Nacional

O CDES precisa consolidar seu papel de formulador de propostas de largo alcance, pois disso depende a consolidação de sua legitimidade política

“Nós vamos ensinar este país a negociar. (...) Nós precisamos ter a grandeza de entender que as negociações se fazem extremamente necessárias.”
Presidente Luiz Inácio Lula da Silva

Concertação: processo de compor, ajustar, harmonizar. Em última instância, pactuar. Trata-se do difícil processo de chegar a consensos. Como desobstruir arraigados interesses que produziram o que os cientistas sociais têm designado como modernização excludente. Ainda mais quando se sabe que as relações sociais de nossa sociedade são marcadas pelo acentuado poder discriminatório com que os mais fortes tratam os mais fracos. Ou seja, aquelas que dominam tendem a encarar os interesses dos outros como adversos e, portanto, a desclassificá-los como incongruentes, injustificáveis e até mesmo perniciosos. As práticas autoritárias constituem traços profundos de nossa sociabilidade: “Você sabe com quem está falando?”, fórmula que inicia uma interlocução de maneira marcadamente excludente e visa, em última instância, eliminar as divergências que opõem pessoas e grupos com posições, crenças ou reivindicações conflitivas1.

Obviamente, o Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social (CDES) constitui uma arena de debates que não é marcada por argumentações e posturas discriminatórias. Contudo, a diversidade de interesses nele representada, a dimensão e complexidade das questões a serem equacionadas face a gravidade de nossos déficits sociais e econômicos, tem como pré-requisito o reconhecimento do outro enquanto interlocutor com direito a reivindicações genuínas que necessitam ser levadas em consideração, pois nisso residem os contínuos percursos, plenos de encruzilhadas e desvios, da prática da negociação.

Voluntarismo político na acepção positiva do termo? Sem dúvida, pois decorrente de lideranças, inclusive do presidente Lula, que tem em sua biografia de líder sindical enorme experiência de chegar a acordos com opositores. Ela decorre também da dinâmica interna do Partido dos Trabalhadores, no qual se aglutinam vários agrupamentos com concepções político-ideológicas diversas que, em seus embates e debates, necessitam encontrar o ajustamento de suas posições divergentes: não creio ser descabida a afirmação segundo a qual o PT teve de construir modalidades de superação de conflitos que têm influência em seus modos de governar, que, apoiados na consulta aos mais variados grupos sociais, constituem elemento legitimizador do processo decisório. Exemplo dessa prática é o Orçamento Participativo, que encontra em Porto Alegre seu modelo mais elaborado, ou os Conselhos de Saúde, Educação, Transporte e Meio Ambiente, que são dinâmicas presentes no “modo petista de governar”. Dessas experiências decorre a decisão política de criar o Conselho.

“O Conselho é um órgão de construção política, é uma usina de idéias da Presidência.”
Ministro Tarso Genro

O CDES tem noventa membros. A este contigente deve ser agregado o presidente da República e doze ministros de Estado, entre os quais se inclui o responsável pela Secretaria Especial do Desenvolvimento Econômico e Social. Trata-se de “órgão de assessoramento do presidente da República (...) na formulação de políticas e diretrizes específicas, voltadas ao desenvolvimento econômico e social produzindo indicações normativas, propostas políticas e acordos de procedimento”2. De caráter consultivo, reúne-se ordinariamente a cada dois meses, com pauta proposta pelo Executivo previamente comunicada a seus integrantes, que têm a prerrogativa de propor um temário para debate e deliberação.

A escolha dos membros do Conselho cabe ao Poder Executivo, em última instância, ao presidente da República3. A indicação, não obstante estar fortemente referenciada na representação social e econômica, tem como princípio a escolha de um nome enquanto pessoa física, pois, caso deixe de ter um cargo em uma entidade, continuará como membro do CDES. No período da transição ocorreu uma grande reunião com mais de trezentas pessoas, representantes de sindicatos e federações patronais e de trabalhadores, grandes empresários, lideranças de movimentos sociais e associações, leigas e religiosas, engajados em projetos sociais e de defesa dos direitos de cidadania, além de personalidades, no mais das vezes pertencentes ao meio universitário. Até o primeiro mês de governo, cerca de duzentas entidades formalmente propuseram sua integração ao Conselho. Assim, ao todo foram sistematizados mais de quatrocentos nomes, sobre os quais se operou a escolha dos membros do Conselho, baseada em critérios ao mesmo tempo “ecléticos e pluralistas”.

As deliberações são submetidas exclusivamente ao presidente da República, não cabendo, portanto, nenhuma forma de assessoramento ao Congresso Nacional. Até 2003 – período a que este texto se refere –, sua principal atribuição foi realizar propostas relativas às reformas tributária e da Previdência Social, que, uma vez enviadas à Presidência, foram examinadas e enviadas ao Parlamento. Outra incumbência prioritária reside no Grupo Temático sobre os Fundamentos Estratégicos para o Desenvolvimento. Seu propósito é apontar os elementos básicos de médio e longo prazo para alavancar um crescimento econômico sustentável que promova a inclusão social4.

Vale mencionar também que o CDES produz as Cartas de Concertação, originárias de enunciados desenvolvidos em suas reuniões que, após serem sistematizados pelos técnicos da Secretária Especial, são submetidos aos conselheiros para emendas e modificações. Em síntese, trata-se de documentos que procuram enunciar, de forma sintética, não só aspectos conceituais inerentes às prioridades do desenvolvimento como também a explicitação de questões ético-normativas necessárias ao estabelecimento de marcos graduais de construção de consensos. Estaria se forjando um equacionamento entre crescimento e pobreza também balizada por concepções que valorizam a incorporação das vastas camadas escanteadas dos benefícios do desenvolvimento? É o que indicam as Cartas e, se assim for, estaria se construindo um conjunto de falas que se apóia numa ética da eqüidade.

“Nós estávamos em um debate acalorado sobre a incidência da con­tribuição sobre a folha de pagamentos, à qual olhávamos do ponto de vista técnico (...) quando dom Tomás Balduíno nos colocou no devido lugar. Ele falou o seguinte: ‘Que o direito à vida é um direito universal’. E que ‘as pessoas ­fatalmente iriam depender do Estado na sua velhice, independentemente de terem ou não trabalhado’. Seria uma questão de dignidade humana (...) Essa posição de dom Tomás reencaminhou a discussão, que era uma discussão técnica...”Antoninho Trevisan

“Meu governo terá a marca do entendimento e da negociação. (...) Vamos promover um Pacto Nacional pelo Brasil, formalizar o Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social ... Isto não se fará sem a ativa participação de todas as forças vivas do Brasil.”
Primeiro pronunciamento do presidente eleito, Luiz Inácio Lula da Silva, em 28 de outubro de 2002

O CDES é legalmente criado no primeiro dia de janeiro e em fevereiro ocorre a primeira reunião ordinária onde estão presentes 82 conselheiros, doze ministros de Estado e o presidente Lula5. No dia 4 de abril, no Salão Oeste do Palácio do Planalto, os conselheiros dão os últimos retoques ao documento de reforma da Previdência. Lá estão também vários ministros e cerca de quarenta “convidados especiais”, presentes como observadores. Impressiona a presença de parcela significativa de grandes empresários, das principais centrais sindicais urbanas e rurais, lideranças de movimentos sociais, entidades religiosas, uma mescla díspare de pessoas, de vários matizes socioeconômicos, com visões de mundo e concepções político-ideológicas bastante diversas, em alguns casos provavelmente antagônicas: lá há banqueiros nacionais que tendem a não gostar dos estrangeiros que lá também estão; ou industriais, médios e grandes, que devem aos bancos e a eles pagam altos juros; os sindicatos mais combativos; os representantes de pastorais e do mundo agrário com sua falas sobre os “excluídos”. Lá a “democracia alfabética” coloca o “A” na primeira fila e o “Z” na última, unindo dois Robertos na convivência das cadeiras: o Baggio, líder do Movimento dos Sem Terra (MST), e o Setúbal, presidente do Itaú, que, se assim não fosse, dificilmente um dia iriam dialogar.

“Em relação a esse espaço físico vão se criando as melhores relações. De outra maneira eu nunca me sentaria ao lado do bispo Alceu (do Grupo Universal do Reino de Deus). Hoje eu compreendo a posição dele (...) Eu acho isso fantástico (...) criou-se um círculo que reduziu drama­ticamente o confronto.” Antoninho Trevisan

“...sento do lado da professora Glaci (...) mas o que eu tenho aprendido com ela e o que ela tem aprendido comigo é fantástico. No entanto, nunca imaginei que fosse conversar com a presidente da SBPC (Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência).” Gabriel Ferreira

“...anteriormente, as pessoas nem se conheciam. Se conheciam só pela imprensa. (...) Porque a maior dificuldade de um diálogo é quando as pessoas não têm capacidade de ouvir o seu interlocutor, não se dispõem a conhecer o outro, a opinião do outro, e tomar posições a partir daí.” Luiz Marinho

O fato de mais de 50% dos membros terem suas atividades centradas em São Paulo (quase dois terços na Região Sudeste) suscitou críticas na imprensa, entre elas a de que poderia pesar na balança do pacto federativo, cerne dos entendimentos necessários à reforma tributária que divide os interesses dos estados mais ricos – o Sudeste – dos mais pobres – o Norte e o Nordeste –, cada uma das regiões com apenas, respectivamente, cinco e quatro representantes.

Mas o que mais críticas suscitou foi o grande número de empresários, que corresponde à metade dos membros do Conselho, conforme mostra a tabela6. A esfera do trabalho corresponde, basicamente, aos sindicatos e a centrais, enquanto as catorze personalidades são majoritariamente professores universitários. Vale mencionar que, dos 45 representantes da esfera empresarial, 25 são das indústrias, treze do setor de serviços, onde se destacam cinco grandes bancos, três dos quais estrangeiros, cinco da agricultura, além de duas ONGs empresariais.

“É impossível”, diz o ministro Tarso Genro, “produzir um projeto alternativo ao Brasil, sem a concordância de grande número de empresários. Muitas das questões não são interesse de classe, mas fazem parte de uma visão de Nação”7. Nessa questão, as críticas partiram também de membros do Conselho que viam nessa presença empresarial o predomínio dos interesses da esfera do capital. De fato, a pequena representação sindical de trabalhadores face à esfera empresarial causou enorme polêmica na reunião de instalação do CDES, a ponto de ser mudado seu sistema decisório: de majoritário, como inicialmente previsto, passou a consensual, no sentido de só as matérias que obtivessem unanimidade seriam aprovadas pelo Conselho, enquanto aquelas que agregassem número expressivo de concordâncias seriam designadas recomendações. Nesse caso, sobre determinada questão, poderia haver mais de uma proposta, complementar ou divergente. Finalmente, sugestões seriam proposições que englobassem restrito número de participantes, não sendo portadores de consenso nem de posições majoritárias. Este foi, sem dúvida, o primeiro grande acordo construído pelo Conselho, sem o qual, dificilmente, se criaria um clima de cooperação, colocando em xeque sua própria existência.

“Quando se montou o Conselho, (...) começou a sair quantos empresários estavam presentes, quantos sindicalistas, (...) houve inclusive uma chiadeira. (...) E aí teve uma reformulação que acabou prevalecendo. (...) Não se faz por maioria, se faz por consenso ou não consenso. Porque muitas vezes uma idéia que pode ser não consensuada, que pode inclusive representar a minoria do Conselho, pode ser bem aceita pelo governo e o governo resolver implementá-la.” Luiz Marinho

Vale mencionar que 42 membros do Conselho têm um tipo de representação que foi por nós qualificado de particular, no mais das vezes empresas e personalidades, 23 foram definidos como restrita e os 25 restantes como tendo uma ampla forma de representação8.

Ressalta o contraste entre os tipos de representação das esferas empresariais e do mundo do trabalho: naquelas prevalece uma modalidade que se apóia no tipo particular e, regra geral, proveniente de uma empresa de grande porte e em sua imensa maioria de capital nacional, enquanto nestas, em grande parte, estão presentes centrais e federações patronais e de trabalhadores. A esfera social se divide entre ampla e restrita enquanto as catorze personalidades, por definição, foram classificadas como representantes de interesses particulares, não obstante serem pessoas com intervenção em assuntos públicos de importância nacional em matérias como cultura e educação. De toda forma, uma representação ampla tende a concentrar uma gama mais diversificada de interesses, pela diferença de grupos que estão, por exemplo, afiliados às centrais sindicais ou às federações industriais ou de bancos, que, além de laços e expectativas socioeconômicas comuns, apresentam uma gama variada de reivindicações.

“Se o Conselho não fizesse nada, ele já teria feito muito. Só de reunir essas pessoas, debater (...) conhecer e tirar essa prevenção que cada um tem em relação ao outro. (...) Com o Conselho o Brasil está aprendendo uma relação com o governo.” Antoninho Trevisan

“Eu acho que do ponto de vista conceitual o Conselho é uma oportunidade extraordinária que o país criou de você ter um diálogo institucionalizado com o governo. Geralmente, neste país as decisões eram tomadas no âmbito restrito dos gabinetes. (...) Então você tem a oportunidade de se fazer ouvir num órgão dessa importância.” Gabriel Ferreira

“O Conselho traz uma riqueza de poder aproximar o debate. Os conselheiros (...) apesar das divergências observam que os trabalhadores e os empresários têm muita coisa em comum e que podem, portanto, construir aproximações e construir acordos.”Luiz Marinho

“O Conselho, quanto mais heterogêneo, melhor; quanto mais pontos divergentes, melhor, pois cada segmento manifesta sua posição, enriquecendo a discussão, e o CDES busca extrair pontos em comum dentro da divergência.” Pedro Teruel

O CDES pode se tornar um espaço criador de propostas políticas para o Poder Executivo, produzindo balizamentos e diretrizes que se tornem parâmetros que alimentem a implementação de decisões. Poderá, por exemplo, especificar critérios de eqüidade, ao afirmar que a inclusão social significa a implementação de programas que façam os 50% mais pobres terem acesso a 20% ou 30% do total da riqueza gerada, através do aumento da massa salarial, transferência de renda ou de subsídios a bens indispensáveis como moradia e serviços urbanos; ao se posicionar sobre os tipos de desenvolvimento econômico e social que deseja atingir, estaria equacionando de maneira mais precisa os possíveis significados que o conceito de boa sociedade pode e deve adquirir.

Construir um espaço institucional de caráter eminentemente político, como é o caso do CDES, requer normas de funcionamento e, sobretudo, um rol de valores que, ao mesmo tempo, aceitem os particularismos e encontrem denominadores comuns capazes de produzir sua superação. Tudo indica que o processo decisório de tipo consensual pode favorecer essas aproximações e acertos sucessivos, pois, uma vez realizados, tende a criar uma legitimidade ampla e duradoura que pode mobilizar novas energias para o constante processo de reformar a sociedade; trata-se, enfim, de produzir um capital de confiabilidade paulatinamente alicerçado na experiência que reconhece a interlocução como fórmula de conjugar as discordâncias; a metáfora referente à democracia alfabética das cadeiras – como afirmaram os entrevistados – leva ao mútuo reconhecimento. Sem dúvida, existem riscos de o Conselho não atingir seus objetivos, deixando de apontar para as políticas que sirvam de substrato para a implantação de novos modelos de desenvolvimento. Ele precisa consolidar seu papel de formulador de propostas de largo alcance, pois disso depende a consolidação de sua legitimidade política.

Face à novidade das experiências em curso, este texto deve ser entendido como ponto de partida para reflexões futuras, pois problematiza uma dinâmica em curso. Daí seu título. Nesse aspecto, o reconhecimento das diferenças e divergências entre seus pares constitui o ponto central para a consolidação institucional do Conselho enquanto espaço público não-estatal que visa produzir proposições de interesses coletivos.

Esse reconhecimento vai na contramão de nossa tradição autoritária, pois, como lembra Sérgio Buarque em Raízes do Brasil, “nossa forma ordinária de convívio social é, no fundo, justamente o contrário da polidez”.

Nota: Foram realizadas quatro entrevistas com membros do Conselho: Antoninho Marmo Trevisan, da Trevisan Auditoria, Consultoria Empresarial e Tributária, Terceirização e Educação; Gabriel Jorge Ferreira, presidente da Federação Brasileira de Bancos (Febraban) e vice-presidente do Unibanco; Luiz Marinho, presidente da Central Única dos Trabalhadores; e Pedro Luiz Teruel, coordenador da Cives – Associação Brasileira de Empresários pela Cidadania.

Daniel T. Cara colaborou na confecção deste ensaio.

Lúcio Kowarick é professor titular do Departamento de Ciência Política da USP