Sociedade

Livro de memórias e pesquisa acadêmica reexaminam papel dos marinheiros no golpe de 64

Trajetória Rebelde, de Pedro Viegas. Cortez Editora, 280 páginas, 2004.

Vozes do MarO Movimento dos Marinheiros e o Golpe de 64, de Flávio Luís Rodrigues. Cortez Editora, 208 páginas, 2004.

No turbilhão de acontecimentos que desembocou no golpe de 1964, poucos episódios terão sido tão dramáticos quanto o cerco militar a centenas de marinheiros e fuzileiros navais reunidos para comemorar o segundo aniversário de sua associação (AMFN) na sede do antigo Sindicato dos Metalúrgicos da Guanabara, que se arrastou angustiantemente entre os dias 25 e 27 de março de 1964.

A celebração fora levada a cabo desrespeitando proibição expressa do Comando da Marinha, que se negava a reconhecer a legitimidade da associação. A solução dada ao impasse pelo governo Goulart – que incluía a anistia aos amotinados – foi tomada como prova de que ele estaria instigando ou ao menos sendo conivente com a quebra de hierarquia, que já assombrava as Forças Armadas desde a revolta dos sargentos, ocorrida em setembro do ano anterior em Brasília. Segundo diversos relatos, isso teria precipitado a adesão de oficiais até então legalistas ao movimento golpista em curso.

Dali em diante, graves suspeitas foram levantadas em relação a esse movimento, que, atingindo um ponto particularmente sensível do espírito de corpo militar, foi visto por muitos como estopim do golpe de 1964. A posterior trajetória do então presidente da AMFN, o marinheiro de primeira classe José Anselmo dos Santos (que entraria para a História erroneamente identificado como “cabo Anselmo”), contribuiu para fortalecer a hipótese de que a revolta teria sido obra de provocadores, sendo apontado até o possível envolvimento da CIA, a odiada agência de inteligência norte-americana.

Anselmo, como é bem sabido, viria a aderir à Vanguarda Popular Revolucionária (VPR) – que tinha como um e seus dirigentes o também ex-militar Carlos Lamarca. Segundo seu próprio testemunho, o “cabo”, após ser preso pela equipe do delegado Fleury – notório carrasco da polícia política paulista –, teria negociado a preservação de sua vida pela delação e atuação como agente duplo. Isso viria a custar a vida de diversos militantes, incluindo-se aí sua companheira, Soledad, grávida de sete meses.

É fácil, portanto, compreender por que a “revolta dos marinheiros” se tornou uma página maldita na história da esquerda brasileira. Infelizmente, parece que a repugnância causada pela figura de Anselmo contribuiu para que a interpretação do episódio, um dos divisores de águas entre as diversas abordagens sobre as causas do golpe, tenha até o momento se baseado mais nas deduções decorrentes de esquemas explicativos mais gerais que nos resultados de pesquisa empírica.

Duas publicações recentes – Vozes do Mar, de Flávio Luís Rodrigues, e Trajetória Rebelde, de Pedro Viegas – lançam importantes luzes para a compreensão da relação da AMFN com a efervescência social que marcava a sociedade brasileira no início dos anos 60 e de sua complexa inserção nos acontecimentos políticos do período.

Rodrigues concentra seus esforços na compreensão da experiência social dos marinheiros e no processo de construção da associação, porta-voz de reivindicações que o próprio almirantado era obrigado a reconhecer como razoáveis. Uma dessas demandas, por exemplo, era a supressão do regulamento que estabelecia que apenas após três anos de “graduação ou classe” e dez anos de serviço era o marinheiro autorizado a se casar. Como registram os documentos e publicações da associação, seus pleitos eram por cidadania, o que incluía o fim da humilhação sistemática sofrida pelos marujos. Jovens oficiais – originários os segmentos mais reacionários das elites brasileiras – compraziam-se em encerrar a folga de um subordinado mandando-o de volta aos navios por “desalinho”, sabendo que ele não tinha a bordo mais do que um saco pendurado a uma viga para guardar suas roupas. Mais de cinqüenta anos após a revolta de João Cândido, a "chibata moral” continuava em ação.

A pesquisa realizada por Rodrigues, rica e diversificada, inclui um amplo leque de fontes documentais – com destaque para a documentação reservada da própria Marinha – e um conjunto bastante expressivo de depoimentos de participantes da AMFN. Com base nela, o autor demonstra convincentemente a fragilidade da nunca comprovada hipótese de que Anselmo, na ocasião da revolta, fosse já um agente provocador. Ao contrário, Rodrigues coincide com Viegas ao apontar o papel secundário do então presidente – escolhido por sua excelente performance como “relações públicas” – na condução política da associação, que passaria muito mais pelo primeiro e pelo segundo vice-presidentes, respectivamente Marco Antônio da Silva Lima e Avelino Capitani. Ao pretender desqualificar a AMFN como a “associação do cabo Anselmo”, defende o autor, a visão predominante na historiografia limitou consideravelmente a capacidade de análise sobre as complexidades e contradições que essa experiência expressava.

Já o testemunho de Viegas – elaborado com uma capacidade de reconstituição de detalhes prodigiosa e pleno domínio da técnica narrativa – tanto oferece uma preciosa visão de dentro sobre a associação e a revolta quanto resgata a peculiar trajetória posterior de seus protagonistas, geralmente às margens das principais organizações clandestinas da esquerda brasileira.

Ex-marinheiro que teve seu curso de jornalismo interrompido pela condenação à prisão – em função de um artigo publicado no periódico da associação, Tribuna do Mar –, o autor desempenhou ativo papel na articulação do pequeno e sugestivamente batizado MAR (Movimento de Ação Revolucionária) e na condução de sua mais espetacular ação: a fuga da Penitenciária Lemos de Brito em 1969.

A publicação de duas obras de natureza tão distinta (um livro de memórias e um trabalho acadêmico), mas ao mesmo tempo tão complementares que uma indica a outra em sua folha de rosto, oferece uma oportunidade singular para o reexame não apenas de seu objeto específico, mas também de questões mais profundas por detrás dele. Condenar os derrotados e responsabilizá-los pelos “desvios” da História é procedimento de praxe do pensamento conservador reproduzido de inúmeras formas pela esquerda, acadêmica ou não. As contradições da realidade, entretanto, permanecem. É sabido que compactuar com a quebra de disciplina nas Forças Armadas é abrir caminho para o rompimento da institucionalidade democrática, tão arduamente reconquistada e ampliada. Mas poder-se-á efetivamente falar em democracia quando a vida de instituições vitais continua a ser regida pela negação de direitos fundamentais da cidadania seus subalternos? Mais ainda, quando esse modelo legitima a reprodução do exercício cotidiano do arbítrio em tantos outros espaços da vida social? Por essas e por outras, os livros de Rodrigues e Viegas, mais do que recontar uma experiência com o devido respeito por aqueles que a viveram, dão o que pensar.

Alexandre Fortes é historiador, coordenador do Centro Sérgio Buarque de Holanda de documentação e Memória Política da FPA