Cultura

O filme Olga é antes de tudo um produto. Pensado e elaborado para atingir o maior número de pessoas e fazer uma grande bilheteria

O filme Olga, segunda maior bilheteria do cinema nacional em 2004, após dois meses de exibição, já foi visto por 2.825.402 espectadores, vindo logo atrás do primeiro colocado, Cazuza - O Tempo Não Pára, também uma fita sobre um ícone libertário, do ponto de vista dos hábitos e costumes. Olga é um exemplo emblemático das contradições e paradoxos que o audiovisual brasileiro vive no governo Lula.

Com um lançamento de 263 cópias, ocupando em torno de um sexto do mercado de salas de cinema do território nacional, o "blockbuster" Olga contabiliza um faturamento bruto de R$ 19.209.530,00. F a décima maior bilheteria de cinema no Brasil neste ano. O primeiro lugar é do imbatível Homem Aranha, com 7.723.550 espectadores.

Um sucesso de público, um fracasso de crítica. Um bem sucedido empreendimento comercial, que por fina ironia do destino fatura seus louros em cima da história dramática de conhecidos comunistas do século 20; hoje, personagens inofensivos, que foram soterrados pela (in)evolução política que derrubou o Muro de Berlim e o império soviético.

Mas, muito recentemente, historicamente ontem, Prestes, Olga, PCB e URSS foram símbolos do sonho de libertação dos povos e inspiração para muitos humanistas, comunistas e socialistas em geral, que beberam no ideário marxista e em suas diversas variações.

Para muitos, principalmente os brasileiros da terceira e quarta idade, a saga de Olga e Prestes tem tun significado ímpar. A aventura do maior líder da esquerda verde-amarela junto à judia alemã contém todos os ingredientes romanescos do mito do herói: o amor livre das convenções conservadoras; a ousadia e o desprendimento pela causa dos oprimidos; a revolução política e social; a reação truculenta da ditadura Vargas; a purgação dos companheiros na tortura; o banimento do país em adiantado estado de gravidez; o nascimento de Anita e a separação ignóbil; a luta da avó D. Leocádia em sua pregação internacional pela liberação da criança; o horror e a imolação no campo de concentração.

Creio ser importante relembrar que se de um lado o romance épico do casal vermelho é o maior case de marketing da esquerda mundial, de outro a aliança política de Prestes com o algoz de Olga, Getúlio Vargas, em 45, foi uma das maiores decepções que a militância comunista brasileira viveu em toda a sua história. Por não ser um marqueteiro sensível, Prestes, depois de amargar nove anos de prisão solitária, mais maduro e pragmático, aliou-se com Getúlio na tentativa de impedir o avanço da direita, representada pela candidatura Dutra. Não conseguiu, mas Prestes tinha razão.

Dutra fez um governo reacionário, um de seus primeiros atos foi jogar na ilegalidade os recém-eleitos parlamentares comunistas. Faltou faro político ao estóico Prestes, que naquele momento não compreendeu o significado simbólico que sua história com Olga tinha para o imaginário do povo brasileiro. Milhares de militantes rasgaram a carteirinha indignados com esse "acordo espúrio", Carlos Drummond de Andrade e grande parte da intelectualidade tupiniquim abando0naram o partido definitivamente. Foi o princípio da lenta dissolução do PCB, que se estendeu por décadas e gerou inúmeras cisões, organizações clandestinas, até desembocar no nascimento do PT, em 80.

Voltando ao filme, Olga é antes de tudo um produto, e não uma obra cinematográfica. Um produto de qualidade e valor, verdade seja dita. Ele preenche todos os requisitos do product designed, ou seja, um filme pensado e elaborado para atingir o maior número de pessoas e fazer uma grande bilheteria. A receita exige alguns ingredientes essenciais, que colocados na medida certa rendem uma boa história: (re)conhecimento pelos formadores de opinião (classe média); apelo ao sentimentalismo popular; produção cara e acabamento impecável (o mais próximo possível do cinema americano); elenco de primeira, recheado de atores televisivos "estelares"; e como toque de chantilly nesse bolo de sucesso: o rolo compressor da mídia no lançamento, em parceira com uma distribuidora eficiente (a Lumière, apesar de não ser considerada grande, tem vasta experiência com filmes importados).

Esteticamente, o filme de Jayme Monjardim é um melodrama lacrimoso feito para todos os gostos, principalmente para o paladar menos exigente e acostumado às novelas de TV. O ritmo e a história se sustentam, a produção é exuberante e o bom trabalho dos atores é embalado por uma música instrumental contundente e excessiva. O espectador vibra e chora compulsivamente com a tragédia pessoal de Olga. As complexas questões políticas envolvidas na tentativa de tomada de poder pelo PCB, em 35, com objetivo de instalar uma república comunista no Brasil, financiada pela União Soviética, sob o comando carismático do "cavaleiro da esperança", são relegadas a segundo plano e mostradas de forma superficial.

Mesmo assim, os velhos comunistas e simpatizantes se emocionaram e aprovaram a fita. Afinal, eles não precisam de maiores explicações e contextualizações sobre a história de Olga, se sentiram recompensados pela homenagem prestada à heroína libertária. É também um filme importante na disputa pela ocupação das telas de cinema, dominadas pelo produto americano, além de representar o Brasil na próxima disputa do Oscar, o que dá um fugaz sentimento de auto-estima, pelo menos até a proclamação do resultado. Outros afirmam que é fundamental o "povão" conhecer a luta dos heróis da esquerda brasileira apesar do contorno tão esterilizado (tanto em Cazuza quanto em Olga, conseguem a proeza de não utilizar uma única vez as palavras AIDS e comunista).

O fenômeno a destacar é o sucesso de um tipo de produção industrial nacional com a consolidação da parceria da Globofilmes com as majors (distribuidoras estrangeiras que investem em filmes nacionais através do incentivo fiscal do artigo 3º da Lei do Audiovisual). Essa dobradinha vem (re)conquistando público para o cinema brasileiro e se tornando um lucrativo negócio. Além dos já citados Olga e Cazuza, tivemos ainda neste ano Sexo, Amor e Traição e, agora, A Dona da História, todos lançamentos com grande destaque e repercussão.

O paradoxo se dá por conta de duas legítimas representantes do "capital", a Globo e as distribuidoras americanas, se apropriarem dos símbolos da rebeldia da sociedade para fazer disso um bom negócio capitalista (naturalmente, essas histórias não tem o direito de exclusividade ideológica, pertencem a seus autores). E as contradições correm por conta da tríplice aliança sedimentada entre a Globo, a elite do cinema comercial "capitaneada por Luís Carlos Barreto) - ambas forças defensoras do conteúdo nacional - e as majors americanos - braços de Hollywood e representantes do american way of life -, unidas no objetivo de derrubar o projeto do governo da Ancinav, que propõe a necessária e urgente criação de uma agência reguladora da atividade audiovisual no Brasil. É o status quo que tenta, a todo o custo, preservar seus privilégios num setor da economia nacional que não tem nenhuma regulação, nenhuma isonomia. Mas isso é assunto para outro artigo.

Toni Venturi é diretor de O velho, a História de Luiz Carlos Prestes, Latitude Zero e Cabra-Cega (a ser lançado em abril de 2005)