça de forma modesta, afetando negativamente o nível de atividade e a geração de empregos.

Evidentemente, esses problemas serão agravados se o Banco Central continuar praticando taxas de juro básicas excepcionalmente elevadas e o sistema bancário continuar cobrando juros ainda mais extravagantes em seus empréstimos. Como se sabe, as taxas básicas de juro e os spreads bancários praticados no Brasil estão, há muitos anos, entre os mais altos do mundo. Por motivos conhecidos, as taxas de juro desequilibram as finanças públicas, mantêm a economia desaquecida e concentram a renda nacional.

Uma das causas do nível persistentemente elevado dos juros básicos está na maneira como vem sendo aplicado o regime de metas para a inflação, introduzido em 1999. Não parece haver razões para apegar-se a esse regime de maneira rígida, fixando metas ambiciosas e difíceis de ser alcançadas sem sacrifícios em termos de produção, emprego e renda. É possível implementar esse regime com mais flexibilidade, redefinindo diversos aspectos de seu funcionamento.

Aos poucos, vai ficando mais claro que o arcabouço macroeconômico em vigor tende a sufocar o desenvolvimento do país. Com a atual combinação de políticas fiscal e monetária, o Brasil dificilmente conseguirá crescer em ritmo suficiente para superar a crise do mercado de trabalho.

Gestão das contas externas

As políticas adotadas não asseguram sequer a estabilidade da economia, como vem mostrando a evolução do quadro brasileiro desde o início de 2004. Uma das principais razões das turbulências recentes reside em outro ponto fraco da atual orientação macroeconômica: a gestão das contas externas.

As iniciativas da Fazenda e do Banco Central têm sido insuficientes para superar o quadro de vulnerabilidade herdado do governo passado. A experiência dos últimos dez anos mostra que a fragilidade cambial abortou todas as tentativas de reativar a economia brasileira. Apesar disso, o novo governo não colocou a questão no centro das prioridades da política macroeconômica. Repetiram-se, nessa área, praticamente os mesmos erros e omissões do segundo mandato de Fernando Henrique Cardoso.

A principal mudança no campo das contas externas veio da geração de superávits comerciais muito superiores aos esperados, desde meados de 2002. A ampliação das exportações e a substituição de importações de bens, e em menor medida de serviços, traduziram-se em rápido ajustamento da conta corrente do balanço de pagamentos.

Cabe notar que esse ajustamento não resultou de políticas deliberadas do governo Fernando Henrique Cardoso ou do governo Lula, mas da grande depreciação cambial de 2002, de um ambiente internacional favorável às exportações e de uma resposta surpreendentemente vigorosa dos setores produtores de tradeables aos estímulos proporcionados pela ampliação da demanda externa e, sobretudo, pela desvalorização do real em relação a moedas estrangeiras.

Não se pode afirmar, entretanto, que o ajustamento estrutural da conta corrente tenha sido completado em 2003. Os saldos comerciais foram alcançados com a economia brasileira em recessão ou crescendo a taxas medíocres. O que aconteceria com a balança comercial e o balanço de pagamentos em transações correntes se a economia voltasse a crescer em ritmo compatível com as necessidades do mercado de trabalho doméstico? Taxas de expansão do PIB real da ordem de 5% a 6% certamente provocariam impacto negativo substancial sobre a balança comercial e, em menor medida, sobre outras rubricas da conta corrente.

Além disso, o problema da vulnerabilidade externa não se limita às transações correntes com o exterior. Deve-se considerar, também, os movimentos de capital e o nível das reservas internacionais. Nesses aspectos, a situação brasileira deixa muito a desejar. O volume de vencimentos de principal da dívida externa é pesado, a conta de capitais do balanço de pagamentos continua excessivamente aberta e o nível das reservas internacionais é insuficiente. A recomposição das reservas foi iniciada no final de 2003 e oficializada como meta do Banco Central no começo de 2004, mas os resultados têm sido modestos. Na área decisiva dos controles de capitais, nada foi feito até agora.

Em conseqüência, continuam sofríveis diversos indicadores do setor externo da economia brasileira. Por exemplo, as amortizações da dívida de médio e longo prazos (inclusive de dívidas intercompanhias e com o FMI) alcançarão cerca de US$ 48 bilhões em 2004. A isso se acrescenta a necessidade de refinanciar as dívidas de curto prazo e estimular a permanência no país de investimentos de portfólio. A soma desses dois componentes de capital de curto prazo ou volátil era da ordem de US$ 40 bilhões no final de 2003. Portanto, o Brasil começou 2004 com compromissos de curto prazo e passivos externos voláteis de quase US$ 90 bilhões. Em dezembro, as reservas do país situavam-se um pouco abaixo de US$ 50 bilhões em termos brutos (sem descontar os passivos com o FMI).

Há que considerar, além disso, a vulnerabilidade interna da conta de capitais – resultado da liquidez do estoque de ativos financeiros em reais, a maior parte pertencente a residentes, e da facilidade com que seus detentores podem transferi-los para o exterior. Em fins de 2003, a base monetária ampliada (base restrita, depósitos compulsórios e títulos federais) correspondia a mais de US$ 300 bilhões, o equivalente a seis vezes as reservas internacionais brutas no Banco Central. O estoque de ativos financeiros em reais (M4) representava mais de US$ 330 bilhões na mesma data, 6,7 vezes o valor das reservas.

Mentiras sinceras

Armou-se, assim, um cenário curioso. Por um lado, a gestão fiscal e monetária brasileira é considerada “responsável” e “séria” por analistas e instituições no exterior, particularmente em Washington. Chega a ser apontada como exemplo a outros países. Paradoxalmente, os mesmos analistas e instituições alertam para a vulnerabilidade da economia brasileira e, em especial, para os riscos inerentes ao inevitável aumento das taxas de juro nos EUA e nos mercados financeiros internacionais.

Não há confiança nas perspectivas de crescimento da economia brasileira e em sua capacidade de suportar choques externos. O resultado da atual estratégia macroeconômica será, na melhor das hipóteses, uma trajetória de crescimento modesto nos próximos anos, insuficiente para produzir uma melhora apreciável do mercado de trabalho brasileiro. A rigidez das políticas fiscal e monetária impedirá provavelmente que a economia cresça em ritmo expressivo. Dada a persistência da vulnerabilidade externa, a economia continuará sujeita a surtos de instabilidade financeira provocados por choques internacionais ou problemas sociais e políticos internos.

Nessas condições, as tentativas de reativar a produção e o emprego tendem a ter fôlego curto. Na hipótese de voltarem a ocorrer turbulências mais graves, a economia terá novas recaídas na estagnação ou na recessão, o que pode ser suficiente para marcar o fracasso do governo Lula no seu conjunto.

Paulo Nogueira Batista Jr. é economista, professor da FGV em São Paulo