Nacional

Entrevista com o líder da bancada na Câmara, Arlindo Chinaglia

Eleito líder da bancada petista na Câmara dos Deputados no início do ano, Chinaglia avalia o governo Lula, o PT e a relação da bancada com o governo

Passado já um terço do mandato do presidente Lula, que avaliação você faz desse período?

Nós não podemos dissociar o governo nem do programa nem tampouco da realidade do país. Destaco particularmente a dívida interna, que em janeiro de 1995 era de cerca de R$ 61 bilhões e em dezembro de 2002 passava dos R$ 800 bilhões. Evidentemente essa dívida impôs compromissos e nos obriga a realizar um superávit primário de 4,25% e também praticar taxas de juros elevadas. Isso, é claro, compromete a possibilidade de atender à grandiosa expectativa que nosso governo criou nacional e internacionalmente.

Portanto, na minha opinião, nesse um terço de mandato, nosso governo buscou equilibrar as contas públicas. Isso resultou numa política econômica que tenta se diferenciar do governo passado, mas evidentemente os elementos centrais de ajuste estão mantidos, o que então provoca dúvidas na militância e traz uma insegurança quanto ao resultado final, dada a vulnerabilidade externa da economia. Esse quadro, portanto, exige de todos nós, parlamentares, militantes e dirigentes, uma atitude de solidariedade com o governo e, ao mesmo tempo, a responsabilidade de avaliarmos permanentemente os rumos do país e do governo.

Essa fase inicial foi superada, para o bem e para o mal. Então nós temos hoje um quadro em que a popularidade do presidente se mantém em altíssimo nível, levando-se em conta a situação e, ao mesmo tempo, ataques absurdamente desrespeitosos, tanto da oposição como de parte da imprensa.

O PT sempre foi um partido comprometido com os trabalhadores, com a questão social, e alguns compromissos de campanha, como criação de empregos e duplicação do valor do salário mínimo, entre outros, até agora não foram cumpridos, ou têm sido de maneira extremamente tímida. Você acha que no tempo que falta, e mantida essa política econômica, é possível atingir essas metas?

O desemprego é o maior problema do país. Creio que até a idéia de políticas compensatórias é correta, se considerarmos que as pessoas não têm nenhuma alternativa no momento. Sou da opinião de que deveríamos atender idosos, atender as crianças que por circunstâncias não tenham condição de sobrevivência. Fora esses, creio que devemos concentrar todos os recursos da União no sentido da geração de emprego, mesmo na forma de frentes de trabalho, mesmo que seja trabalho precário. Porque, além de aumentar o consumo, nós estaríamos estimulando a produção. Eu estenderia isso para um pacto nacional de geração de emprego, em que a redução da jornada ou até mesmo em várias situações a eliminação da hora extra deveriam estar em pauta; em que o trabalho infantil fosse rigorosamente extinto; em que o aposentado só pudesse voltar ao mercado de trabalho em condições absolutamente excepcionais, quando fosse arrimo de família. Portanto, entre gerar emprego e fazer política compensatória, eu fico com emprego.

Agora, todos nós sabemos também que, para a geração de emprego, o principal caminho é o crescimento econômico. Este, por sua vez, depende tanto da redução da taxa de juros quanto, quem sabe, de uma eventual alteração na política econômica. Nós temos tido todo o cuidado em relação a isso, porque foi com a atual política econômica que se debelou a crise de confiança, que se impediu a disparada da inflação, que se reduziu o chamado risco Brasil. Tudo aquilo que nós sabemos e comemoramos. Uma janela que pode se abrir e nos dar ânimo é retirar os investimentos estatais da contabilidade do cálculo do superávit primário, o quê, segundo o que li na imprensa, poderá gerar um crescimento adicional da economia brasileira de até 3%. Não sei se um caminho ainda melhor não seria uma não-renovação do acordo com o FMI, porque aí teríamos ainda maior liberdade.

Mas creio que a condução da economia deve ser repactuada com a sociedade. Sinto que, com a autoridade que o presidente da República tem, de um lado, e com o clamor tanto de empresários quanto do movimento sindical e da militância do PT, e evidentemente olhando para o desespero do desemprego, vamos chegar a outros momentos de definições do nosso governo. Estou tranqüilo porque não me coloco com autoridade maior de quem quer que seja do governo e, particularmente, do presidente da República. Ou seja, esta tensão que todos nós sentimos, ela acomete o governo. Eu diria até que com maior intensidade. Devemos ter toda a cautela para não provocar suspeição no mercado, não afugentar investimentos. Acho que as normas devem ser claras em qualquer questão, seja na parceria público-privada, seja na questão de concessões públicas, tudo isso está correto.

Mas, ao mesmo tempo, penso que não há mal algum em alterar regras, desde que sejam combinadas. Temos de estar solidários com o governo, acreditando que ele tem percepção, e ao mesmo tempo cumprindo esse papel, próprio de partido político, de alertá-lo e apresentar propostas.

Você não acha que a resolução aprovada na última reunião do Diretório Nacional não cumpre com esse papel de alertar o governo, apresentar caminhos, problematizar, enfim, não é uma resolução acrítica e oficialista?

Isso foi conseqüência da experiência anterior, quando na reunião da Executiva Nacional se colocou na nota aprovada apenas uma frase pedindo mudanças na economia, o que acabou servindo de degrau para que outros partidos, particularmente da base aliada, fizessem manifestações no sentido de mudança. A imprensa sempre vai procurar identificar conflitos entre o PT e o governo, e evidentemente isso traz prejuízos imediatos à própria economia, dada sua vulnerabilidade.

Mas não é o fato de se terem colocado ou não no documento do Diretório Nacional propostas de mudanças que anula o que o próprio presidente da República, quando eleito, disse no Diretório Nacional: “Se me apresentarem uma proposta em que eu acredite, eu mudo”. Quer dizer, se todos nós do PT e da sociedade tivermos boas propostas, tenho certeza de que o presidente está aberto a elas.

Com isso quero dizer que tanto o governo quanto o PT, a bancada, todos nós já passamos da fase de fazer análise. Quando me candidatei a líder da bancada, propus que ela se concentrasse na questão da geração de empregos. Há muitos companheiros e companheiras que, com razão, querem discutir a política econômica. Debater não tem problema. Mas estou convicto de que, seja o governo, seja a bancada, seja o PT, seja Teoria e Debate, nós não temos de ficar analisando apenas. Devemos nos concentrar na geração de propostas.

Esse é o papel principal da bancada hoje?

A bancada não escolhe naturalmente seu papel porque a pauta de votações sempre foi determinada pelo Executivo. Então, a bancada tem de responder à questão dos transgênicos, da parceria público-privada, da reestruturação do setor elétrico, do Estatuto do Idoso, à questão do desarmamento etc. Em tudo o que vier do Executivo a bancada tem de se concentrar.

Agora, estrategicamente para o governo, acho que o papel da bancada é discutir e, se possível, apresentar propostas. Porque o governo não pode mais apenas analisar e prometer. Com referência a dobrar o salário mínimo, portanto, mantido o quadro atual, eu não vejo possibilidade, e já disse isso publicamente, porque creio que é uma responsabilidade coletiva balizarmos a expectativa. E acho que o próprio governo tem errado nisso, porque, se não começar a dosar a expectativa e ficar passando a idéia de que, ao final de quatro anos, vamos fazer com que o Brasil seja completamente outro, isso é arriscado, porque nossas ações não estão compatíveis com esse tipo de expectativa.

Então, prefiro trabalhar com uma expectativa menor e com ações que possam inclusive vir a superar a própria expectativa popular. Acho que esse é o melhor caminho. No momento, não vislumbro a possibilidade de dobrar o valor do salário mínimo depois do que fizemos no primeiro e estamos fazendo no segundo ano de governo, em que pese estarmos dando o reajuste do salário mínimo acima da inflação. Pouco, mas acima da inflação. É bom lembrar que Fernando Henrique, no segundo e no terceiro ano de seu governo, deu reajustes abaixo da inflação. E no último ano de seu primeiro mandato ele não conseguiu recuperar o valor do salário mínimo de 1995, e hoje nós, no segundo ano do governo Lula, estamos propondo e vamos pagar um salário mínimo maior que o de 1995.

Com referência à geração de empregos, eu já comentei. Esse é o maior desafio.

Como é ser líder da bancada do PT na Câmara nessa nova situação, quer dizer, líder do governo e também do maior partido? Primeiramente, liderar uma bancada do PT é sempre um motivo de honra, de orgulho, em qualquer situação. Ser líder da bancada, sendo base de apoio do governo, em primeiro lugar é um momento histórico pelo qual todos lutamos. Não há o que reclamar. Agora, evidentemente, tem uma complexidade maior, porque os deputados não são diferentes dos militantes. Nós temos desejos, vontades e, portanto, todos nós gostaríamos de realizar mais do que estamos realizando. Sem exceção. A bancada tem a tarefa de fazer os enfrentamentos políticos diariamente, e, quando um líder da oposição como José Carlos Aleluia, do PFL, vem criticar o governo porque colocaram o presidente da República diante da situação de inaugurar algumas ambulâncias em Ribeirão Preto que achávamos que eram novas e depois a imprensa divulga que eram repintadas, isso cria uma irritação na bancada, para dar um exemplo menor. Ou quando somos confrontados com a questão do desemprego, do salário mínimo, entrando em questões maiores.

Agora, isso não me intranqüiliza porque esta oposição não tem nem autoridade política, nem social, nem histórica para atacar nosso governo. Nossa preocupação é respondermos à sociedade. Então, tenho a tranqüilidade de fazer o enfrentamento com nossos adversários políticos na Câmara, mas a preocupação e nossa cabeça têm de estar voltadas para a sociedade. Nós não podemos perder o debate na Câmara, tampouco nos perdermos para responder a esses ataques.  A melhor atitude da bancada, do PT e do governo é estar em consonância com o povo brasileiro.

Depois de todo fim de semana, quando cada deputado vai para seu estado e ouve os clamores, as críticas, as reivindicações, as sugestões, a bancada volta renovada. Eu acho, portanto, que a bancada pode ser um elemento muito útil para o governo dada nossa capilaridade, porque o deputado não conversa só com os diretórios do PT e com a militância. Isso é importante: a bancada ter contato com todo mundo.

Assim, acho que nesse momento temos de combater o pessimismo. Sinto uma onda de pessimismo no país e penso que devemos combatê-la a partir de ações nossas, muito mais do que com discursos.

Apesar de ser a maior bancada na Câmara, com noventa deputados, ela é minoria no conjunto. Como construir uma maioria governista? Isso depende basicamente do governo ou da ação dentro do Congresso?

Depende das duas coisas, mas depende infinitamente mais do governo. Quem estabelece condições para apoiar ou não o governo são aqueles que no primeiro momento não apoiavam e decidiram fazê-lo, o governo aceita ou não. E, dada a instabilidade a partir da situação econômica do país, é fundamental para os mercados que o governo tenha maioria no Congresso. Cada vez que o governo ganha uma votação apertada, ou até mesmo perde uma votação, como foi o caso da medida provisória dos bingos, isso assusta o mercado porque sempre se vai analisar que o governo não tem controle sobre a situação. Esse é o motivo principal da importância de fazer maioria no Congresso. Independe de uma análise a partir de aspectos políticos e ideológicos. A partir da condução do governo, a necessidade da maioria se impõe. E, portanto, isso faz com que os parlamentares do PT tenham uma visão seguramente diferente, a esse respeito, da que têm outros militantes do PT, que analisam ainda com base num padrão de afinidade política, ideológica, ética etc.

O governo tem de trabalhar duramente para compor a maioria, e isso é uma necessidade. Portanto, estou de acordo com o governo quando ele faz política visando ter maioria. Porque não há alternativa: ou faz maioria, ou fica mais difícil ainda governar. Muito mais difícil. E não falo só dos embates no Congresso, falo do mercado, daqueles que têm dinheiro aplicado no Brasil.

Nesse seu raciocínio, portanto, a bancada do PT nunca poderá votar contra o governo? Ou você admite que haja algum caso?

Parto do pressuposto de que nós não devemos votar contra o governo, mas já houve votos contra o governo minoritariamente. Houve num dado momento da medida provisória referente a planos de saúde, em que a bancada votou contra aquilo que foi acertado entre o governo e a base aliada. Isso foi alertado antes por mim, tanto é que não deu crise, mas aconteceu. E a bancada estava certa. Então, penso que a melhor atitude da bancada é essa compreensão e essa lealdade ao governo, mas acho que o governo tem sempre de levar em conta que a maior, a mais leal, a mais importante bancada é a do PT. Se ela se sentir no direito de se proteger, diante de uma situação de desgaste para o governo e para ela própria, ninguém segura a base aliada. Nem o governo. Nesse sentido, quem é determinante na composição da maioria é a bancada do PT.

Você acha que o governo está dando a devida importância à bancada do PT e ao papel que ela joga?

Do ponto de vista subjetivo, sim. Ou seja, o governo sabe disso. Do ponto de vista das ações, evidentemente não. Exatamente porque a bancada gostaria de ter um protagonismo maior nas definições de algumas políticas. E não tem. Isso é evidente... Qualquer um do governo sabe disso. Mas é a diferença entre compreender e apreender. Acho que o governo ainda não apreendeu isso na plenitude.

Nessa situação, como você vê o papel do PT?

O PT tem mais força que a bancada, institucionalmente falando, e portanto uma de nossas preocupações é estar em sintonia com o partido, e junto com o PT trabalharmos com o governo. Mas eu ousaria dizer que o próprio PT – e é sempre assim quando se ganha um governo no âmbito municipal ou estadual e principalmente no federal – também fica com sua margem de opinião reduzida. A bancada do PT não pode falar o que pensa sobre qualquer assunto sob pena de criar problemas. O PT está na mesma situação.

Você não acha que estamos correndo o risco de repetir a velha experiência histórica dos partidos de esquerda, e que não deu certo, ou seja, quando chega ao governo o partido se transforma numa correia de transmissão do Estado e perde sua autonomia?

Em qualquer cidade onde o PT esteja no governo, inexoravelmente, quando o prefeito fala, aquilo tem mais importância enquanto palavra petista que a do presidente municipal do diretório.

Há o componente do PT, mas há o componente maior da sociedade. Então, corremos o risco? Creio que sim. São outros momentos históricos, mas há essa condicionante externa. Nós já tivemos essa experiência em São Paulo, no PT paulistano, quando Erundina era prefeita. Naquele momento o partido teve uma atitude, digamos, no mínimo de independência do governo. E por parte do governo, na época, muitos diziam que o PT municipal fazia oposição ao governo.

Portanto, nós já temos todo tipo de experiência na relação governo–partido. No âmbito do governo federal seria uma imprudência total o PT ter uma atitude de não-solidariedade. É de fato uma operação política difícil ter lealdade e independência, até porque o partido adquiriu uma característica que eu não acho boa. É difícil fazer uma reunião fechada, hoje, no PT. Sempre alguém dá a notícia para a imprensa. Creio que isso pode não ser um elemento determinante, mas irrita. É difícil fazer uma discussão franca hoje porque tudo vai a público. Isso também tem limitado o debate. Não pode ser diferente, porque senão, em vez de ajudar, nós criamos mais problemas.

Você não acha que esses fenômenos têm a ver com uma perda de solidariedade interna ao partido?

Seguramente. E quando se perde a solidariedade, para além dos defeitos individuais de cada um, isso mostra um descompromisso partidário, porque, quando alguém começa a se sentir maior do que o todo, ou o todo toma medidas, ou o todo confirma que não tem autoridade para fazê-lo.

Acho que há vários assuntos na vida partidária – comunicação, por exemplo – que antes de serem uma questão disciplinar são questões políticas. São temas sobre os quais o PT tem de se debruçar, sob pena de graves prejuízos. Não apenas à sua imagem, o que pode ser conjuntural, mas se nós perdermos valores... E aí eu quero dizer que a bancada tem uma nítida preocupação com a reforma política por causa da burocracia partidária, por causa do financiamento de campanha, porque hoje mudou também a qualidade da disputa dentro do PT pelo fato de muitos militantes estarem profissionalizados. Então, a ocupação dos espaços via recursos materiais, vamos colocar assim, que podem ser mandatos, que podem ser espaços em prefeituras etc., é extremamente perigosa para o PT.

Ricardo de Azevedo é coordenador editorial de Teoria e Debate