Sociedade

Pesquisa mostra que o preconceito de cor persiste no Brasil como atitude majoritária e é tão generalizado quanto não assumido

Pesquisa nacional realizada pelo Núcleo de Opinião Pública (NOP) da Fundação Perseu Abramo (FPA), em parceria com a Fundação Rosa de Luxemburg1, com o objetivo de investigar a extensão do preconceito de cor e a percepção da discriminação racial no país, mostra que, a despeito da melhoria de alguns indicadores, o preconceito de cor persiste como atitude majoritária e a percepção da discriminação racial institucional está aquém dos seus efeitos objetivos sobre as oportunidades e condições de vida da população brasileira não-branca. Tal situação, de um preconceito tão generalizado quanto não assumido, e de razoável descompasso entre a realidade e a consciência da discriminação racial vigente, constitui um claro desafio a demandar de entidades e movimentos de combate ao racismo, bem como dos que atuam a partir do poder público – a exemplo da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, criada pelo governo Lula –, a construção e implementação de políticas públicas diversificadas e abrangentes para o enfrentamento da questão.

Queda do preconceito: real ou retórica?

Por meio de uma amostra de 5.003 entrevistas, representativa do conjunto da população brasileira com 16 anos ou mais (quadro metodologia), o NOP aferiu, em setembro de 2003, que quase a totalidade da população (90%) reconhece que há racismo no Brasil (para 50% há muito racismo, para 40% um pouco), acredita que os brancos têm preconceito de cor, sobretudo em relação aos negros (89%; para 50% têm muito, para 35% um pouco), mas também em relação aos índios (53%; para 21% muito, para 29% um pouco), e que os negros também têm preconceito de cor em relação aos brancos (62%; para 24% muito, para 35% um pouco). Ou seja, a maioria reconhece que racismo e preconceito de cor são fenômenos reais e presentes no Brasil de hoje.

Indagados diretamente, no entanto, a despeito do amplo reconhecimento do problema, maiorias ainda mais absolutas negam sua contribuição: 96% dizem não ter preconceito de cor contra negros (95% dos brancos, 96% dos pardos e 97% dos indígenas2, 97% dizem não ter preconceito de cor contra brancos (97% dos de cor preta, 97% dos pardos e 95% dos indígenas2) e 96% dizem não ter preconceito de cor contra índios (95% dos brancos, 96% dos pardos e 97% dos de cor preta). Seja por temor ou desconforto com o estigma de ser preconceituosa, seja pela dificuldade de encarar o próprio preconceito, o fato é que a maioria das pessoas considera ser este um problema “dos outros”, projetando o preconceito de cor e o racismo para o conjunto da sociedade.

Metodologia

- Amostra probabilística (sorteio de municípios, setores censitários e domicílios) combinada com controle de cotas de sexo e idade na seleção dos indivíduos: 5.003 entrevistas, representativas da população brasileira adulta (16 anos ou mais).

- Dispersão geográfica: 266 municípios de pequeno, médio e grande portes), distribuídos em 834 setores censitários, urbanos e rurais, nas cinco macrorregiões do país (Norte, Centro-Oeste, Nordeste, Sudeste e Sul).

- Aplicação de questionário estruturado (198 perguntas, parcialmente distribuídas em três sub-amostras com média de 1.660 entrevistas cada uma), em abordagens pessoais e domiciliares com a aproximadamente 60 minutos de duração.

Como não se esperava que os entrevistados assumissem abertamente seus preconceitos, o questionário trazia doze questões voltadas para a aferição indireta de preconceito de cor: uma bateria de sete frases, em sua maioria propositadamente preconceituosas, presentes na linguagem cotidiana da população, para as quais se mediram graus de concordância e discordância; uma pergunta sobre a crença na diferença de inteligência entre negros e brancos; outra sobre a disposição a votar e o retrospecto de voto em políticos negros; e finalmente três enunciados hipotéticos sobre ser chefiado(a) no trabalho por pessoa de outra raça/cor, ter vizinhança predominante de famílias de outra raça/cor e um filho ou filha casar com pessoa de outra raça/cor, indagando-se sobre a aceitação ou reação às situações descritas.

Essas doze variáveis compõem um algoritmo construído em 1995, pelo Instituto de Pesquisas Datafolha3, para aferir a manifestação indireta de preconceito de cor (veja abaixo a pontuação das respostas e a fórmula de cálculo do grau de preconceito), e sua reaplicação teve como fim medir a evolução desse indicador de preconceito no período que separa as duas investigações. No levantamento atual, três em cada quatro brasileiros (75%) manifestaram algum grau de preconceito. Isolando-se a população urbana (89%), para efeito de comparação com o estudo do Datafolha, a taxa encontrada hoje foi de 74%, contra 87% que manifestaram preconceito de cor, em algum grau, oito anos antes, segundo a mesma escala. Não só a não manifestação de preconceito teria dobrado nesse período (de 13% para 26%) como subiu a taxa de preconceito leve (de 36% para 50%), caindo as do preconceito forte (de 4% para 1%) e a do médio (de 47% para 23%).

Aparentemente, portanto, caminhou-se em uma direção positiva – tendência observada também em relação à pergunta direta: se hoje apenas 4% dos brasileiros de cor não-preta assumem ter preconceito contra negros, em 1995 essa taxa era de 10%. A questão de fundo, no entanto, está em saber se a queda desses índices reflete uma mudança real de atitude das pessoas ou se apenas mostra mais atenção para o discurso “politicamente correto”.

O mais provável é que as duas hipóteses estejam certas. De um lado, temos um quarto da população brasileira representada na pesquisa do NOP que não estava no levantamento de oito anos atrás, ou seja, o contingente que tem hoje de 16 a 24 anos. E é exatamente nesse contingente que o preconceito de cor é menor, quando analisamos suas manifestações direta e indireta, de acordo com a faixa etária: a assunção do preconceito contra negros varia de 3% entre os mais jovens (16 e 17 anos) a 6% entre os mais velhos (60 anos ou mais), e a manifestação indireta também cresce conforme aumenta a idade, indo de 75% (16 a 24 anos) a 84% (60 anos ou mais).

De novo se poderia argüir que esse segmento jovem seria mais sensível ao discurso politicamente correto, mas também é plausível supor que essa queda seja a expressão de uma mudança efetiva de atitude entre os mais jovens, fruto de fatores diversos. Por um lado, houve mudanças na imagem dos negros na mídia: seja por força do movimento negro e da militância de diferentes atores sociais no combate ao racismo, seja porque o “mercado” começou a se dar conta do potencial de consumo de camadas médias da população afro-descendente, dirigindo produtos e campanhas publicitárias a esse segmento, a partir de meados dos anos 90 passou-se a ver não só maior presença de negros na mídia (ainda bastante deficitária, mas crescente) como, o que até então era inédito, negros representando papéis sociais e personagens não subalternos – fato que teria contribuído tanto para sua auto-estima quanto para a valorização geral de sua imagem.

Por outro lado, uma intervenção persistente do movimento negro conseguiu, junto com o movimento de mulheres, a revisão das diretrizes educacionais do MEC, a partir de 1995, aprovando os novos Parâmetros e Referenciais Curriculares Nacionais (PCNs). Estes passaram a explicitar que os livros didáticos não podem trazer conteúdos preconceituosos, submetendo-os ao crivo de pareceristas comprometidos, para coibir manifestações diretas de preconceitos de cor e de discriminações racial e de gênero no material didático – mudanças que potencialmente atingiram justamente o segmento jovem que hoje manifesta menos preconceito de cor.

Também é verdade que a crítica e o debate sobre o racismo aumentaram nos últimos anos, contribuindo para a divulgação de uma retórica politicamente correta. Mas, mesmo que o sujeito de um discurso não-preconceituoso não partilhe efetivamente dos valores que enuncia, o simples fato de se ver compelido a coibir suas convicções preconceituosas é um avanço. Primeiro como expressão de uma sociedade que está mais atenta para essa questão, fazendo com que as pessoas preconceituosas se sintam acuadas. E, sobretudo, porque, para se reproduzir socialmente, o preconceito precisa se manifestar tanto nos espaços privados, como a família, quanto nos espaços públicos – no trabalho, na escola, na imprensa etc. –, e, se há um cerco social contrário à manifestação desse tipo de preconceito, ele se reproduzirá em menor escala.

Há ainda uma terceira leitura possível para a queda observada nos indicadores de preconceito de cor: a de que o preconceito esteja mudando de feição, buscando subterfúgios ainda mais sutis, e que não teria ocorrido, sob essa ótica, uma mudança real de atitude, apenas de comportamento – a escala de preconceito utilizada na pesquisa é que seria insuficiente para captá-lo. Pode ser, mas essa hipótese antes combina do que exclui as anteriores. Pode-se dizer, sem risco de incoerência, que houve uma mudança real de valores e atitudes em parte da população, ao mesmo tempo em que outra parte mudou apenas de discurso, e ainda admitir que uma terceira parcela da população esteja manifestando seu preconceito de outra forma, que escapa aos instrumentos usados para captá-lo.

De modo análogo à mudança de discurso, essa outra mudança de comportamento também deve ser vista positivamente. Pois, ainda que haja um grupo em que o preconceito possa não ter diminuído nada, se ele precisa ser mais camuflado do que era antes ratifica-se, primeiro, a idéia de que a crítica social ao preconceito racial cresceu; e, segundo, sendo mais sutis as novas formas em que estaria se manifestando, também sua reprodução social se faz, em tese, mais difícil. Claro que, admitida essa hipótese, sobra o desafio metodológico de desenvolvermos novos instrumentos, que sejam sensíveis a eventuais novas formas de expressão do preconceito de cor.

Também é verdade que a crítica e o debate sobre o racismo aumentaram nos últimos anos, contribuindo para a divulgação de uma retórica politicamente correta. Mas, mesmo que o sujeito de um discurso não-preconceituoso não partilhe efetivamente dos valores que enuncia, o simples fato de se ver compelido a coibir suas convicções preconceituosas é um avanço. Primeiro como expressão de uma sociedade que está mais atenta para essa questão, fazendo com que as pessoas preconceituosas se sintam acuadas. E, sobretudo, porque, para se reproduzir socialmente, o preconceito precisa se manifestar tanto nos espaços privados, como a família, quanto nos espaços públicos – no trabalho, na escola, na imprensa etc. –, e, se há um cerco social contrário à manifestação desse tipo de preconceito, ele se reproduzirá em menor escala.

Há ainda uma terceira leitura possível para a queda observada nos indicadores de preconceito de cor: a de que o preconceito esteja mudando de feição, buscando subterfúgios ainda mais sutis, e que não teria ocorrido, sob essa ótica, uma mudança real de atitude, apenas de comportamento – a escala de preconceito utilizada na pesquisa é que seria insuficiente para captá-lo. Pode ser, mas essa hipótese antes combina do que exclui as anteriores. Pode-se dizer, sem risco de incoerência, que houve uma mudança real de valores e atitudes em parte da população, ao mesmo tempo em que outra parte mudou apenas de discurso, e ainda admitir que uma terceira parcela da população esteja manifestando seu preconceito de outra forma, que escapa aos instrumentos usados para captá-lo.

De modo análogo à mudança de discurso, essa outra mudança de comportamento também deve ser vista positivamente. Pois, ainda que haja um grupo em que o preconceito possa não ter diminuído nada, se ele precisa ser mais camuflado do que era antes ratifica-se, primeiro, a idéia de que a crítica social ao preconceito racial cresceu; e, segundo, sendo mais sutis as novas formas em que estaria se manifestando, também sua reprodução social se faz, em tese, mais difícil. Claro que, admitida essa hipótese, sobra o desafio metodológico de desenvolvermos novos instrumentos, que sejam sensíveis a eventuais novas formas de expressão do preconceito de cor.

Reconhecimento ou negação?

Mesmo admitida a queda dos indicadores direto e indireto do preconceito de cor, o principal dado é que se trata ainda de um índice muito alto (74% com algum grau de preconceito), sendo que a própria discrepância entre essa taxa e a dos que assumem ser preconceituosos (4%) aponta para outro agravante: a negação do problema, ou a projeção do problema para os outros. O fenômeno da negação aparece ainda em outros resultados obtidos. Antes de falar em racismo ou discriminação, perguntou-se aos entrevistados de cores branca, preta e parda se ser branco(a) ou ser negro(a) no Brasil é a mesma coisa ou é diferente – e para os que se classificaram como indígenas formulou-se a pergunta entre ser branco(a) ou ser índio(a): na média nacional prevaleceu por pequena margem (54% a 44%) a noção de que tanto faz ser branco(a) ou negro(a) – ou índio(a).

É bem verdade que essa média é puxada pelos brancos (60% acham que é a mesma coisa, apenas 38% reconhecem que é diferente ser branco ou negro no Brasil), mas mesmo entre os não-brancos as opiniões se dividem (49% a 49%) – expressão de uma crença no mito da democracia racial que não condiz com as desigualdades de oportunidades para os diferentes grupos de raça/cor, aferidas através de indicadores objetivos, por exemplo, de acesso à renda e à educação, e sistematicamente reafirmadas por estudos do IBGE, do Dieese e do Ipea, entre outros órgãos. Mais que isso, esta pesquisa revela que se entre os indígenas (38% a 60%) e os que se classificaram como de cor preta (41% a 55%) prevalece a percepção de que, comparativamente aos brancos, os não-brancos enfrentam condições desiguais, entre os pardos a maioria afirma que não há diferenças entre ser branco ou negro (54% a 45%), reproduzindo a visão predominante dos brancos.

Essa mesma tendência pode ser observada na percepção do racismo. Os 90% de brasileiros que admitem sua existência no país se distribuem entre 50% que avaliam que existe muito e 40% que acham que existe um pouco de racismo no Brasil. Essas taxas são idênticas para os brancos, mas o contraste na avaliação da intensidade do racismo aumenta entre os que se classificaram como indígenas (53% a 39%) e sobretudo entre os da cor preta (56% a 36%). Já entre os pardos o contraste se atenua: para 47% há muito racismo, para 41% um pouco. Ora, não há dúvida que diante do preconceito de cor a discriminação racial no Brasil é tanto maior quanto mais escura a pele do cidadão. Ocorre que esta pesquisa confirma o que tem sido reiterado por outros estudos: em termos de condições de vida, a despeito de sua percepção, os pardos estão mais próximos dos de cor preta que dos brancos.

Isso fica claro observando-se dados sociodemográficos como taxas de escolarização, participação no mercado de trabalho remunerado, renda individual e familiar. Para uma média de 61% da população brasileira que não ultrapassou o ensino fundamental, encontrou-se com essa escolaridade “apenas” 57% dos brancos, contra 68% dos de cor preta e 66% dos pardos e indígenas. Na outra ponta, para os 9%, em média, que chegaram a ingressar em um curso superior, entre os brancos essa taxa atinge 13%, contra 5% entre os da cor preta e 7% entre os pardos (2% entre os indígenas).

Em parte como conseqüência do acesso desigual ao sistema educacional, observam-se diferenças correspondentes no mercado de trabalho, particularmente na qualidade da inserção dos diferentes segmentos de raça/cor e nos indicadores de renda. Se, em setembro de 2003, 64% dos(as) brasileiros(as) participavam da População Economicamente Ativa (PEA), sendo 26% no mercado formal, 26% no informal e 12% desempregados, entre os brancos se encontrou a maioria no mercado formal (30% a 24%) e constatou-se a menor taxa de desemprego (10%); entre os de cor preta, equilíbrio na distribuição entre formal e informal (27% a 26%) e 15% desempregados; entre os pardos, 12% desempregados, mas prevalência do informal sobre o formal (29% a 23%), e situação ainda mais precária entre os indígenas (33% no informal, apenas 18% no formal e 15% desempregados).

No mês que antecedeu as entrevistas, a renda individual média da população brasileira que trabalhava era de R$ 573,23 por mês. Mas a renda média dos brancos atingia R$ 644,46 – 20% superior à dos pardos (R$ 537,82), 27% superior à dos de cor preta (R$ 506,48) e 74% superior à dos indígenas (R$ 370,29). Semelhantes desigualdades se observam quanto à renda familiar: enquanto 40% da população brasileira sobrevivia, em setembro passado, com renda familiar de até 2 salários mínimos (SM), entre os brancos “apenas” um terço (30%) possuía esse rendimento, contra 47% dos negros (cores parda e preta) e mais da metade dos indígenas (52%). No outro extremo, na faixa acima de 5 SM, onde estava apenas 16% da população brasileira, os brancos chegavam a 21%, contra apenas 12% dos pardos, 10% dos de cor preta e indígenas.

Em suma, a relativa negação da força social do racismo, por parte dos pardos, não corresponde aos efeitos dele em sua vida, revelando, antes, dificuldades para a assunção de sua identidade racial ambígua. Se os brancos tendem a minimizar a intensidade do racismo vigente e a negar a desigualdade de oportunidades, como que buscando afastar de si a co-responsabilidade pela reprodução social da discriminação racial, os pardos parecem assimilar essa perspectiva do olhar branco dominante, como que buscando afastar de si a própria realidade discriminatória em que estão inseridos.

Alguns indicadores de percepção de discriminação racial institucional investigados apontam na mesma direção. A partir dos seminários de planejamento da pesquisa (que contaram com a valiosa participação de mais de trinta representantes de entidades de combate ao racismo), assumiu-se que ainda mais importante do que medir o avanço ou o retrocesso do preconceito de cor – no limite, um problema do âmbito da sociabilidade interpessoal – está a questão da discriminação racial por parte dos sistemas institucionais, uma vez que a exclusão ou o tratamento desigual de parte da população brasileira nas instituições e espaços públicos viola direitos civis e sociais, garantidos pela Constituição4.

Para cercar essa questão, primeiro perguntou-se aos entrevistados se alguma vez já tinham se sentido discriminados por causa de sua cor ou raça. Sem o estímulo ou lembrança de qualquer contexto potencialmente discriminatório por parte dos entrevistadores, 13% dos respondentes, na média nacional, disseram que já tinham sido discriminados ao menos uma vez. Mas essa taxa (espontânea) variou de 7% para a população branca a 30% entre os da cor preta, sendo de 12% para os pardos e de 19% para os indígenas. Observa-se, portanto, que a discriminação racial é percebida cerca de quatro vezes mais pelos de cor preta que pelos brancos, e que os pardos a percebem em um patamar semelhante a estes.

A seguir foram feitas perguntas estimuladas sobre a experiência de discriminação racial em cinco diferentes espaços sociais: na escola, no local de trabalho, no relacionamento com a polícia, nos atendimentos da saúde e em espaços de lazer. As respostas positivas à vivência de discriminação em uma ou mais dessas situações, combinadas com a declaração espontânea, compuseram, então, um índice de percepção de discriminação, constatando-se que 22% da população brasileira já sofreu discriminação racial (e a percebeu como tal), em pelo menos uma dessas diferentes instituições, ou na relação com seus agentes. Novamente entre os brancos se encontra o índice mais baixo (16%), entre os pardos uma taxa próxima (19%), entre os indígenas a taxa intermediária (28%) e entre os de cor preta o índice mais elevado (43%), chegando a quase metade desse segmento populacional e a cerca do triplo do declarado pelos brancos.

Dos cinco espaços institucionais investigados, o mercado de trabalho (8%), a escola (7%) e a relação com a polícia (6%) obtiveram as taxas mais altas de discriminação percebida, sendo a declaração de que foram discriminados, por parte dos entrevistados de cor preta, sempre em torno de três a quatro vezes superior à dos brancos; e a dos pardos sempre mais próxima à dos brancos. Os equipamentos ou agentes da saúde (3%) e os espaços de lazer (3%) ficaram com as menores taxas, embora a taxa entre os de cor branca seja de seis a oito vezes inferior à dos de cor preta.

A despeito do contraste entre os grupos de raça/cor, à primeira vista trata-se de taxas relativamente baixas, sugerindo que estaríamos diante de um problema menor que o suposto. Mas aqui cabem duas ressalvas: primeiro, o fato de que em todos os espaços só poderia ter se sentido discriminado(a) quem teve a oportunidade de freqüentá-los (exceção, em parte, para a relação com a polícia), o que significa que, computada a exclusão absoluta, as taxas de discriminação certamente são maiores que as encontradas. (Muitas vezes as exclusões são “auto-impostas”, como quando se evita freqüentar locais, sobretudo de lazer, sabendo-se de antemão que a recepção será negativa.) Segundo, o fato de que se trata de taxas de percepção do problema – uma medida subjetiva, portanto, dependente de consciências críticas –, e não de aferições objetivas de sua extensão. Os movimentos de emancipação (mulheres, negros, homossexuais etc.) sabem das dificuldades da passagem de uma perspectiva moral heterônoma, de uma visão de mundo conformista – através da qual se tende a ver com naturalidade relações cotidianas de opressão –, para um estado de consciência autônoma, quando se percebe a historicidade dessas relações – e portanto a possibilidade de transformá-las.

Ações afirmativas

Outras questões investigadas contribuem para configurar os desafios postos aos militantes do combate ao racismo, dentro e fora do poder público: em sua maioria (60%) os brasileiros consideram-se apenas mais ou menos informados sobre a existência de leis que punem atos de discriminação racial e manifestações de preconceito de cor – a despeito de a lei Afonso Arinos ter sido sancionada há mais de meio século (1951)–; 29% declaram nem sequer saber que elas existem (34% dos pardos, 23% dos de cor preta) e apenas 10% avaliam estar bem informados a esse respeito (8% e 12%, respectivamente). Para 49% o racismo e a discriminação racial são problemas que as pessoas têm de resolver entre elas, sem interferência do governo; apenas 36% reconhecem que combater o racismo é uma obrigação dos governos, taxa que sobe para 38% entre os indígenas e para 43% entre os de cor preta (34% entre os pardos).

Indagados sobre o principal responsável pelo fato de a população negra ainda viver em condições piores que a população branca, passados mais de cem anos do fim da escravidão, 47% apontam o preconceito e a discriminação que existem dos brancos contra os negros, 21% avaliam que são os negros que não aproveitam as oportunidades que têm para melhorar de vida e 22% indicam as duas alternativas (taxas que pouco variam de um grupo racial para outro), ratificando, à primeira vista, a idéia de que o problema é antes da esfera privada – ou pior, de comportamento dos próprios negros – do que uma questão social a demandar políticas públicas.

No entanto, a mesma formulação da questão (aplicada a uma subamostra diferente), mas permitindo uma terceira resposta, indica que há receptividade para a intervenção governamental, ou mesmo expectativa de que ela ocorra: estimulada a idéia de que a desigualdade entre brancos e negros se deve à falta de políticas públicas com oportunidades para os negros melhorarem de vida, 46% optam por essa alternativa (44% dos brancos e dos pardos, 54% dos de cor preta), caindo para 32% os que responsabilizam a discriminação dos brancos contra os negros e para 15% os que acreditam que os próprios negros são os principais responsáveis por sua situação de inferioridade na escala social.

A expectativa (moderada) de que os governos intervenham no processo de promoção da igualdade racial é reafirmada em outros resultados: apenas 22% da população (24% dos de cor preta) acredita que o governo Fernando Henrique Cardoso tenha se preocupado (para 19% um pouco, somente para 4% muito) em diminuir a desigualdade entre negros e brancos no Brasil (37% não soube avaliar); porém mais de um terço (36% do total, 39% dos de cor preta) acreditava, já em setembro passado, que o governo Lula está preocupado com a questão (para 13% muito, para 23% um pouco; 34% não soube responder).

Isso reafirma a oportunidade para o debate sobre as ações afirmativas, hoje na ordem do dia, sobretudo na forma de políticas de cotas, introduzidas em algumas instituições de ensino superior e órgãos públicos. Oscilações e aparentes contradições nas respostas ao tema das cotas, em parte ao sabor da formulação das perguntas, parecem justamente expressar a ebulição do processo de formação de opiniões em curso. Assim, diante de uma primeira pergunta, reproduzindo formulação utilizada na pesquisa Datafolha, de 1995, na qual se falava, simultaneamente, na reserva de vagas nas universidades e no trabalho, observa-se um crescimento da favorabilidade às cotas: da divisão das opiniões, observada há oito anos (48% a favor e 49% contra), passou-se para um apoio majoritário: 59% a favor (68% entre os de cor preta, antes 55%), 36% contra (39% entre os brancos, antes 46%).

No entanto, quando a pergunta se restringe à reserva de vagas nas universidades, e oferece outras alternativas, o apoio a cotas para estudantes oriundos das escolas públicas, independentemente da cor ou raça, prevalece (59% a 14%) em relação à reserva de vagas para estudantes negros (22% se opõem a qualquer tipo de cota) – com taxas praticamente idênticas em todos os grupos raciais. Ainda que a alternativa escolhida pela maioria também seja focal (para estudante de família com menor renda) e contemple assim, de alguma forma, maior participação de negros nas universidades, é algo diferente de haver cotas específicas para eles. A preferência por alternativas universalistas fica mais evidente diante de outra questão: a maioria avalia que para diminuir a desigualdade entre brancos e negros que chegam às universidades é preferível melhorar a escola pública, dando mais oportunidades a todos (53%), ou abrir mais vagas nas faculdades para diminuir a concorrência (24%), do que oferecer cursos pré-vestibulares gratuitos para estudantes negros (13%) ou reservar parte das vagas para estudantes negros (7% do total, 9% entre os de cor preta).

Por sua vez, quando a pergunta se refere a cotas no campo do trabalho, por um lado, 52% são a favor da reserva de vagas para negros nas empresas e serviços públicos (56% entre os de cor preta) e 40% são contra (45% dos brancos). Por outro, a maioria avalia que para combater a discriminação e a desigualdade racial no mercado de trabalho a prioridade do governo deve ser a criação de mais empregos dando mais oportunidades a todos, negros ou não (57%), antes que outras propostas focalistas, como cursos, créditos, descontos fiscais e cotas para a inclusão de negros.

É interessante notar que as razões espontaneamente declaradas pelos que defendem e pelos que rejeitam a política de cotas envolvem, na maioria das vezes, o valor da igualdade. Grosso modo, os que defendem as cotas as vêem como alternativa para enfrentar as desigualdades de oportunidades entre brancos e negros. E os que argumentam em contrário também utilizam o valor da igualdade, afirmando que, por sermos iguais, todos devem ter os mesmos direitos e os negros não devem ser tratados de forma diferente.

Quem é favorável às cotas reconhece que o ponto de partida para brancos e negros permaneceu muito desigual na nossa sociedade e, portanto, essa diferença não vai se corrigir com políticas genéricas e universalistas como as que vigoram desde a abolição da escravidão. De fato, mais de um século de igualdade formal não garantiu que chegássemos sequer a 5% de negros nas universidades, ou em postos de poder político e econômico, sendo que os afro-descendentes representam cerca de metade da população. É partindo da constatação dessa desigualdade real de oportunidades que se propõem as políticas de cotas, entre outras ações afirmativas – uma discriminação positiva e temporária, a favor dos negros –, como forma de promover a aceleração da redução das desigualdades raciais.

O fato de que por trás dos argumentos, a favor e contra as cotas, esteja o valor comum da igualdade torna a discussão mais complexa, onde nem tudo é preto no branco; mas também torna mais factível o alcance de um consenso, na medida em que um e outro lado, em sua maioria, partilham de um mesmo campo de valores. Afinal, se o debate fosse entre defensores e opositores da igualdade racial, então, sim, não haveria espaço para o diálogo. Se a meta comum é a igualdade de direitos e oportunidades para negros e brancos, a divergência parece estar “apenas” em como atingi-la.

Gustavo Venturi é cientista político, coordenador do NOP e diretor da Criterium Assessoria em Pesquisas.

Vilma Bokany é analista do NOP.