Cultura

A lembrança reavivou sua capacidade de reflexão e indignação. Era a energia de uma historiadora, que se emocionava ao relatar os acontecimentos dos quais havia participado e ajudado a escrever.

- É preciso, vamos!

Perguntei se queria ir, mesmo com as dores que sentia. Nem tive como continuar, a fragilidade na voz não disfarçava a determinação da atitude. Apanhou a bengala, apoiou-se no meu braço, levantou-se e repetiu:

– É preciso!

Era 31 de março de 2004, Lélia jamais deixaria de participar de um evento que chamava à lembrança os quarenta anos do golpe militar, seus execráveis legados à história e suas vítimas. Ainda que sentisse dores lancinantes, decorrentes de uma fratura na bacia (ainda não diagnosticada) resultante de uma queda, na madrugada anterior, ela encarou seu comparecimento como uma missão.

Sua memória já não era a mesma, durante aquele dia procuramos lembrar juntos uma série de nomes e fatos, para que ela recompusesse alguns períodos, datas e locais que lhe eram significativos. A lembrança reavivou sua capacidade de reflexão e indignação. Era a energia de uma historiadora, que se emocionava ao relatar os acontecimentos dos quais havia participado e ajudado a escrever.

Durante o trajeto, mesmo com os lapsos de memória naturais da idade, cortando algumas frases, o cérebro batalhava e persistia em levantar reflexões absolutamente lúcidas e persistentes:

– É preciso lembrar..., contar..., a idéia que me dá é de que ninguém entendeu o que houve, os jovens nem têm noção. A impressão é de que são fatos de menor importância, já passaram, acabou. As conseqüências à história do país e as vítimas parecem fazer parte de um passado nebuloso! Os jornais de hoje noticiam o golpe de modo apenas formal, quase asséptico!

Chegamos ao auditório Elis Regina, onde seria realizada a abertura do Fórum Mundial de Educação. Ao ler a faixa que indicava o ato daquela noite, “Lembrar para Aprender”, Lélia mais uma vez surpreende a todos, transformando sua fragilidade em modesta altivez.

– Ainda bem, quanta gente! Parece que ainda temos combatentes e esperança! Vou sentar aqui na platéia, assim vejo melhor os oradores.
Como uma das homenageadas da noite, é conduzida à mesa, mas prefere não fazer uso da palavra. O cansaço era evidente, mas o estoicismo de cumprir a missão era mais forte.

– Vou ficar, é preciso! É o mínimo que eu posso fazer. Quando eu te der um sinal, depois das falas, aí vamos embora!

Os oradores se sucedem, os personagens lembrados, as presenças registradas, e o semblante se revigora quando seu nome é anunciado e ela é ovacionada. Manteve-se em silêncio, mas me segredou depois:

– Imagine, pra que aplausos? Eu não fiz nada! Aqueles que lutaram, sofreram, que morreram..., eles é que devem ser aplaudidos!

O passar do tempo e o rigor do sacrifício físico começam a se manifestar. Faz o sinal combinado, é hora de partir.

No entanto, naquele momento é anunciada a execução da Internacional. Como uma fênix, ela se levanta e ergue o braço... Que figura, que lembrança...

No retorno, conversamos sobre seu próximo compromisso, dia 6 de abril, quando seria homenageada pelo Prêmio Shell de Teatro.

– Espero que seja uma cerimônia simples, não quero ter de usar nada muito sofisticado, não sou de luxos. O que eu espero é estar melhor até lá, quem sabe até tomar um vinho, sem que o médico saiba, hein?!

Não foi possível. Pela manhã Lélia foi internada e constatado que estava com uma fratura na bacia.

No dia seguinte conversamos pelo telefone:

– Estou aqui, com Alcione, as dores são imensas, mas tenho de reagir, vou cobrar do médico alguma explicação! Você vem? Então até já!
Momentos depois, sentiu-se mal, foi levada à UTI e não mais acordou.

Falar sobre este último encontro, esta última missão a que Lélia se dedicou, talvez seja tão significativo quanto falar sobre sua vida. Todos os fatos e exemplos que ela deixou, e são tantos, em tantas áreas, que seria imperdoável esquecer qualquer um deles.

Como todos os privilegiados que compartilharam de seu convívio, levo grandes lições e lembranças, não apenas da amiga, mas daquele ser humano, por isso mesmo cheio de qualidades e imperfeições, mas um esteio. Mulher decidida, forte, às vezes ranzinza, consciente, instigadora e obstinada.

Nenhum adjetivo que eu pudesse modestamente elencar seria tão brilhantemente definido como pelo mestre Antonio Candido, no prefácio do livro de Lélia Vida e Arte:

“O nosso mundo é tão cheio de quebras, capitulações, deserções, omissões e tudo o mais, que conforta (...) uma vida como a de Lélia Abramo, que nunca vergou a espinha, nunca sacrificou a consciência à conveniência e desde muito jovem se opôs à injustiça da sociedade. Que sempre rejeitou as vias sinuosas e preferiu perder empregos, arriscar a segurança, sofrer discriminações para poder dizer a verdade e agir de acordo com os seus pontos de vista. Por isso (...), é lição e exemplo”.

Em tempos como os de hoje, em que a luta pela construção de um mundo mais justo faz com que tenhamos de romper paradigmas, escavar novas trincheiras, olhar sob novos ângulos e quadraturas, nunca é demais lembrar de histórias, coerências, pilares. Vidas importantes como a de Lélia são referências para nos fazer reforçar princípios, manter rumos e alimentar nossa obstinação.

Construir o difícil hoje, com ganas de um amanhã possível sem esquecer as lições do passado. Esse é o legado de Lélia Abramo.

Reconstruir os caminhos, tendo fé em nossa capacidade de sonhar e lutar, para transformar o mundo num lugar mais justo e solidário.
É preciso, vamos!!!

Tadeu Di Pietro, ator, diretor e promotor cultural