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O presidente da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) lamenta a situação de miséria de grande parte da população brasileira e espera do governo federal ações que possam mudar essa condição, entre elas a reforma agrária.

O senhor poderia nos contar um pouco de sua história?
Eu tenho 47 anos de ordenação sacerdotal e quase 26 de ordenação episcopal. Nasci em Juiz de Fora, mas ainda jovem fui para São Paulo, onde fiz meus estudos e minha preparação para a ordenação sacerdotal. Trabalhei como padre em São Paulo, no começo com o cardeal Mota, depois com o cardeal d. Agnello e mais tarde com o cardeal d. Paulo Evaristo Arns. Em 1978 fui feito bispo de Toledo, no Paraná, onde permaneci quatro anos, e em seguida mais nove anos como arcebispo de Londrina. Fui chamado então para Roma, para a Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos, trabalhando diretamente, portanto, com o papa João Paulo II. Há cinco anos fui nomeado arcebispo de Salvador.

Sei que o senhor tem muitas histórias com d. Evaristo Arns, inclusive uma passagem trágica em Santo Domingo, na República Dominicana...
Foi em 1992, quando houve uma assembléia dos bispos da América Latina, em Santo Domingo, e eu trabalhava em Roma. Fui para a assembléia e lá nós sofremos aquele desastre, um choque de carros, e os dois ficaram desacordados. Eu tive uma hemorragia grande, e ele uma parada respiratória. Mas ele foi reanimado, e eu ainda permaneci cinco horas desacordado. Quando acordei estava na UTI de um hospital. Para mim as conseqüências não foram graves. Mas d. Paulo ficou com marcas para o resto da vida. Aquilo atingiu a sua saúde, porque houve uma compressão no cérebro, de modo que até hoje ele se queixa. Bem, eu dizia que quando ele chegou a São Paulo trabalhei diretamente com ele durante cinco anos, como coordenador da Pastoral, e o acompanhava muito em todos os lugares. Depois fiquei como diretor da Faculdade de Teologia Nossa Senhora da Assunção, em São Paulo, de onde saí também como bispo, em 1971. Estou aqui em Salvador desde 1999, e em maio de 2003 fui eleito presidente da CNBB.

A CNBB tem manifestado críticas ao governo. Qual sua opinião sobre o momento atual do Brasil e nossos principais problemas?
Eu começaria dizendo que o povo brasileiro está sempre esperando um tempo melhor. Esperou que houvesse mais educação para todos e de qualidade, esperou saúde, esperou trabalho para uma vida digna, e portanto essa é uma expectativa constante sua há bastante tempo. Nós esperávamos que, depois dos militares, com a vinda da democracia, o povo começasse a ter realmente as atenções voltadas para suas necessidades. E com isso chegamos até o tempo atual, até o governo Lula.

Na sua avaliação, nesse período, da ditadura para cá, não tivemos respostas a essas expectativas...
É que foi um tempo marcado pela grande inflação, que corroía o salário, pela falta de emprego, e tudo isso fez com que a vida se tornasse sempre mais precária. A saúde não melhorou, a educação não melhorou. A dependência externa tornou-se sempre maior, e assim nós temos uma situação em que aumentou a miséria, que é assustadora em proporção, porque um terço da população do Brasil passava fome e continua a passar. Isso vem se acumulando através dos governos e chega até o dia de hoje.

Mas como o senhor vê os primeiros passos do governo Lula? Eles correspondem a sua expectativa?
Lula representava ainda uma esperança maior, porque um operário, que conhece as dificuldades do operariado, e com as promessas feitas levou o povo a ter a esperança de que poderia modificar a situação em tempo relativamente breve. É claro que ele não pode fazer milagres. Se fosse tão fácil fazer milagres, outros já teriam feito. Mas, enfim, dadas as promessas, as expectativas eram maiores.

Fazendo uma comparação entre Brasil e Argentina. A população argentina é de aproximadamente 35 milhões e a imensa população brasileira é de 180 milhões. A Argentina, que não tinha miséria, passou a ter uma miséria proporcionalmente maior que a do Brasil. Se no Brasil chegamos a 29% da população abaixo da linha da pobreza, na Argentina se chegou a 32%. Mas a Argentina, com uma dívida internacional muito grande, conseguiu em pouco tempo uma retomada. Então, por que o Brasil, seguindo quem sabe o caminho dos vizinhos, não pode fazer o mesmo? O fato é que a dívida continua grande, a dependência continua cada vez maior e a dívida social cresce mais – de modo que é uma aflição que sentimos, interpretando o nosso povo sofrido.

De que maneira o senhor colocaria a relação entre a Igreja e o governo Lula?
Há um bom relacionamento, de diá­logo, seja com o próprio presidente, seja com alguns de seus ministros, que nos procuram enquanto CNBB para discutir os temas relativos a cada pasta. Em resumo, é boa a relação, com interlocução.

Em 1º de maio de 2003, o presidente esteve conosco na assembléia dos bispos em Itaici. Tivemos um jantar e depois mantivemos um encontro de cerca de duas horas, de sorte que ouvimos suas palavras, alguns bispos colocaram questões que foram respondidas, algumas por ele próprio, outras pelos ministros presentes.

E quais foram as questões?
As mais variadas, sobre educação, saúde, segurança, reforma agrária, as terras indígenas, o desemprego, enfim, pelo menos dez bispos provocaram as questões. Ele falou com todos.

Quais as reais possibilidades de a participação popular influir nos rumos do governo?
Desde 1999, a CNBB primeiro trabalhou para fazer uma lei contra a corrupção eleitoral. Graças a uma articulação que colheu mais de 1 milhão de assinaturas, aprovamos uma lei nesse sentido. Muito importante, porque a corrupção ainda é muito grande e nem o governo atual pode se eximir de ser afetado por tentativas de corrupção. Depois, gostaríamos que o governo ouvisse mais o povo, através de conselhos, não aqueles impostos em âmbito municipal pelos prefeitos, mas realmente com conselheiros que pudessem manifestar suas necessidades. Diria ainda que o governo deveria ser mais corajoso em impor, junto aos credores, condições de atendimento às urgências de nosso povo. Recursos que não podem ser desviados do orçamento da saúde, da educação e da promoção de trabalho para todos e com justa remuneração. Também esse salário mínimo é um arremedo. O que representam hoje R$ 260? Não chegam nem a US$ 100, um dos salários mais baixos do mundo. Então, que o governo tivesse mais coragem para se impor. Se a Argentina teve coragem, por que nós não?

Uma coisa é o que se cobra corretamente do governo, outra coisa é como anda a articulação real do povo, a participação popular, não apenas como gesto positivo de apoio ao governo, mas como participação, organização própria...
O povo está começando, só que muitas vezes o povo se sente desanimado por não ver instâncias em que realmente possa participar. A consciência da cidadania está crescendo, ainda que infelizmente a política na hora de eleição procure manipular o voto do povo de todas as maneiras.

Há um ajuizamento da CNBB quanto às propostas da política econômica e a área social?
Nós estamos esperando. O governo está trabalhando para sanear a economia, mas ainda não mostrou realmente modificações na área social. Miséria é miséria. Quem está com fome está com fome. Quem não tem oportunidade de ir à escola continua sem ir, e não adianta ficar discutindo se isso é uma questão que compete ao município ou ao Estado. A verdade é que nem Estado nem município parecem ter condições de fazer alguma coisa.

Mas há uma determinação constitucional que o governo federal cumpre, e os recursos é que às vezes não chegam às finalidades...
Então, o governo federal tem a obrigação de controlar, fiscalizar e penalizar o que não for correto na aplicação. Tem havido alguma reforma agrária, mas precisa ser mais estimulada, porque é preciso também colocar os meios para que o homem possa produzir, competir. Outro ponto em que o governo precisa ser também mais positivo é na questão indígena. Tem homologação de terras que nunca sai – há quanto tempo, só porque os lobbies são fortes?

O senhor está falando da Serra da Raposa? É uma situação séria, há briga de uma parte dos índios que são contra a demarcação...
Mas é claro que há. Aqueles que querem comprar as terras dos índios sabem muito bem comprar índios, levá-los a práticas que são dos brancos que foram para lá. Fiquei surpreso ao ver aldeias com pequenas vendas com distribuição de cachaça, na Serra da Raposa. É claro que há uma ação organizada para que os povos indígenas se percam, se desmoralizem, porque assim se faz tudo o que se quiser. Há pequenas ofertas para corromper indígenas. Mas já surgiu entre os índios uma consciência para a comunidade. Então, nós lutamos pela homologação das terras, e até agora nada. Estive na Serra da Raposa e conversei com cinco caciques. Pude ver que os gananciosos que querem as terras dos índios fazem de tudo, usam a força mesmo. Por que não se faz a homologação das terras indígenas de Roraima, onde até hoje não foram reconhecidos os direitos dos índios à terra? Acho que o governo precisa ter também mais coragem de apontar esses lobbies. Estou falando do governo, mas teria de se falar ainda do Legislativo e do Judiciário. Claro que louvo os esforços do governo para fazer as reformas da Previdência, do Judiciário. Mas não temos teorias, regras para ditar. O que queremos é que se alcancem objetivos, que se reconheçam os direitos, que se faça política séria, honesta no trato da coisa pública, que não haja corrupção, para que então haja segurança pública.

E a questão da reforma agrária, das ocupações. Parece-me que o senhor se manifestou sobre a importância da ocupação da terra.
Em primeiro lugar, quero dizer que violência não vai resolver problema nenhum. Nem por parte dos fazendeiros, nem por parte dos que reivindicam a terra. Deve haver um esforço maior de pôr em prática o que o próprio governo tinha prometido, um projeto de reforma agrária. Então queremos ver isso o quanto antes posto em prática.

Existe um canal de diálogo entre o governo e a Igreja de modo sistemático ou há contatos apenas esparsos?
Sempre há. Em certos momentos nós escrevemos, fazemos chegar ao governo nossas ponderações, e o governo nos acolhe sempre com muita afabilidade e também manda ao nosso encontro ministros para a manutenção de um diálogo constante.

Li um documento distribuído entre os bispos que criticava um pouco as alianças políticas que o governo fez. Falava de interesses diversos dentro do governo...
Não é isso, são documentos de consultoria, nós temos em todas as nossas reuniões, seja nas nossas assembléias, seja no conselho permanente, que se reúne três vezes ao ano, com representações de cada região da CNBB, assim como da comissão episcopal de pastoral, que tem reuniões mensais em Brasília. Nós temos sempre uma parte de estudo, de análise da conjuntura. Nessa análise, ouvimos professores de economia, de sociologia. Muitas vezes, o que eles expressam pode ser o que pensamos, mas não expressam nossa posição, não falamos por meio deles, embora até divulguemos tais textos.

A Igreja Católica, não como instituição, mas por muitos de seus fiéis, contribuiu decisivamente para o surgimento, crescimento e desenvolvimento do Partido dos Trabalhadores. Hoje a Igreja tem alguma disposição de ajudar neste governo do PT?
Bom, realmente a Igreja de fato ajudou, principalmente no período da repressão, em que os partidos não tinham liberdade de reunião. Naquela época a Igreja acobertou, protegeu, deu espaço ao PT para que se organizasse. A partir do momento em que veio a liberdade, o PT foi para sua sede e seguiu seu caminho. Não nos arrependemos disso, de maneira que estamos sempre prontos a dar nossa colaboração, não técnica, mas com avaliação ética sobre o funcionamento da política.

Qual o significado dessas próximas eleições municipais? Como a Igreja reflete essa importância?
Acho de muita importância. Talvez mais importante, sobre certo aspecto, que a federal. O povo se interessa mais pela política local que a da alta esfera. O governo central deve estar bem atento para que na instância municipal não ocorram práticas de corrupção, para que sejam observadas as regras. O governo deve trabalhar para não deixar que a demagogia prevaleça.

Se pudesse dar um conselho para o governo Lula se diferenciar de seus antecessores, que conselho daria?
Estou sempre pensando na miséria. Que o governo não se esqueça. A minha base é a educação e o trabalho. Se não houver educação também não vamos ter trabalho para todos. Às vezes, com esse progresso econômico, sobretudo hoje com a atual tecnologia, temos muitos trabalhadores desqualificados. Há muito pouco trabalho para a mão-de-obra desqualificada. Daí educação e trabalho serem fundamentais, o resto vem depois, como a saúde, por exemplo.

Emiliano José é deputado estadual (PT-BA), membro do Conselho de Redação de Teoria e Debate