Sociedade

A produtividade científica, isto é, a quantificação do trabalho científico pelo número de publicações feitas pelos pesquisadores, não serve à ciência e não pode corresponder ao anseio contemporâneo de avaliar a atividade universitária

A universidade e os cientistas têm de produzir, esse é o lema com o qual o capitalismo contemporâneo absorve a atividade do conhecimento. Tudo o que justifica a existência de uma entidade ou de uma instituição é a produção. E como medi-la? Nas empresas, a medida pressupõe a definição de índices quantitativos de produtividade cujo critério é dado pelo lucro: conta-se a quantidade de produto e deixa-se o mercado tomar conta do resto. Na universidade, como veremos, o índice será o número de publicações, segundo uma lógica que se articula em duas etapas: se alguém produz (publica) mais é porque produz melhor; e, se alguém faz melhor, fará (publicará) mais.

No caso da universidade, o que é o produto a ser contado? A universidade produz conhecimento, e isso é o que deve ser medido. A década de 1980 viu a implantação do programa da contabilização do produto das universidades (públicas, diga-se de passagem), sendo um dos pontos culminantes a famosa lista dos improdutivos da Universidade de São Paulo. Seguindo a tendência mundial de então, consegue-se dizer não somente o que é produto da universidade como também a contabilidade desejada. A medida é dada pelo número de publicações de seus docentes, estabelecido um índice que permita distinguir produtividade e improdutividade e graus de produtividade (ótimo, bom, regular, ruim). Aí está um método objetivo, transparente e justo para contabilizar a produção, e, numa extensão da lógica do mercado, justificar a existência ou decretar a falência de uma instituição, ainda que ninguém saiba de onde vieram os índices de produtividade e a que concepção da atividade científica eles correspondem.

Note-se bem, tudo isso se aplica, basicamente, às universidades públicas, ou melhor, a todos os segmentos de atuação do Estado que possam ter interesse para os setores privados. Por exemplo, se fôssemos aplicar às universidades particulares a lógica do produtivismo científico vigente, a maioria delas deveria ser extinta de pronto. Entretanto, não é esse o ponto que se pretende discutir aqui, e sim analisar a quem interessa esse produtivismo.

Apresentemos, então, o produto universitário contemporâneo, isto é, as "publicações" O quadro aqui apresentado é o das ciências biológicas em geral, minha área de atuação. Por certo, o cenário é suficientemente parecido nas demais áreas, corno sei pelos contatos com outros pesquisadores, o que, entretanto, não exclui nuances nesse quadro. Comecemos esclarecendo às pessoas não ligadas à universidade como se faz a publicação científica.

Como nas demais atividades humanas, a prática da ciência cria um imaginário social sobre como essa atividade é realizada, ou seja, uma abstração a respeito da prática científica. Imagina-se que caso uma pesquisa sobre determinado assunto depare com algo interessante, novo, que acrescente idéias ao pensamento sobre tal assunto, em particular, e sobre o universo que nos cerca, em geral, é importante tornar isso público.

Para tomar público o resultado de uma pesquisa, o material, sob a forma de um manuscrito, é enviado a revistas científicas. Se a revista é séria, ela é "arbitrada" (os artigos passam por um sistema de apreciação) e internacional (escritos numa língua que todos entendam, "naturalmente': o inglês). E quem faz a apreciação e decide se, de fato, o artigo é relevante e merece ser publicado? Outros cientistas.

O imaginário coletivo é induzido a crer no caráter objetivo de pesquisa sincera e criativa, o que garante a isenção em todas as etapas do processo - da investigação à sua publicação.

O imaginário coletivo acredita que a apreciação da pesquisa para sua publicação é realizada de uma forma consciente e conseqüente, por pessoas que tenham conhecimento de fato dos assuntos tratados no material enviado. Chegados a esse ponto, precisamos fazer urna parada, passando do imaginário ao funcionamento concreto desse processo.

Agora, o que se encontra é um quadro bastante distante do anterior. No dia-a-dia das publicações, nós, os cientistas, deparamos, incessantemente, com casos de extremo desconhecimento de conceitos básicos por parte dos pareceristas, descaso como material enviado, leituras superficiais e desatentas e, é claro, os eventuais outros interesses que concorrem na decisão sobre o que será e onde será publicado.

Muitos pesquisadores se conformam, dizendo que há erros e idiossincrasias, mas, apesar de tudo, é o melhor que se pode fazer. No entanto, de fato, sabemos que se pode fazer muito melhor, porém ainda não houve nem interesse suficiente dos que estão no comando das engrenagens nem denúncias de casos suficientemente graves associados a essa prática para que houvesse mudança. Mas não é esse o problema que nos interessa aqui. Nosso foco é como essa prática, torta e longe da idealização abstrata que se tem da atividade científica, é usada para distribuir os recursos à pesquisa e para avaliar o "produto universitário" gerado pelo docente-pesquisador tomado individualmente.

Alguns pesquisadores dirão que, no longo prazo, a atividade científica se revela objetiva e isenta, apesar de, no curto prazo, não conseguirmos distinguir claramente essas qualidades, com o que, de fato, concordo. Mas, sendo assim, isso vem reforçar o questionamento de como, então, se pode pretender usar os critérios da idealização abstrata do que é a atividade científica, que afinal só operam e existem no longo prazo, para avaliar o "produto universitário" através da quantificação das publicações, que se realizam no curto prazo.

É preciso, portanto, entender como a objetividade e isenção científicas, características de longo prazo da prática, são transferidas para o curto prazo, para legitimar o processo da avaliação do "produto". Esse será o nosso problema zero, o foco principal do que exporei a seguir e cujo pressuposto é de que a tentativa de legitimação, no curto prazo, dessa avaliação a partir das características de longo prazo da atividade científica leva à destruição da ciência como busca honesta do conhecimento.

Sem pretender nenhuma referência à filosofia das ciências ou à epistemologia, podemos dizer, grosso modo e de maneira sumária, que a atividade científica, entendida como proposição de uma formulação teórica a respeito de uma certa classe de fenômenos ou a realização de experimentos de orna determinada natureza, é, no fundo, um "chute no escuro; ainda que se possa supor que seria o "melhor chute possível" frente às evidências já disponíveis. Ou seja, em princípio, o pesquisador se "despe" de todas as suas crenças e suposições não fundamentadas pelas evidências já disponíveis e elabora, dedutiva ou indutivamente, quais as conseqüências de uma dada configuração do universo a seu redor. Ou seja, há sempre certo grau, maior ou menor, dependendo do assunto, de incerteza associada ao resultado que se irá obter. De outro modo, tudo já estaria há muito deduzido, e a atividade científica há muito encerrada. Essa incerteza tem várias fontes, irias, basicamente, ela indica a incompletude em nosso conhecimento sobre o universo. Logo, por mais honesto, embalado, objetivo e isento que seja o "chute" (tanto teórico quanto experimental), ele corre o risco de errar o alvo.

No caso das chamadas ciências experimentais, muitos perguntam: como pode um experimento estar "errado': se dele se obtém tini resultado? De fato, em senso estrito, o resultado do experimento não está errado, ele faz parte de uma certa configuração do universo decorrente da montagem do experimento realizado ou dos dados coletados. Aqui começa o nosso problema um, oriundo da disseminação do produtivismo científico. Criou-se uma crença alastrada no "experimento" e no que dele emana: já que é um resultado, e não pode ser falso no senso estrito, então é um dado e precisa (ou merece) ser publicado.

Voltemos, porém, ainda uma vez, à questão: como pode um experimento estar errado? De fato, o erro não existe no experimento, mas sim na ligação que o pesquisador faz entre as premissas do experimento e o resultado obtido. Ou seja, é no modo de interpretação do resultado, no modelo subjacente da configuração do universo sob o qual se analisa o dado obtido, que residirá o erro. Logo, o produtivismo científico, ao criar a necessidade da publicação ensandecida, joga fora o macarrão junto com a água escorrida, pois os praticantes deixam de ser forçados a elaborar sobre as operações realizadas para a obtenção de um certo conjunto de dados (ou seja, deixam de conhecer o universo que exploram) porque um resultado é sempre um resultado e precisa ser logo publicado. A palavra de ordem é: não perca tempo pensando em "detalhes" que seriam meramente teóricos!

E como saber se um resultado "está certo': ou, melhor ainda, corno saber se o "chute" dado foi bom? O grau de incerteza que temos associado ao nosso conhecimento impede que possamos saber qual será o chute certo. Assim, somente o tempo, consolidando o modelo que se constrói a respeito de uma dada configuração do universo, dirá qual foi o chute certo. É isso que, a longo prazo, dá à atividade científica o aspecto de um processo dedutivo objetivo e isento. Voltamos, assim, ao problema do longo prazo versus o curto prazo. Como transferir qualidades científicas somente verificáveis no longo prazo para os eventos de curto prazo, intervalos de uns poucos anos quando muito, com os quais se dá a avaliação da produtividade científica? Como transferir a desejada objetividade para um processo que, no curto prazo, é, em essência, um resultado aleatório no sentido de que não se tem como saber, no curto prazo, qual o caminho adequado para se prosseguir na interpretação de um campo determinado do universo que nos cerca?

Bem, diriam alguns, já que não se sabe, com certeza, para onde ir, por que não tentar para todos os lados? Isso justificaria o produtivismo científico. Ou seja, dada a incerteza associada ao conhecimento, tentemos de tudo para ver o que vai melhor. Não há como negar que é uma tática e, provavelmente, com resultados. De fato, bactérias e outros organismos unicelulares a empregam para explorar o mundo a seu redor em busca de alimentos. Dado tamanho diminuto desses seres, as flutuações aleatórias das substâncias que entram em contato com sua membrana ou parede celular impedem que tenham uma orientação precisa do local que é a fonte de onde emana uma certa substância (por exemplo glicose, da qual podem se alimentar). Essa flutuações aleatórias da concentração impossibilitam que esses seres tenham claro o gradiente a ser seguido.

É como se você estivesse em um edifício pegando fogo em algum ponto e cheio de fumaça nos vários andares Parece evidente que o modo de escapar procurar afastar-se do local onde há mai fumaça. Entretanto, lá dentro, muitas vezes é impossível saber qual o local onda há mais ou menos fumaça: as flutuações de concentração impedem que tenhamos a percepção exata de para onde devemo caminhar. O gradiente não é definível lá apesar de, para uni observador externo, se fácil apontar o local que gera a fumaça.

O que fazem muitos dos microorganismos, vivendo nesse mundo de gradiente: não muito bem definidos, no qual existo uma incerteza associada ao caminho seguir? Fazem a chamada exploração aleatória do ambiente, seguindo uma regra na qual se aumenta a movimentação quanto maior for a concentração de substrato. No tese, não na direção dessa concentração mas em função da concentração no local onde o ser se encontra. Assim, se o movimento aleatório que o microorganismo faz o leva, por acaso, para um local de maior concentração de alimento, ele se move aleatoriamente, ainda mais, e vice-versa Ora, o resultado final para o observador externo, que reconstrói a trajetória no longo prazo, é de um movimento direcionado à fonte de sustento, ou seja, uma aparência de objetividade emerge.

Logo, por que negar essa exploração aleatória desvairada do universo que nos cerca como útil na obtenção do conhecimento? Por que não aceitar que os laboratórios e as áreas que estão produzindo mais sejam aqueles que estão, de fato, se aproximando de um maior entendimento do nosso universo? Por que negar, portanto, o produtivismo científico como válido?

E, assim, nasce o nosso problema dois, oriundo da disseminação da avaliação do produtivismo científico, poiso leitor atento já deve ter percebido onde se encontra o erro da inferência. De fato, somente se saberá que o resultado produzido é adequado no longo prazo. Ou seja, usar a quantidade de resultados obtidos hoje como sinônimo de sucesso na exploração do universo que nos cerca é o mesmo que se o microorganismo, em sua busca por alimento, utilizasse o próprio rastro para julgar se está ou não na trilha certa! Essa é a falha da transferência do caráter da atividade científica, percebido no longo prazo como obtenção, objetiva e isenta, das regras que regem um local-tempo do universo em que estamos, para a prática cotidiana de curto prazo dessa atividade, a qual carece dos requisitos supostos. Portanto, na atividade científica de curto prazo, é falha a aplicação da lógica de que se se produz mais é porque se produz melhor; e que, se se faz melhor, se fará mais: não há como julgar, de forma objetiva e isenta, a qualidade dessa produção no curto prazo.

Assim, percorridos os dois problemas acima, retornamos ao problema zero: além de não sabermos de onde vieram e o que significam os índices de contabilidade da produtividade, podemos dizer que, sejam eles quais forem, o verdadeiro problema é mais profundo, pois toca no descaso sobre a natureza mesma da pesquisa científica.

Óbvia e esperadamente, a implantação dessa lógica manca do produtivismo científico como medida do produto da universidade não poderia deixar de enviesar a prática dos pesquisadores. Hoje, atividades que seriam de clara formação de indivíduos aptos para atuar no ou entender o campo científico se transformaram numa pequenina indústria de publicação. É o caso típico da iniciação científica, atividade que deveria ser completamente desvinculada da publicação. Não teria o menor sentido esperar qualquer resultado novo e interessante da iniciação, pois não é esse o objetivo dessa etapa da formação de um profissional. Um mero passeio por laboratórios e conversas com alunos revela a distorção imposta a essa fase da formação. Frente à necessidade de "ter um bom currículo'; por parte dos alunos, e pela pressão, muitas vezes autogerada de forma cega, por manter um laboratório "produtivo; por parte dos orientadores, a iniciação científica passou a ser uma etapa comprometida com a publicação. O mestrado, etapa na qual o profissional deveria passar a compreender como se faz para obter, cientificamente, o conhecimento, está sendo extinto e, do mesmo modo que ocorre com a iniciação, passou a ser comprometido com a publicação. O doutorado, comprimido cada vez mais no tempo e vindo de uma formação precária em decorrência da "queima de etapas anteriores" e da falta de compromisso formador nessas etapas, vivencia o ápice da destruição intelectual: um doutor com menos de quatro publicações não é um doutor; ou seja, colocaram os doutores de quatro e eles assim ficaram, pois a crítica já se perdeu há muito. Como dizem os norte- americanos: publisch or perisch! Como se ouve aqui entre nós: "Publique, não perca seu tempo com detalhes teóricos. Depois você pensa melhor"Quando esse pesquisador irá pensar melhor? Ele foi criado desvinculado do embasamento crítico e do arcabouço teórico, ele não tem tempo para pensar. Ele vivenciou a atividade científica como a obtenção maciça de resultados. É essa a herança que ele leva para o pós-doutoramento.

Toda a criatividade e a espontaneidade ligadas ao processo da publicação de um trabalho científico são substituídas por um automatismo amorfo, uma obrigação sem crítica que, como um cão que persegue loucamente a própria cauda, é incapaz de parar e questionar o que está sendo feito. Revistas científicas afloram em todo e qualquer canto; aparelhos, sensores, reagentes e softwares são anunciados como "a garantia de novas e importantíssimas descobertas para você, pesquisador"; projetos megalomaníacos são financiados; a capacidade intelectual do pesquisador é medida por metro quadrado ocupado por seus equipamentos; Doutores são ejetados para preencher quadros de universidades particulares, que, ainda assim, continuam com pesquisa precária. A quem serve a produtividade científica? Sou forçado a concluir que a produtividade científica, isto é, a quantificação do trabalho científico pelo número de publicações feitas pelos pesquisadores, não serve à ciência e não pode corresponder ao anseio contemporâneo de avaliar a atividade universitária. Numa conseqüência perversa, seu processo de implantação e manutenção levou a uma enorme distorção na atividade dos pesquisadores docentes dentro das universidades públicas. Uma vez que todas as outras variáveis que deveriam compor o cenário da vida desses profissionais, e, por extensão, da vida da própria universidade, foram colocadas em terceiro ou quarto plano, as decisões e metas passaram a ser ditadas pelos grupos "produtivos'; sucateando-se a atividade de docência e o próprio "conhecimento do conhecimento" O produtivismo serve a esses grupos, com os quais a universidade deixa de ser um local de reflexão e se torna o simplório reflexo de unta sociedade que se pauta pelos números virtuais das bolsas de valores.

Por isso mesmo, o produtivismo científico não pode ser legitimado dentro de uma universidade.

José Guilherme Chaui-Berlinck é mestre e doutor em Fisiologia Comparativa (IB/ USP), pós-doutorado em Imunologia (ICB/USP), doutorando em Engenharia de Sistemas de Controle (EP/USP), docente do Departamento de Fisiologia (IB/USP), coordenador do laboratório de Fisiologia Teórica