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Poucos recursos para investimento têm levado as prefeituras a estabelecer mecanismos para angariar recursos privados para financiar, ainda que parcialmente, grandes obras

A situação econômica de baixo crescimento, a municipalização cada vez mais intensa dos serviços sociais e a correção exponencial das dívidas públicas são obstáculos quase intransponíveis para administradores municipais que buscam conseguir equilíbrio financeiro em sua cidade.

Períodos recessivos caracterizam-se por baixa arrecadação e conseqüente encolhimento de recursos para investimentos. A essa restrição de recursos combina-se, nesses casos, uma ampliação da demanda de serviços e obras por parte da população, que passa a depender mais intensamente dos serviços públicos de moradia, transporte, saúde, educação e lazer.

Essa demanda conjuntural não é a única, no entanto. Na verdade, ela se soma a um aumento natural das demandas estruturais, que reúnem as demandas reprimidas e aquelas decorrentes do crescimento das cidades.

Contrair dívidas ou aumentar a tributação para todos têm sido caminhos quase naturais, quando se pensa em financiar os novos investimentos necessários. No entanto, embora seja inquestionável a necessidade crescente de recursos para investimentos, resta ao governante comprometido com a justiça social descobrir saídas que, na medida do possível, evitem empréstimos e a elevação linear da tributação, o que pesaria de maneira insuportável sobre os mais pobres, historicamente mais prejudicados em períodos recessivos.

Uma das maneiras de evitar essa armadilha injusta, respeitando os limites legais, consiste em aplicar na cidade uma política tributária baseada nos princípios da justiça fiscal: paga mais quem pode pagar mais e pagam pouco ou nada aqueles que só podem pagar menos. Veja-se o exemplo do que foi feito em São Paulo com a cobrança de IPTU e da taxa do lixo.

O governo Marta Suplicy aplicou a progressão na cobrança do IPTU, de maneira que cada cidadão paga esse imposto proporcionalmente a sua capacidade de pagá-lo. O número de isenções totais foi ampliado, até um limite inédito na história da cidade, favorecendo mais de 1 milhão de imóveis. Outros 800 mil imóveis tiveram seu IPTU reduzido. Mesmo assim, a receita total do imposto cresceu de R$ 1,7 bilhão, em 2001, para previstos R$ 2,37 bilhões em 2004, o que representou um valioso fôlego para os combalidos cofres municipais, depois das duas gestões que nos precederam.

A cobrança das taxas de lixo domiciliar e proveniente de serviços de saúde é feita sobre o uso particularizado do serviço, com autodeclaração da faixa de geração de lixo, ou seja, cada um paga proporcionalmente ao que declara utilizar do serviço. Aqueles que alegam não usá-lo pagam o valor mínimo, de pouco mais de R$ 6 mensais.

Tal cobrança buscou não só obter recursos para suprir parte do custeio dos serviços relacionados à coleta, destinação e tratamento do lixo, mas também conscientizar a população sobre a necessidade de reduzir a dispensa de resíduos. Desde o início da cobrança, houve uma redução de perto de 30% da produção de resíduos na cidade, o que comprova o papel educativo e o positivo impacto ambiental dessas taxas.

Outras atuações ao alcance dos governantes para otimizar os recursos são o combate intenso à sonegação, com fiscalização eficiente e aplicação das penalidades devidas, e a ampliação do controle sobre as despesas, pela modernização dos sistemas internos de controle e pelo aumento da participação da sociedade. O controle social do dinheiro público pode ser construído tanto na produção do orçamento, como é o caso dos procedimentos do Orçamento Participativo (OP), quanto no acompanhamento da execução orçamentária, pelo próprio funcionamento do OP e por outras formas acessíveis de publicização das contas.

Obras de infra-estrutura e reurbanização

Essas ações expostas podem efetivamente resultar em mais recursos disponíveis, mas raramente conseguem alcançar o que é necessário para financiar algumas obras complexas e de custo altíssimo, aprovadas no Plano Diretor da cidade. Estamos nos referindo às grandes obras de infra-estrutura e reurbanização, fundamentais para garantir o crescimento ordenado da cidade. São obras pensadas para o longo prazo, para antecipar as soluções dos problemas, em vez de esperar que eles prejudiquem as gerações futuras.

Em geral, essas grandes intervenções urbanas são totalmente financiadas com recursos do Tesouro Municipal ou por meio de empréstimos – que depois viram dívidas. Por lançarem mão dos recursos do orçamento, essas obras absorvem verbas de toda a cidade, mas somente a região em que são realizadas ganha, seja com a valorização dos imóveis, seja com as novas oportunidades de negócios e empreendimentos.

Essa é uma situação duplamente injusta, por deixar as prefeituras sem recursos para atender a demandas de investimentos nos demais bairros da cidade e por favorecer especuladores imobiliários – que têm capital acumulado e vão aproveitar para si, sem nenhum custo ou risco, as oportunidades de negócios criadas com o dinheiro de todos. Essas pessoas lucram muito sem arriscar nada, porque esperam que a obra realizada com dinheiro público crie oportunidades de negócios e só então fazem suas aplicações, com retorno certo e mão única: o próprio bolso.

Se o governante gasta os recursos nas grandes obras para o futuro, não vai ter como financiar outras obras igualmente necessárias e quase sempre muito mais urgentes nas regiões menos atrativas ao capital especulador.

Os poucos recursos para investimento disponíveis às prefeituras têm levado a difíceis escolhas, tal como a de quem tem cobertor curto que descobre o pé, se puxado para cobrir a cabeça. Quando um governante tem de financiar as grandes obras pontuais com o dinheiro de toda a cidade, inevitavelmente é acusado de estar favorecendo a especulação imobiliária. No entanto, não se pode impedir que os interessados apliquem dinheiro nas áreas recém-valorizadas por sua proximidade com grandes obras públicas. Faz parte do jogo do mercado imobiliário.

O que vem sendo feito para disciplinar a questão é estabelecer mecanismos para angariar recursos privados para financiar, ainda que parcialmente, as grandes obras de infra-estrutura, reurbanização e reestruturação dos espaços públicos. Isso é obtido por meio de leis que criam operações urbanas consorciadas, dentro dos limites do Estatuto da Cidade (lei federal de 2001) e do Plano Diretor.

Operação urbana e financiamento privado

Uma lei de Operação Urbana define um espaço geográfico de especial interesse para o desenvolvimento urbano e propõe projetos urbanísticos específicos, além de discriminar as obras a ser realizadas sob coordenação da prefeitura. Pode também modificar, entre outras coisas, a altura máxima para construções nas várias áreas da região e os limites para parcelamento, uso e ocupação do solo e subsolo, devendo considerar sempre o impacto ambiental e social dessas modificações. Por exemplo, uma lei de Operação Urbana pode permitir uma área de construção maior do que a prevista na Lei de Parcelamento, Uso e Ocupação do Solo, desde que em acordo com o Plano Diretor e as diretrizes de preservação ambiental. Se o proprietário de um terreno estiver interessado em construir até o novo limite, por conta da valorização esperada na região a partir das intervenções e obras, a prefeitura lhe concede um direito adicional de potencial construtivo, mediante contrapartida financeira. Essa concessão é conhecida como outorga onerosa. Os recursos angariados são usados estritamente para as obras da operação.

Um exemplo de outorga onerosa, em São Paulo, foi a Operação Urbana da Avenida Faria Lima, de 1995. Depois de aprovada a lei, a prefeitura precisou usar recursos do orçamento para iniciar a operação de prolongamento da avenida em suas duas extremidades, região já muito valorizada da cidade cujo preço do metro quadrado explodiu depois da intervenção e do término das obras previstas. Parte dessa valorização foi repassada aos cofres municipais, pela outorga onerosa, mas não cobriu todos os gastos nem permitiu um projeto sistemático de ampliação dos atendimentos sociais à população que vive em seu entorno. Dessa maneira, o mercado usufruiu desses investimentos públicos sem arriscar nenhum capital e devolveu muito pouco à cidade dos lucros que amealhou com as obras financiadas com o dinheiro de todos.

No caso da Faria Lima, o mercado só se interessou em investir, e pagar a outorga onerosa correspondente, depois que a prefeitura investiu recursos próprios e estabilizou a revitalização da região, com a conseqüente supervalorização imobiliária. Mas, ainda assim, um bom tempo se passou até que fosse angariado, em outorga onerosa, o suficiente para concluir as obras de prolongamento da avenida. Na gestão de Marta Suplicy, finalmente se acumulou o suficiente de recursos para financiar o início das obras das passagens subterrâneas das avenidas Rebouças e Cidade Jardim, sob a Faria Lima.

Pioneirismo de São Paulo no uso dos Cepacs

Outra intervenção importante para São Paulo é a Operação Urbana Água Espraiada, que tem seu custo estimado em mais de R$ 1 bilhão. Diferentemente do modelo inicial da Operação Faria Lima, esta deverá ser integralmente financiada por recursos da iniciativa privada, que tem interesse no desenvolvimento planejado da região e é beneficiária direta da conseqüente valorização imobiliária esperada a partir desses investimentos.

A Prefeitura de São Paulo espera angariar recursos para essa operação com o leilão de Certificados de Potencial Adicional de Construção (Cepacs), novo tipo de parceria de investimento público-privado. A Operação Água Espraiada será a primeira experiência no país de uso dessa nova modalidade. Funcionará assim: cada certificado, no valor de face de R$ 300, concede a seu titular o direito de usufruir do potencial adicional de construção e uso do solo, conforme as especificações da lei. Ou seja, os Cepacs anteciparão a entrada dos recursos da outorga onerosa, seja no aporte de dinheiro para a prefeitura, seja na possibilidade de planejamento de investimento ao capital interessado na região, foco desses investimentos.

O uso desses certificados pelas prefeituras já estava disciplinado desde 2001, pelo Estatuto da Cidade, mas a Prefeitura de São Paulo foi pioneira ao conseguir aprová-los como título mobiliário junto à Comissão de Valores Mobiliários (CVM), em dezembro de 2003. Uma verdadeira engenharia econômico-financeira foi necessária para transformar uma boa idéia em uma prática viável, segura e transparente, atrativa para os investidores e socialmente justa para o conjunto da cidade. O preço final de venda desses papéis, a ser negociados pela Bolsa de Valores de São Paulo, será definido em processo de leilão previsto na lei. O direito de construção expresso no título poderá ser executado a qualquer momento. Por suas características, esses papéis deverão interessar a investidores imobiliários com negócios na região, empresas de construção civil ou qualquer outro investidor.

Só será possível realizar um novo leilão e venda de títulos depois de comprovada a vinculação dos recursos já arrecadados em vendas anteriores. Esses recursos não vão para o Tesouro Municipal, mas ficam depositados em uma conta à parte, sujeita a auditoria externa constante, para garantir que cada centavo arrecadado para determinada operação urbana seja aplicado exclusivamente em sua execução.

Na visão de empresários do setor imobiliário, essa é uma maneira inteligente de angariar fundos para o poder público, porque o conceito é interessante ao propor um crescimento mais ordenado da cidade. Além disso, acreditam que só o fato de os valores obtidos serem aplicados exclusivamente no desenvolvimento urbano daquela região pré-definida já garante a valorização dos títulos, embora seja difícil prever de quanto será. A quantidade de títulos a ser emitidos, previstos na lei, é muito menor que o potencial de construção estimado da área abrangida pela operação urbana, o que garante escassez dos papéis no mercado e, portanto, permite esperar grande potencial de valorização.

Do ponto de vista formal, o papel oferece muita segurança, porque a operação está inteiramente respaldada em lei, segue as regras da CVM e tem a convergência de duas sólidas instituições financeiras: o Banco do Brasil Investimentos (BBI), encarregado da emissão dos títulos, e a Caixa Econômica Federal, que será a instituição fiscalizadora, responsável por verificar se todos os recursos arrecadados foram aplicados na obra, se os trabalhos estão dentro do cronograma etc. Somente com a aprovação da instituição fiscalizadora será possível à prefeitura autorizar novo leilão de Cepacs.

Outro fator de proteção é constituído pelas regras de transparência: a cada três meses a prefeitura deve atualizar as informações sobre as obras, expondo o andamento da operação, os custos realizados, a forma de aplicação dos recursos, a situação atual das áreas em que os Cepacs ainda poderão ser utilizados.

Diferentemente das operações de outorga onerosa, praticamente sem risco para quem as solicita, a aquisição de Cepacs, para uso futuro ou investimento, implica riscos – como, por exemplo, a valorização dos títulos ser afetada negativamente por eventuais mudanças na macroeconomia, além da própria novidade do título, porque ainda não se sabe como será sua liquidez. No entanto, esses riscos são comuns em investimentos de capital, e os Cepacs apenas devolvem ao mercado a parcela de risco negocial que lhe é inerente.

A especulação imobiliária

A venda dos certificados de adicional de potencial construtivo não resolve – nem estimula – a especulação imobiliária, mas é criativo e não impede a aplicação dos mecanismos de controle sobre esse problema, como recomenda o Estatuto da Cidade, com o uso, por exemplo, do IPTU progressivo.

A compra dos Cepacs permite ao setor privado ser parceiro no investimento em áreas da cidade que sejam objeto de operações urbanas e, por isso, terão grande valorização. Permite também, à prefeitura, receber desses investidores privados, de uma só vez, os recursos necessários para executar essa operação urbana e realizar as obras de grande porte previstas, o que garantiria a valorização do preço da terra e, conseqüentemente, aumentaria a procura pelos Cepacs e sua valorização, formando um circuito de grande potencial de ganho para todos. Por outro lado, nessa mecânica, o dinheiro dos impostos fica reservado para investimento da prefeitura nas áreas mais pobres e em serviços e obras de caráter social.

Mais ainda: com esse instrumento, muda a relação do poder público com os investidores privados. Ao oferecer todas as garantias de transparência e controle nas permissões de alteração de área construída, os Cepacs dificultam a relação de compadrio da administração com grandes especuladores, focos de corrupção presentes em muitas cidades. Com isso, outro benefício pode ser alcançado: melhora-se o nível dos parceiros privados dispostos a trabalhar com o poder público. Consegue-se transferir para a sociedade boa parte do lucro a ser alcançado pelos investidores, antes mesmo de o investimento ser realizado, e pode-se prever ações de melhoria e recuperação dos equipamentos públicos na região abrangida pela operação.

Assim, libera-se o caixa municipal para outros processos de intervenção urbana, nas áreas menos atrativas, criando novos focos de desenvolvimento local. Isso pode levar a um círculo virtuoso, de crescimento qualitativo, econômico e ambiental, gerando empregos, melhorando as condições de segurança e diminuindo as diferenças sociais, ainda que, do ponto de vista individual, apenas poucos continuem lucrando com o processo dinâmico de crescimento ou retração da economia... Mas isso não é uma iniciativa municipal que vai resolver!

Luís Carlos Fernandes Afonso é secretário de Finanças e Desenvolvimento Econômico da Prefeitura de São Paulo