No Instituto Cidadania desenvolveu-se o mais abrangente programa de estudos e discussões já realizado no país com vistas a uma política nacional de juventude
No Instituto Cidadania desenvolveu-se o mais abrangente programa de estudos e discussões já realizado no país com vistas a uma política nacional de juventude
Há fortes evidências de que, em seu tortuoso processo de afirmação da democracia, o Brasil tenha finalmente chegado, em 2004, ao ponto de acúmulo que permite abordar a temática juventude com nítido salto de qualidade.
O mérito por esse patamar novo deve ser atribuído a inúmeros atores sociais: demandas diversificadas dos próprios movimentos de juventude; trabalho perseverante de organizações - nacionais e internacionais - que se dedicam a essa área; iniciativas de gestão pública introduzidas em determinadas esferas do Estado a partir dos anos 1990; reflexões e pesquisas desenvolvidas por uma legião de estudiosos voltados ao terna. Muitos outros responsáveis poderiam ser citados.
Regina Novaes, uma dessas pesquisadoras reconhecidas, gosta de falar numa sucessão de temas da vez. Nas últimas décadas, observou-se a emergência das questões da mulher, da luta do negro, dos novos sujeitos históricos, dos direitos da criança. Teria chegado a hora da juventude.
Com efeito, já nos anos 1970, o desafio político central contido no enfrentamento do regime militar envolvia um largo feixe de eixos. Núcleos densos como o exercício do voto, liberdade de organização partidária e garantia de direitos sindicais eram os alvos estratégicos das mobilizações na sociedade civil. Mas estas também miravam outras metas essenciais na configuração da democracia, corno a igualdade nas relações de gênero e a superação da herança maldita do sistema escravista, materializada na opressão racial.
Nas duas décadas seguintes, algumas vezes em evolução simultânea, o país foi descobrindo ou reforçando novas agendas transformadoras nesse itinerário de construção democrática: responsabilidade social perante o meio ambiente, reforma agrária, direitos das crianças, diversidade sexual, combate à corrupção e exigências da ética na política, diga-se de passagem, bandeira a ser retomada com extrema urgência. E se poderia lembrar várias outras pautas direcionadas, amplo senso, à extensão dos direitos de cidadania.
Nessa seqüência histórica, vêm crescendo nos últimos anos, em vigor e ritmo, o interesse, os estudos, os debates, as iniciativas e as mobilizações envolvendo um contingente especial de brasileiros, que soma 34 milhões de pessoas, conforme o recorte das Nações Unidas arbitrando a faixa entre 15 e 24 anos para demarcar a juventude. Especial porque marcado por contraditórios aspectos de singularidade e diversidade, e também porque nele se concentram potencial e energias que o Brasil ainda não soube liberar.
O Projeto Juventude
No Instituto Cidadania, ainda antes de Lula se tomar presidente da República, existia a intenção de abordar esse assunto com profundidade e consistência, à semelhança do que fora feito com os temas moradia, segurança pública e segurança alimentar (Fome Zero), contribuindo para promover a questão ao status de tema político de primeira grandeza. Eleito, ao se desvincular do centro de elaboração política que fundou e coordenou desde 1990, Lula recomendou que fosse esse o próximo alvo central de trabalho do instituto. A orientação foi cumprida com resultados bastante promissores.
De junho de 2003 a agosto de 2004, desenvolveu-se o mais abrangente e dinâmico programa de estudos e discussões já realizado no Brasil com vistas a propor e fundamentar a necessidade de uma verdadeira política nacional de juventude, que se inscreva como marco entre as mudanças estruturais que a sociedade brasileira, por meio do voto, encomendou a Lula e ao PT em 2002.
Batizado como Projeto Juventude, esse trabalho incluiu a realização da mais extensa pesquisa nacional quantitativa já feita sobre o assunto, envolvendo 3.500 entrevistas domiciliares em todo o território nacional, com mais de 150 questões. Desdobrou-se em estudos de pesquisa qualitativa e envolveu também dez seminários em diferentes estados, vinte oficinas e encontros para discutir aspectos específicos da condição juvenil, além de um seminário internacional com representantes de dezessete países.
Num cômputo geral, quase 4 mil pessoas foram incorporadas diretamente nesse debate nacional, incluindo pelo menos 106 entidades, movimentos e ONGs da sociedade civil, cerca de setenta representantes de órgãos gestores relacionados com a juventude - de ministros a coordenadores municipais -, dezenas de parlamentares dos três níveis federados e 32 especialistas do meio universitário ou de organismos das Nações Unidas como a Unesco e o Pnud.
Além disso, por meio de um site que chegou a receber 10 mil visitas mensais, promoveram-se debates e consultas interativas, organizando-se também um acervo documental (Base de Dados) que cataloga perto de mil títulos sobre a juventude, entre teses acadêmicas, livros, artigos, pesquisas e textos legais.
Processo rico
Os números são expressivos, mas ainda não descrevem a riqueza maior do processo. Do primeiro brainstorm, em junho de 2003, ao momento de entrega dos resultados ao presidente Lula, um ano depois, a constatação de controvérsias em cada esquina do trajeto, bem como da complexidade e pluralidade inerentes ao tema, em vez de afastar os divergentes atores sociais envolvidos no trabalho, serviu como ímã de atração mútua na busca de um campo de consenso amplo, que se mostrou viável sem anular os distintos enfoques filosóficos, políticos ou ideológicos.
Nas mesas de planejamento do programa e em todos os painéis de debate, seguiu-se a metodologia que o Instituto Cidadania vem aperfeiçoando há anos,de reunir, confrontar opiniões e conceber sínteses entre pontas opostas do espectro econômico e social brasileiro. No Projeto Juventude estiveram, lado a lado, em conflituosa convivência democrática, a CUT, o MST e a UNE, além de militantes e representantes oficiais de partidos de esquerda como o PT e o PCdoB.
Mas com idêntica capacidade de argumentar e influir, igualmente interessados no diálogo e na elaboração conjunta, compareceram também ONGs de extração empresarial, siglas tradicionais como Sesc, Sebrae e CIEE e lideranças políticas pertencentes ao campo atual de oposição ao governo Lula. Sem falar da ampla rede de movimentos inovadores e mais recentes de participação juvenil com acento na vida cultural, como o hip-hop ou o afroreggae. Acordo entre todos: é possível buscar sinergia e atuação unificada em torno de um determinado conjunto de formulações.
No começo, o silêncio de alguns convidados mal escondia suas naturais desconfianças. Afinal de contas, não são rotineiros os procedimentos em que segmentos afastados na simbologia direita-esquerda se sentam à mesma mesa e coordenam, juntos, um programa extenso de discussão e elaboração. Mais precisamente, não havia ninguém realmente de direita no programa, mas estavam representadas, de fato, entidades e siglas que são vetores de posicionamentos, metodologias e culturas políticas muito diversificadas.
Quais as desconfianças implícitas? Jogada do PT para envolver movimentos, empresas, gestores públicos de juventude e ONGs no fortalecimento de interesses partidários; armação de uma corrente do PT contra outras; falsa consulta pluralista para no final afunilar como conclusão um script previamente formulado; invasão pelo Instituto Cidadania de um campo de trabalho já meritoriamente ocupado por outras instituições. E muitas mais.
As controvérsias
Logo na primeira reunião para consultar duas dezenas de atores coletivos sobre a viabilidade da idéia de iniciar o Projeto Juventude, Weber Lopes Góes, do Núcleo Cultural Força Ativa, Zona Leste de São Paulo, jogou na mesa uma preocupação central: em qual juventude se estava pensando? Na pequena minoria que a UNE representa, que estuda na universidade? Ou na juventude que está na periferia pobre das grandes cidades? Os dirigentes da UNE presentes contra-argumentaram, também de maneira convincente, discorrendo sobre o papel histórico da entidade. Mas, em síntese, já estava recolocada ali, pela enésima vez, uma dúvida dos que trabalham esse tema no Brasil há muitos anos: políticas universais de juventude, ou políticas de juventude assentadas nos recortes de renda? É cabível falar em juventude brasileira ou melhor usar o plural, juventudes?
Numa reunião seguinte, ainda na fase de formulação genérica do que deveria ser o projeto, o cara-pintada Lindbergh Farias, deputado federal agora eleito prefeito de Nova Iguaçu, introduziu com forte ênfase a necessidade de sugerir ao Brasil a convocação civilista da juventude para campanhas militantes de combate à fome e erradicação do analfabetismo, aproveitando o momento especial vivido pelo país com o governo Lula.
Em contraponto, foram expostas imediatamente as ressalvas de especialistas e militantes da área, condenando certa tradição da esquerda de olhar a juventude unicamente como depositária de um potencial revolucionário a serviço da pátria, ao mesmo tempo em que se descuida de compreendê-la como sujeito portador de direitos não reconhecidos pelo Estado e pela sociedade.
Depois chegaram as primeiras preocupações de entidades diretamente ligadas à defesa dos direitos da criança: lançar agora uma agenda nacional voltada à juventude não resultaria em retirar recursos e atenção de um segmento tão fundamental como é a infância no Brasil? A resposta foi rápida: não poderia haver concorrência entre as duas questões. Simplesmente, tratava-se de assegurar à juventude espaços de discussão e políticas públicas correspondentes ao que o tema criança já vem assegurando por força de lutas vitoriosas como aquelas que resultaram na conquista do Estatuto da Criança e do Adolescente.
As polêmicas se multiplicavam. Qual o papel das ONGs nisso tudo? Não pretenderiam elas ocupar atribuições próprias do Estado, como parte de um maquiavélico plano neoliberal para torná-lo mínimo? E que história era essa de responsabilidade social das empresas, propagandeada por um dos importantes interlocutores no Projeto Juventude, o Instituto Ethos? Não seria mais uma artimanha sofisticada para reforçar mecanismos de multiplicação dos lucros privados?
Aos poucos, ficou satisfatoriamente concertado entre os que assumiram o desafio pluralista contido no Projeto Juventude que dúzias de controvérsias como essa podiam e deviam ser debatidas amplamente nos meses seguintes, mas aceitou-se a aposta de que seria possível firmar um consenso básico apontando as linhas gerais de um novo - talvez o primeiro - encontro histórico da Nação brasileira com sua juventude.
O que foi produzido
O produto final do Projeto Juventude, de fácil acesso direto por meio do site www.projetojuventude.org.br, distribuiu-se por várias publicações, destacando-se com síntese o chamado Documento de Conclusão, de 120 páginas, que teve uma versão inicial para debate e complementações, e depois uma edição consolidada, da qual se extraiu também um resumo para divulgação maciça.
Enquanto o Documento de Conclusão está vazado no padrão próprio das propostas de políticas públicas, que evita digressões teóricas ou polêmicas conceituais, vários outros volumes do chamado produto final cumprem tal finalidade a contento.
Assim, a Editora Fundação Perseu Abramo já lançou o primeiro de três livros a serem distribuídos pelas livrarias do país, Juventude e Sociedade - Trabalho, Educação, Cultura e Participação, reunindo treze ensaios de estudiosos convidados a discorrer sobre diferentes facetas do caleidoscópico assunto.
Está no prelo um segundo livro, a ser lançado no Fórum Social Mundial de 2005, em Porto Alegre, no qual outro time de especialistas se debruça na leitura e interpretação do gigantesco conjunto de dados colhidos na pesquisa quantitativa nacional, enfocando separadamente os resultados sobre educação, trabalho e renda, desigualdades regionais e raciais, violência, cultura, religião e vários outros.
Completando a trilogia de livros, terá prefácio de Marilena Chaui a sistematização editada das mais de cem narrativas sobre participação juvenil colhidas em todos os estados brasileiros durante o Projeto Juventude. Jovens quilombolas, militantes do MST, ativistas estudantis, índios, trabalhadores metalúrgicos, torcedores organizados de futebol, egressos de sentenças socio-educacionais, participantes do chamado empreendedorismo jovem, dezenas de outros retratos das juventudes brasileiras são compostos a partir de relatos sobre como se iniciaram as diferentes modalidades de participação, o que elas representaram na vida de cada um, qual sua importância e seus objetivos sociais.
Para divulgação mais limitada, direcionada especialmente a centros de estudo, universidades, gestores públicos de juventude e entidades de maior abrangência nacional, preparou-se uma encadernação completa - restrita porque de elevado custo financeiro - contendo o registro extraído de fitas gravadas de todos os seminários e oficinas, bem como das plenárias em que quarenta ou cinqüenta representantes das siglas já referidas discutiram quinzenalmente todos os passos do Projeto Juventude.
Essa mesma coleção traz o volumoso conjunto de tabelas, mais de seiscentas, produzidas na pesquisa quantitativa nacional, o relatório das pesquisas qualitativas, a cópia de todo o material veiculado pelo site e o catálogo organizado da documentação que foi recolhida como Base de Dados.
Depois de apresentado ao presidente da República, o trabalho já foi entregue, em mãos, aos governadores de Minas Gerais, Goiás, Espírito Santo e Mato Grosso do Sul, aos presidentes do Senado e da Câmara dos Deputados, à Comissão de Políticas de Juventude dessa Casa, a vários prefeitos e aos membros do Diretório Nacional do PT. Em sua versão inicial, o Documento de Conclusão foi enviado às prefeituras de 1.096 municípios, à direção da CUT e aos principais sindicatos, a cerca de duzentas entidades e ONGs, a 247 grandes empresas, a todos os integrantes do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social e a 838 endereços petistas, entre parlamentares e diretórios.