Cultura

Este é o ano em que se inicia a implantação de uma política republicana de cultura no Brasil, que consolidará um modelo de desenvolvimento que respeite a diversidade cultural, a identidade e soberania nacionais e o pleno direito dos cidadãos aos bens e serviços públicos de cultura

Desde o período colonial e sobretudo após a chegada da Corte de d. João VI ao Brasil, em 1808, a “cultura” foi pensada de duas formas pelas oligarquias políticas e econômicas que se sucederam no poder. De um lado era associada ao conhecimento que certas pessoas – “cultas” – acumulavam ao longo da vida. A cultura seria, desse ponto de vista, um privilégio daqueles que “naturalmente” teriam aptidão intelectual, uma minoria letrada num país de analfabetos. De outro, a cultura estava associada somente às artes como a música, a pintura, o teatro, a literatura, de origem européia. Nessa perspectiva, a “sociedade culta”, com ênfase nos artistas, seria aquela que dominasse esses instrumentos sofisticados marcadamente europeus.

Essa idéia da cultura se fez refletida na forma como o Estado, tanto no Império quanto na República Velha, tratou de um tema que então não se conhecia como “política cultural”. O Estado autoritário e escravocrata concebeu e criou instituições que excluíam culturalmente a maioria da população pobre e iletrada brasileira, de origem indígena, negra ou mestiça. E as expressões culturais dessas grandes maiorias os grupos dominantes classificaram de “folclore”. Ainda hoje essa ideologia atravessa a mentalidade de grande parte da sociedade brasileira, uma herança nefasta daquilo que o abolicionista Joaquim Nabuco profetizava como uma chaga que perduraria no seio da Nação, a “obra da escravidão”.

Dos anos 1920 em diante essas percepções foram se modificando conforme ocorriam mudanças significativas na formação social brasileira. O início do crescimento das cidades, o alvorecer da indústria e de um incipiente operariado, os efeitos da imigração e da abolição formal da escravidão, entre outros fatores, sedimentaram a formulação de uma nova compreensão da cultura e de seu papel na sociedade. A proposta modernista incorporou definitivamente a percepção da cultura brasileira como mestiça e plural, fruto do processo histórico, no qual os índios, os negros, os europeus e outros povos formadores da Nação fossem considerados todos sujeitos da grande aventura civilizatória nos trópicos. Essa proposta, entretanto, foi apropriada pelo Estado Novo de forma contraditória, mantendo-se uma política de caráter nacional-popular e autoritária, valorizando traços do nosso folclore, mas ao mesmo tempo exercendo forte controle sobre a criação, inclusive por meio da violência da censura e da perseguição a artistas com posições político-ideológicas divergentes do governo de Getúlio Vargas.

A participação do Brasil na Segunda Guerra Mundial ao lado das forças aliadas contra o nazifascismo teve conseqüências internas decisivas para a abertura de um período histórico de relativa liberdade democrática no país. Nessa fase houve também a consolidação das instituições culturais herdadas do período anterior e das criadas pelo Estado Novo, sobretudo o novo Ministério da Educação e seu principal braço cultural, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). A redemocratização relativa do país no período posterior a 1946 teve desdobramentos culturais importantes até o final dos anos 1960, mesmo depois do golpe militar de 1964. As instituições culturais já implantadas, somadas ao processo de divulgação cultural midiática possibilitado pelo rádio e pela televisão, contribuíram para o florescimento de uma geração que, em vários aspectos, revolucionou a cultura brasileira. Foram mais de vinte anos de explosão da criatividade brasileira, num período em que a liberdade ou a luta por ela compensaram uma política cultural ainda incipiente.

Passados mais de cinqüenta anos da Semana de Arte Moderna de 1922, embora tenham sido sedimentadas no Estado e na sociedade brasileira idéias, criações e ações que formaram a base sobre a qual se constrói no Brasil uma política cultural mais complexa e integrada, foi somente no final dos anos 1970 que se iniciou no interior do Estado um debate no qual se vislumbrava a possibilidade de tradução dos conceitos antropológicos de cultura, de um complexo de saberes e práticas de um povo, num conjunto de políticas públicas que considerasse a cultura não apenas como “arte”, mas como um dos direitos fundamentais dos cidadãos, sendo inclusive definidora de sua humanidade e de seu exercício republicano de cidadania.

Essa idéia começou a se evidenciar mais claramente, de maneira contraditória nos anos de chumbo da ditadura militar, dentro do Ministério da Educação e Cultura, no qual havia a Secretaria de Assuntos Culturais, posteriormente transformada em Secretaria da Cultura (SEC), em 1981, pelas mãos de Aloísio Magalhães. A SEC funcionava por meio de duas subsecretarias: a do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Sphan) e a de Assuntos Culturais (Seac), cada uma delas com suas respectivas fundações, a Pró-Memória e a Funarte, braços executivos da política cultural. A Embrafilme, a Fundação Casa de Rui Barbosa e a Fundação Joaquim Nabuco, por suas especificidades, eram diretamente subordinadas à SEC. Dali surgiram várias iniciativas inovadoras na política cultural brasileira, estimuladoras de um novo paradigma, o da cultura como centro vital da nacionalidade brasileira, com um enfoque marcadamente antropológico.

Em 1985, no seio da retomada da democracia, após vinte anos de ditadura militar, é criado o Ministério da Cultura (MinC). As secretarias estaduais de cultura instituídas no bojo da redemocratização exerceram um papel político significativo na implantação do MinC, com o argumento de que o governo federal deveria assumir seu papel na coordenação de uma política cultural. O MinC incorporou várias daquelas instituições culturais brasileiras já existentes, como a Biblioteca Nacional, a Casa de Rui Barbosa, a Funarte, o Iphan, a maioria na cidade do Rio de Janeiro, antiga capital do país. Todas já tinham um peso individual muito grande, o que vem dificultando, desde aquela época, as tentativas de articulação de uma política integrada e nacional. Nesse sentido, o arranjo e a gestão institucional do ministério têm sido modificados, nos últimos dezenove anos, de formas variadas e nem sempre positivas do ponto de vista do fortalecimento institucional.

Na gestão Collor, o Ministério da Cultura foi transformado em Secretaria da Cultura, diretamente vinculada à Presidência da República, situação que foi revertida dois anos depois, em novembro de 1992, em razão da forte pressão da comunidade cultural brasileira, que reagiu contra o desmantelamento do ministério e suas vinculadas. O “efeito Collor”, mesmo breve, teve um impacto devastador sobre o MinC em particular. Alguns órgãos foram extintos, havendo com isso um forte refluxo das políticas culturais federais. O saldo positivo desse período foi a aprovação da Lei Rouanet, em 1991, e da Lei do Audiovisual, em 1993, cuja ênfase foi organizar um sistema nacional de financiamento à cultura, através do Programa Nacional de Incentivo à Cultura (Pronac), que inclui também o Fundo Nacional de Cultura (FNC) e o Fundo de Investimento Cultural e Artístico (Ficart).

Em 1995, já no governo FHC, houve uma reorganização da estrutura do Ministério da Cultura, transformada em lei em 1998. Uma virtude da gestão do ministro Francisco Weffort foi ter recuperado e preservado a existência do ministério. Ou seja, o governo FHC, de concepção minimalista do papel do Estado, embora tenha alocado inicialmente maiores recursos ao ministério, manteve-o nos últimos anos à míngua e o levou a investir quase toda a sua capacidade institucional na modalidade de “mecenato” da Lei Rouanet, transferindo para o “mercado” grande parte da definição da “política cultural”. O mecanismo do FNC, apesar de ter obtido maiores ganhos das fontes da loteria federal, sofreu grandes cortes no período.

Essas medidas causaram a diminuição da capacidade de ação das vinculadas do ministério e levaram a uma concentração da aplicação dos recursos públicos, via renúncia fiscal, na Região Sudeste, principalmente no eixo Rioo–SP. A criação das Secretarias do Livro e Leitura; do Patrimônio, Museus e Artes Plásticas; da Música e Artes Cênicas; e do Audiovisual passou a sombrear as ações da administração direta com as vinculadas. Como a maioria dos equipamentos culturais do MinC estão na Região Sudeste, a conexão articulada da política cultural com estados e municípios ficou prejudicada. Dois pontos positivos da gestão Weffort foram a retomada do cinema brasileiro após a paralisação do período Collor e a aprovação da legislação sobre o patrimônio cultural imaterial, instituindo o Programa Nacional do Patrimônio Imaterial, mecanismo que reconheceu amplos setores do patrimônio cultural brasileiro até então excluídos da proteção e promoção legal.

Economia e infra-estrutura nos anos 1990

O aspecto central e estratégico da cultura para o desenvolvimento, apontado no início dos anos 1980 por Aloísio Magalhães, tem hoje desdobramentos políticos e econômicos importantes. Na era da globalização, cada vez mais a identidade cultural de um povo e de um país ganha novos conteúdos, pois há sempre o risco de uma homogeneização e pasteurização de todo o planeta em torno de alguns poucos referentes simbólicos, o que tornaria a humanidade apequenada pela perda de sua diversidade cultural. A afirmação da diversidade cultural do Brasil no cenário internacional, atualmente, tem um contorno estratégico fundamental, a começar pelo fortalecimento da língua portuguesa e, sobretudo, das linguagens culturais brasileiras. Tudo isso exerce uma influência cada vez maior na economia das nações.

Hoje a economia da cultura (bens e serviços) é das que sustentam os maiores índices de crescimento em todo o mundo, já representando a segunda maior “indústria” dos Estados Unidos da América, perdendo apenas para a indústria bélica. No Brasil, estudos realizados há alguns anos pela Fundação João Pinheiro indicavam que a economia da cultura representa pelo menos 2% do PIB nacional, ou seja, movimenta cerca de US$ 1 bilhão/ano (dados de 2001). Certamente um estudo mais atualizado aumentaria esse patamar significativamente. Entretanto, como ocorre em outros setores do desenvolvimento socioeconômico, e mais ainda no caso da cultura, o papel do Estado como responsável pelo investimento público direto e estímulo ao investimento do setor privado é necessário e fundamental para a criação de ampla infra-estrutura cultural no país. Esta, infelizmente, é uma área na qual o país tem muito a fazer.

A infra-estrutura cultural do Brasil ainda é muito incipiente se comparada ao tamanho da economia. Vejamos, como exemplo, os dados do IBGE de 2001 para os 5.560 municípios brasileiros: 78% deles têm pelo menos uma biblioteca; 44%, uma banda de música; 17%, um museu; 19%, um teatro ou casa de espetáculo; 7,5%, uma sala de cinema; e apenas 6%, uma orquestra. Somente 13% possuem um Conselho Municipal de Cultura, dos quais apenas metade tem periodicidade freqüente ou muito freqüente. Quando se analisam esses dados por região e por estados, ficam evidentes as disparidades regionais. Na Região Norte, por exemplo, só 3,5% dos municípios têm um cinema, enquanto na Sudeste este índice sobe para limitados 15%, sendo que a maioria desses equipamentos está concentrada nos 32 municípios brasileiros acima de 500 mil habitantes, que contam todos com pelo menos duas salas. Estes são alguns dados que indicam a grande necessidade e o desafio de reverter o déficit de infra-estrutura cultural no Brasil, principalmente nos 5.334 municípios com população abaixo de 100 mil habitantes, que representam 96% do total, e nas periferias das metrópoles, onde a infra-estrutura é mais deficitária ou inexistente.

Quanto aos investimentos governamentais, podemos observar um quadro de melhoria relativa, mas ainda incipiente, pelos dados que seguemSILVA, Frederico A. Barbosa da. IPEA, 2002. Nos anos 1990 houve um fortalecimento institucional e um aumento importante dos investimentos no campo cultural da União, dos estados e dos municípios, sobretudo destes últimos, elevando os gastos culturais governamentais per capita de R$ 3,22 em 1994 para R$ 6,01 em 1996, mesmo havendo no mesmo período uma queda desses gastos em relação ao PIB, que era de 0,17% em 1994 e passou a 0,14% em 1996. Os valores absolutos cresceram de R$ 492,8 milhões em 1994 para R$ 946,2 milhões em 1996. Vale ressaltar que em 1996, do total desses gastos, os estados investiram 32,8%, os municípios 49,1% e a União 18,1%, sendo que, dos investimentos municipais, 83,58% foram aplicados nas regiões Sul e Sudeste, e 14,3% nas demais, o que revela um alto índice de desigualdade regional também na esfera municipal.

As transferências de recursos federais aos estados e municípios cresceram entre 1994 e 1996, embora sejam valores ainda pequenos. Em 1994, por exemplo, representavam 5% do orçamento federal e em 1996 passaram a 20,5% do total. Aos estados foram repassados, em 1994, 75,9% desses recursos e, em 1996, 63,7%. Aos municípios, 24,1% do total em 1994 e 36,3% em 1996. Vêem-se aí o aumento percentual dos repasses aos municípios e uma queda do repasse aos estados, com um aumento relativo do total repassado pela União aos entes federados. Embora a descentralização de uma política cultural não se restrinja ao aumento de repasses financeiros, esses dados revelam claramente que novos atores institucionais, municipais e estaduais entraram e ganharam força na cena governamental da cultura durante os anos 1990, criando bases importantes para uma política pública de cultura mais ampla e sofisticada nesta primeira década do século 21.

A cultura na Constituição de 1988

Embora nossa legislação venha desde o início do século 20 tratando de vários temas relacionados à cultura brasileira, a necessidade da construção e desenvolvimento de uma política pública de cultura no Brasil, com ênfase nos conceitos antropológicos anteriormente referidos, aparece mais bem detalhada e clara no texto constitucional de 1988. No Título VIII, “Da Ordem Social”, Capítulo III, Seção II, “Da Cultura”, foram inseridos dois parágrafos, 215 e 216, nos quais se explicitam os “direitos culturais” a que todo cidadão deve ter acesso, destacando as “fontes da cultura nacional” que o Estado deve proteger: “as manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras, e das de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional”.

Define ainda que o patrimônio cultural brasileiro é constituído de “bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira”. Detalha que entre esses bens estão “as formas de expressão”; “os modos de criar, fazer e viver”; “as criações científicas, artísticas e tecnológicas”; “as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais”; “os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico”. Estabelece que cabe ao poder público e à sociedade a proteção desse patrimônio cultural, “por meio de inventários, registros, vigilância, tombamento e desapropriação, e de outras formas de acautelamento e preservação”, prevendo punição a quem a ele promover danos. À administração pública cabe a gestão da documentação governamental, obrigação concernente aos Arquivos Públicos, sendo tombados os documentos e sítios referentes aos antigos quilombos.

Vale destacar também que a Constituição de 1988, em seus artigos 23 e 24, estabelece que os assuntos da cultura e da proteção do patrimônio cultural são competência comum da União, dos estados, do Distrito Federal e dos municípios, inclusive quanto a uma legislação “concorrente”, ou seja, afinada entre os diversos entes federados. Quanto aos municípios, o artigo 30 explicita que lhes compete “promover a proteção do patrimônio histórico-cultural local, observada a legislação e a ação fiscalizadora federal e estadual”. Podemos verificar no texto constitucional de 1988 os “ecos” dos conceitos e práticas elaborados desde os anos 1920 a respeito da cultura, como haviam apontado Mário de Andrade e Aloísio Magalhães.

Compromissos programáticos do PT

Durante a campanha eleitoral de 2002 para a Presidência da República, o Partido dos Trabalhadores instituiu um processo de debates nacional, promovendo seminários, nas cinco regiões do Brasil, que resultaram na elaboração do documento “A Imaginação a Serviço do Brasil”, entregue ao então candidato, o companheiro Luiz Inácio Lula da Silva, em outubro daquele ano. Fruto do acúmulo histórico que o partido e seus aliados construíram ao longo das últimas duas décadas, esse documento constitui o compromisso mais importante que o PT assumiu com a sociedade brasileira no âmbito da cultura. Ecoa, também, as noções de Mário de Andrade, Aloísio Magalhães e os pressupostos da Unesco, possuindo, portanto, uma sintonia fina com os preceitos da Constituição de 1988.

O eixo central das discussões passava, em 2002, pelos seguintes temas: “Cultura como Política de Estado”, no qual a ênfase foi o necessário caráter republicano e projetivo das políticas públicas de cultura, para além dos governos; “Economia da Cultura”, destacando, como já foi dito anteriormente, a importância dos ativos econômicos da cultura na geração de emprego e renda, mas também dos mecanismos de financiamento dessa política pública; “Gestão Democrática”, cujo foco foi a necessária modificação na estrutura do Ministério da Cultura, com vistas à descentralização e, o mais importante, à implantação do Sistema Nacional de Cultura; “Direito à Memória”, em que se tratou do salvamento emergencial de acervos e sobretudo do reforço do Iphan, órgão responsável pelo patrimônio nacional que se encontrava sucateado e sem recursos; “Cultura e Comunicação”, tema essencial, pois cuida da mídia de massa e sua relação com a cultura, quando se discutiu uma política para o audiovisual brasileiro; e “Transversalidades das Políticas Públicas de Cultura”, em que tratamos das relações e integrações necessárias da cultura com outras políticas sociais fundamentais como educação, ciência e tecnologia, comunicação, esporte, meio ambiente etc.

Além desses seis temas, o programa destacou três dimensões basilares para a construção da política pública de cultura no Brasil: a dimensão social, a democrática e a nacional. Ou seja, o papel central e estratégico da cultura para a inclusão social num país marcado pela desigualdade, a importante contribuição da cultura para o aprofundamento das instituições republicanas e democráticas no Brasil e ainda o suporte fundamental da cultura para a retomada de um projeto nacional, visto que este se dá, em grande medida, pela valorização da diversidade e identidade cultural da Nação, sem que isso se confunda com um nacionalismo estreito.

O Ministério de Lula e Gilberto Gil

No dia 1º de janeiro de 2003, quando assumiu o governo federal, o presidente Lula nomeou Gilberto Gil como ministro da Cultura. A equipe que assumiu o ministério sob a batuta de Gil tinha consciência dos avanços e recuos aqui apontados e sabia que a saída para o problema da fragilidade do MinC encontrava-se na efetiva construção de uma política pública de cultura no Brasil, com a implantação de um Plano Nacional de Cultura, de caráter plurianual, a promoção de mudanças no sistema de financiamento e a implantação de um Sistema Nacional de Cultura, de caráter republicano, envolvendo a sociedade civil e os entes federados. Para cumprir esse enorme desafio, o próprio ministro Gil tem exercido forte impacto na sociedade, na mídia e em todo o governo, levando, através de discursos programáticos, a mensagem poderosa da centralidade estratégica da cultura para o desenvolvimento do Brasil, retirando o Ministério da Cultura do isolamento político e aumentando seu orçamento de 2004 em cerca de 70% em relação ao de 2003, feito ainda no governo FHC.

Concomitantemente à sinalização programática feita para o público externo, o ministério precisava reativar suas energias internas, desgastadas nos últimos vinte anos, com a reorganização e o fortalecimento de sua estrutura, integrando o “sistema MinC”, com a necessária articulação entre a administração direta, suas várias instituições (Iphan, Funarte, Fundação Biblioteca Nacional, Fundação Cultural Palmares, Fundação Casa de Rui Barbosa e Agência Nacional de Cinema) e seus servidores. Seria um esforço de “arrumar a casa”, de tal forma que o ministério pudesse assumir seu papel constitucional de dirigente da política cultural do país.

Ficou claro também que teria de haver um período de transição, no qual as mudanças seriam realizadas passo a passo, com vistas a dotar o ministério de todas as condições institucionais mínimas para coordenar toda a política cultural federal e, principalmente, formular e implantar uma política pública nacional de cultura. Tudo isso deveria ser feito sem que houvesse prejuízo àqueles que continuavam apresentando projetos pelo modelo anterior. A imagem utilizada para definir esse período é de que tínhamos de “consertar o avião voando”. Com esse pressuposto, o planejamento adotado elencou prioridades de ação.

A primeira prioridade foi a elaboração de uma proposta de desenho institucional que fortalecesse as instituições vinculadas ao ministério, mas criasse secretarias cujas atribuições transversais pudessem reforçar o que passou a ser chamado de “sistema MinC”. Essa nova estrutura deveria também ganhar mais “musculatura”, para dar ao sistema MinC maior presença nacional e capacidade de articulação com os estados, municípios e a sociedade em geral. Nesse aspecto previa a criação do Conselho Nacional de Política Cultural, aberto à participação da comunidade cultural, assim como a implantação do Sistema Nacional de Informações Culturais e do Sistema Nacional de Cultura. Essa proposta foi apoiada pelo presidente Lula e publicada no Diário Oficial da União, numa primeira etapa, em agosto de 2003, sendo concluída sua expansão em abril de 2004.

Essa reforma ampliou os cargos de assessoramento superior e funções gratificadas do sistema MinC de 670 para 884, além da estrutura da Ancine, vinculada ao ministério em dezembro de 2003. Mais do que ampliar os cargos, houve uma mudança de qualidade no redesenho institucional, abolindo os sombreamentos existentes e alocando o sistema de financiamento na Secretaria de Fomento e Incentivo à Cultura. Todas as atividades “finalísticas” foram devolvidas às instituições vinculadas, e a administração direta ganhou maior capacidade gerencial e de planejamento estratégico, coerente com os princípios do programa de governo do presidente Lula, que enfatizava a necessidade do fortalecimento institucional do ministério, sobretudo dando-lhe um caráter de coordenador de uma política pública que garantisse aos cidadãos o direito básico à cultura, o fortalecimento da identidade nacional e da economia da cultura, numa perspectiva transversal e sistêmica.

Houve a criação de cinco novas secretarias (Políticas Culturais; Diversidade e Identidade Cultural; Articulação Institucional; Programas e Projetos; e Fomento e Incentivo à Cultura), a ampliação da Secretaria-Executiva, que passou a ter duas diretorias (Gestão Estratégica e Gestão Interna), a ampliação da Secretaria do Audiovisual, que incorporou a Cinemateca Brasileira e o Centro Técnico Áudio Visual (que antes estavam no Iphan e na Funarte, respectivamente). Foi criado o Conselho Nacional de Políticas Culturais, agora em fase de regulamentação, e mantida a Comissão Nacional de Incentivo à Cultura (CNIC), que analisa os projetos encaminhados ao mecanismo de renúncia fiscal da Lei Rouanet.

O Iphan, a Funarte, a Biblioteca Nacional, a Fundação Palmares e a Fundação Casa de Rui Barbosa se fortaleceram institucionalmente com acréscimos variados. Um dos destaques pode ser dado à ampliação do Iphan, que criou novas superintendências regionais em Mato Grosso do Sul, no Piauí e em Rondônia/Acre (separada da do Amazonas/Roraima) e novos escritórios técnicos em Antônio Prado (RS), Corumbá (MS) e Macapá (AP), apenas para ficar em alguns exemplos. Outro destaque importante foi a ampliação, com uma equipe maior, das representações regionais do MinC de quatro para sete: Rio de Janeiro, que atua também no Espírito Santo; São Paulo, para este estado; Belo Horizonte, para Minas Gerais; Recife, para o Nordeste; Porto Alegre, para o Sul; Campo Grande, para o Centro-Oeste; e Belém, para o Norte.

Essa reforma institucional, concluída este ano, cria novas bases para que o MinC invista em outra prioridade: a implantação do Sistema Nacional de Cultura. Essa agenda já foi iniciada pela discussão com o Fórum de Secretários de Cultura dos Estados, buscando-se a pactuação necessária à adesão dos estados, a partir do mês de julho, com planejamento até dezembro de 2004, ao Sistema Nacional de Cultura. Esse planejamento incluirá também a participação e adesão dos municípios. Para 2004, a intenção do Ministério da Cultura é celebrar com estados e municípios o maior número possível de protocolos de cooperação, com vistas à criação nesses entes federados dos quatro eixos fundamentais do sistema. Estes serão incluídos, até julho de 2004, no novo decreto de regulamentação da Lei Rouanet, articulando-os, dessa forma, ao sistema de financiamento à cultura já modificado em consonância com os parâmetros de nosso programa de governo.

O primeiro desses eixos é a necessária existência de secretaria ou fundação de cultura, com estatuto próprio, que possa coordenar a política pública em cada esfera de atuação governamental. O segundo é a criação, nos três níveis de governo, de conselhos deliberativos, de caráter paritário entre governo e sociedade, de tal forma que dê a maior transparência possível à aplicação da política cultural e promova efetiva participação da comunidade cultural na elaboração dessa política. O terceiro trata da necessidade de União, estados e municípios possuírem mecanismo legal de financiamento à cultura, sobretudo fundos, os quais permitam a criação dos fluxos de financiamento do sistema. O quarto eixo enfoca a necessidade de elaboração, também pelos três níveis de governo, de plano de ação de caráter plurianual.

Ao Ministério da Cultura caberá coordenar o Sistema Nacional de Cultura, com o apoio do Conselho Nacional de Política Cultural e dos diversos sistemas setoriais, tais como o de bibliotecas públicas, de museus etc. Aos estados e municípios caberá a coordenação dos sistemas respectivos, todos respeitando o Plano Nacional de Cultura, a ser definido plurianualmente, a partir da promulgação de emenda consti­tucional a ser votada no Senado ainda este ano. As mudanças já realizadas e todo esse planejamento futuro visam alcançar os objetivos que garantam que 2004 seja lembrado como o ano em que se iniciou a implantação de uma política republicana de cultura no Brasil, cujos passos levarão à consolidação no país de um modelo de desenvolvimento que não abandonará o respeito à diversidade cultural, a identidade e soberania nacionais e o pleno direito dos cidadãos aos bens e serviços públicos de cultura.

Márcio Meira é secretário de Articulação Institucional do Ministério da Cultura