Clima político em franca degradação favoreceu a formação de missão de paz da ONU no Haiti
Clima político em franca degradação favoreceu a formação de missão de paz da ONU no Haiti
Em 29 de fevereiro de 2004, o Conselho de Segurança da ONU, respondendo à solicitação do presidente Boniface Alexandre, recentemente instalado no lugar de Jean Bertrand Aristide, destituído, autorizava, pela Resolução 1559, o envio ao Haiti de uma força multinacional interina.
Pela mesma resolução, o conselho instituía a substituição, a partir de 1o de junho, dessa força por uma missão internacional de estabilização, cujo mandato e cuja duração seriam definidos posteriormente, num prazo de sessenta dias. A resolução recebia o apoio unânime dos membros do conselho, reunidos sob a presidência da República Popular da China, que, de maneira inusitada, deu seu aval, no seio do Conselho de Segurança, a uma intervenção direta de tropas estrangeiras num Estado membro.
A medida referente ao Haiti tomava assim um caráter especial, já que não correspondia a uma situação clássica capaz de provocar tal ação – embora houvesse sido precedida por uma extensão publicitária em que as TVs do mundo inteiro mostravam imagens pouco usuais de violência repressiva e de ações armadas, particularmente em Gonaives, que faziam temer a guerra civil ou um verdadeiro genocídio. Além disso, ocorria num marco de crise política de longa duração e de uma situação em que, pela segunda vez em dez anos, as Nações Unidas deveriam intervir não para conduzir à paz – já que não se tratava de uma situação de guerra –, mas para garantir a segurança e as condições de funcionamento democrático num Estado membro.
Tratando-se de um país da América Latina e, ainda, de uma velha república independente, essa intervenção não deixa de chamar a atenção dos analistas para suas causas profundas. Sobretudo quando esse dossiê correspondia à OEA, que tinha como tarefa, desde a Cúpula das Américas em Quebec em 2001, dar prosseguimento ao contencioso entre a oposição política e o governo do Haiti. Sobretudo quando o país, neste ano trágico, celebrava seus 200 anos como nação independente.
Crise do Estado
A decisão adotada pelo organismo internacional parecia corresponder ao reconhecimento do “direito de ingerência” preconizado há alguns anos por algumas nações como apropriado para situações excepcionais de crise e de incapacidade do Estado de assumir o poder ou de enfrentar um conflito agudo. Correspondia ao que parecia ser uma situação suscetível de desembocar no caos ou em uma guerra civil virtual. As imagens de vários grupos armados, difundidas em escala internacional, levaram a imprensa ao Haiti para “contemplar” as cenas da “Armada canibal” e outros espetáculos de sangue.
No plano diplomático, a ONU havia sido suficientemente informada pelos antecedentes desse verdadeiro colapso para não se sentir envolvida. Efetivamente, em 1994, havia intervindo no Haiti para substituir as forças dos Estados Unidos, de aproximadamente 20 mil homens, que haviam desembarcado na missão de “restauração da democracia” patrocinada diretamente pelo presidente norte-americano Bill Clinton. As tropas ficaram por volta de dois anos, e desde a crise eleitoral de 2000 – conseqüência das eleições fraudulentas que instalaram uma legislatura e o próprio Aristide no poder – a OEA e, mais recentemente, a Caricom têm sido parte integrante das negociações e outras intervenções visando normalizar o panorama político. Essas e outras instituições mantinham o secretariado-geral informado das violações dos direitos humanos pelo regime de Porto Príncipe, das dificuldades na busca de um compromisso entre o poder e a oposição e da deterioração da situação em termos de governabilidade, de respeito às regras do Estado de Direito e do agravamento das condições de vida econômica e social da população.
Assim, a degradação acelerada do clima político, no final de 2003, com manifestações populares maciças e a irrupção de certos grupos armados, acabou por favorecer a argumentação de alguns Estados membros, particularmente a França, em prol da eventual participação da ONU em uma missão humanitária ou de manutenção da paz no Haiti. Efetivamente, a violência desatada pelos chimères, homens dos mafiosos a serviço de Aristide, punha na ordem do dia a questão do “direito de ingerência”. Os assassinatos e execuções de toda sorte, em um cenário de aumento da miséria, se referiam ao conceito de “população em perigo”, incitando à ação internacional. Tal decisão emanava da sistemática destruição das instituições que alcançou sua expressão mais significativa com o desmembramento da polícia nacional, totalmente avassalada ou desmoralizada. O Estado se mostrou incapaz de assumir as responsabilidades e exigências da ordem democrática.
O Conselho de Segurança da ONU podia referir-se às ameaças que tal situação implicava para as vidas e os bens no Haiti e para a “segurança da região”. Sobretudo porque um clima de fim de reinado nascia da combinação de eventos importantes: a crescente mobilização da população (partidos políticos, sociedade civil, estudantes etc.) pedindo a saída de Aristide, a presença inesperada de grupos armados no norte do país e na região limítrofe com a República Dominicana, as críticas acerbas da imprensa, o próprio questionamento da legitimidade do governo por certas instâncias internacionais. A população, em um clima excepcionalmente tenso e frente a ameaças e perigos criados pelas próprias condições da queda do bárbaro regime, que pôs em marcha um plano de represálias, teve de assistir, entre alívio, humilhações e indignações, à chegada das tropas estrangeiras que restabeleceriam a ordem.
Tal cenário não era de modo algum uma novidade. Efetivamente, em 1915, diante da violência e do caos que imperavam no Haiti, a infantaria dos Marines dos Estados Unidos havia desembarcado em Porto Príncipe, e o saldo da intervenção foram dezenove anos de ocupação. Tratava-se de “restabelecer a ordem democrática” no Haiti. Isso, em um contexto regional de expansionismo e ingerência. Cinqüenta anos depois, em 1965, em um contexto regional de democratização generalizada e em um ambiente marcado por um regime de força instaurado pelos militares, as tropas dos Estados Unidos, com o patrocínio das Nações Unidas, haviam intervindo com o objetivo de “restaurar a democracia”.
Dez anos mais tarde, o intervencionismo toma a forma de uma ação internacional contra o Estado mafioso, gerador de terrorismo e de anarquia, que ameaçava realizar um banho de sangue sobre uma população pacífica.
Em continuidade, se projeta como fator permanente a vigilância da grande potência sempre atenta e pronta a corrigir qualquer desordem na sua vizinhança. Na ocasião, no entanto, tal preocupação era compartilhada com a França, que, além de qualquer atitude competitiva, manifestava uma clara coincidência de interesses. No fundo, tal coincidência parecia corresponder a um imperativo da globalização. Dado que o Haiti, devido a seu atraso econômico e social, assim como ao arcaísmo de seu sistema político, constituía uma sorte de “dissidência histórica e geográfica” insuportável, segundo a lógica dessa globalização, recursos adequados deveriam ser mobilizados para incorporá-la na normalização dos mercados, da força de trabalho, dos modos de vida e dos valores contemporâneos.
Tal continuidade se refere em definitivo à crise do Estado haitiano, que, durante o último século, não pôde lograr a adequação de sua estrutura, seu funcionamento, seus métodos e seus resultados, às exigências do mundo moderno. No terreno político, econômico, social e cultural, o Estado haitiano parece prolongar, até o dia de hoje, o século 19 latino-americano, marcado pela autocracia, o regime forte que fecha os olhos às exigências das maiorias, em termos de democracia, de justiça, de progresso e de desenvolvimento. Esse Estado, expressão de uma oligarquia precária (de militares, de homens de negócios ou de políticos), apesar das influências de modernismo provenientes do exterior sob a forma de capital ou de modelo, não conseguiu dirigir a sociedade nem estimular as forças motrizes suscetíveis de assegurar seu avanço. Sem legitimidade, sem representação real dos produtores ou dos trabalhadores, sem credibilidade entre os cidadãos, o Estado se mantém débil em sua função de organização da sociedade e forte enquanto opressor, funcionando sobre uma base de extorsões e de violência.
Esse déficit do Estado, de maneira repetitiva, provoca pulsações em meio às categorias sociais mais avançadas de uma oposição ilustrada, mas sem chegar a reverter o vapor e gerar uma direção política que possa impulsionar a democracia, o desenvolvimento e o progresso. Daí, um bloqueio contínuo, um embaraço interminável, uma transição que não acaba. Tal crise de direção, ou, melhor dito, tal crise de hegemonia, não podendo ser resolvida num desenlace violento de relação de forças ou de compromisso, conduz uns e outros à tentação de buscar o apoio de forças estrangeiras para equilibrar e reverter a situação que a dinâmica das forças locais não permite resolver.
Questionamento do poder pessoal
Jean Bertrand Aristide surgiu na cena política em 1990 como líder de grande popularidade, sobretudo em meio aos despossuídos. A revanche dos setores conservadores haitianos tomou a forma de um golpe de Estado. Democraticamente eleito, foi alijado do palácio durante três anos, nos quais viveu em Washington preparando seu regresso, realizado sob os auspícios dos Estados Unidos e da ONU.
Dez anos depois, em 2004, sua popularidade e as mudanças que anunciava se evaporaram. Mas, por outro lado, soube usar todos os atributos da democracia para instaurar um poder antidemocrático baseado no assassinato político, na corrupção, no narcotráfico, na utilização de velhos métodos de mentira, de violência, de simulação e de intimidação.
Tal realidade foi-se impondo cada vez mais ao povo, sobretudo a partir das eleições do ano 2000, que, organizadas de maneira ilegal, suscitaram uma crise pós-eleitoral sem fim... Esta, depois de mais de três anos de questionamento, de resistência e de combate democrático, comportou, em última instância, a derrocada de Aristide.
De fato, regressando do exílio com um amplo apoio da população e sustentação ilimitada da comunidade internacional, o ex-padre de St-Jean Bosco mostrou sua impotência em fazer bom uso dos imensos recursos de que podia dispor. Efetivamente, a comunidade internacional havia ofertado uma soma de aproximadamente US$ 2 bilhões, em empréstimos e doações. Esse montante esperava que os projetos apropriados para ser posto à disposição do governo e da população. A má gestão comprometeu essa possibilidade de recuperar a economia e de garantir o êxito de um projeto que havia suscitado tanta esperança nos meios populares. Ao mesmo tempo, no plano político, em vez de se abrir e atrair outras categorias sociais, o regime retomou sua linha demagógica e populista, recorrendo mais e mais à força.
A continuidade desse poder havia sido assumida por René Préval, que o sucedeu, jogando plenamente no papel de marionete. Cumprindo à risca os desígnios de seu tutor, continuou sua política de violação dos direitos humanos, de nepotismo, e todo um jogo maquiavélico destinado a garantir-lhe o regresso.
O repúdio a esse reino anarcopopulista começou a manifestar-se nesse período (1995-2000). Provinha da Organização do Povo em Luta (OPL), representando a ramificação mais bem organizada do movimento que havia apoiado Aristide. Sua representação parlamentária, com maioria relativa na Câmara dos Deputados (35 de 83) e no Senado (nove de 27), impôs ao duo presidencial Aristide-Préval um primeiro-ministro da oposição, Rosny Smarth. Este teve todas as penas do mundo para funcionar no marco previsto pela Constituição, vendo-se constantemente fustigado pelas jogadas do Executivo presidencial e das “organizações populares”, manipuladas nos corredores do palácio.
O Parlamento empreendeu a freada das violações da ordem republicana e outros desvios próprios do poder absoluto e populista pelo qual começava a funcionar o presidencialismo, respaldando a impunidade e os abusos permanentes contra os cidadãos.
Já nesse nível, as exigências da OPL em favor da institucionalização, da modernidade, do respeito à lei e à Constituição configuravam todo um pólo de atração para o conjunto da população. A capacidade de convocação, de mobilização, e a própria credibilidade do poder caíam. A propaganda governamental se esforçou então em atribuir as ações da oposição às influências provenientes do antigo regime duvalierista ou de setores do exterior.
Em abril de 1997 abortou-se uma tentativa do presidente Préval de impor sua vontade durante as eleições parciais para o Senado, no qual a oposição tinha todas as chances de reforçar sua maioria. As denúncias da OPL contra esse comportamento antidemocrático surtiram efeito, exigindo respeito às regras do jogo, alimentando um vasto movimento reivindicativo dos setores populares, cada vez mais desconfiados e críticos frente às promessas não cumpridas pelo poder. Esses setores, no entanto, freados, intimidados, confundidos pelos métodos do populismo, tardavam a expressar em ações autônomas ou propriamente de apoio a uma oposição então perseguida e caluniada.
Apesar de tudo, a tenacidade dessa oposição, a demissão do primeiro-ministro Smarth e a impossibilidade técnica e política de substituí-lo suscitaram apoio em todo o país, assim como as ações dos parlamentares e outros setores da imprensa e de instituições civis, em favor do respeito ao Estado de Direito. Tal situação levou o presidente Préval a dissolver o Parlamento em dezembro 1998, demonstrando assim a incapacidade de seu regime de poder pessoal coexistir com um Parlamento independente. Mostrou assim mesmo sua negativa em aplicar de fato os prescritos da Constituição, prevendo o funcionamento de um Executivo bicéfalo conforme as necessidades do pluralismo.