Nacional

Eleições municipais apresentam dois clichês: a polarização e a pré-determinação dos resultados em 2006

Não é fácil interpretar os resultados das eleições municipais. Para alguns analistas o melhor critério é observar o percentual de votos para prefeitos. Outros lembram que, como nem todos os partidos apresentam candidatos a prefeito em todas as cidades, o melhor é analisar a votação para as Câmaras Municipais. Para outros, fundamental é observar as vitórias nas cidades mais importantes, essas sim centros efetivos de poder. Além das preferências metodológicas, há ainda o inevitável viés político da análise, cada um tendendo a escolher o resultado que favoreça seu partido. Nestas eleições, por exemplo: um peemedebista consideraria o número de prefeituras um bom indicador, pois o partido conquistou o maior número delas (23%). Para um petista, o número de votos para prefeito seria o melhor indicador, já que o partido foi o mais votado na disputa para esse cargo, com 17% dos votos. Um membro do PSDB provavelmente tenderia a privilegiar o resultado nas grandes cidades do Sudeste, particularmente São Paulo. Mesmo pequenos partidos têm lá seus trunfos para mostrar: o crescimento em um estado, a vitória em uma capital importante, o surgimento de uma liderança.

Além do infindável debate sobre quem foi melhor nas urnas, as eleições produzem seus clichês, seus lugares-comuns. Repetidos por todos, passam a servir como a interpretação dominante em cada pleito. As eleições de 2004, em particular, produziram dois lugares-comuns. 0 primeiro é que houve uma polarização entre o PT e o PSDB. O segundo é que o resultado das eleições locais determina a disputa presidencial de dois anos depois; no caso, específico: 2004 ajuda a prever o que acontecerá em 2006. O propósito deste texto é analisar a procedência dessas interpretações. Será que as duas teses têm suporte quando os resultados eleitorais são analisados de maneira mais detalhada?

A tese da polarização

Os resultados das eleições gerais de 2002 mostraram claramente que a política nacional tenderia a se organizar em torno do PT e do PSDB. Em texto publicado após aquele pleito sustentei esta interpretação:

A observação das três últimas eleições presidenciais revela uma disputa entre duas grandes coalizões, capitaneadas pelo PSDB (Fernando Henrique Cardoso em 1994 e 1998, José Serra em 2002) e pelo PT (Lula em 1994, 1998 e 2002). O PT e o PSDB foram os únicos entre os grandes partidos que disputaram todas as eleições presidenciais com candidaturas próprias. Essa participação contribuiu para a organização e a nacionalização eleitoral de ambos. É importante lembrar ainda que em cada eleição presidencial os partidos que concorrem mobilizam seus técnicos para a elaboração de um programa de governo, tarefa que acaba contribuindo para que o partido seja obrigado a apresentar uma convergência mínima em termos programáticos. Certamente o PT e o PSDB acabaram se beneficiando da dinâmica da competição presidencial, tornando-se os mais programáticos entre os maiores partidos brasileiros.

O PT foi o mais votado para todos os cargos e obteve o maior número de representantes na Câmara dos Deputados e nas Assembléias Legislativas. O PSDB foi o segundo mais votado nas eleições para Presidência, Câmara dos Deputados, Assembléias Legislativas e governos de estado, só perdendo essa posição para o PFL na disputa para o Senado. O PSDB elegeu ainda a segunda maior bancada de deputados estaduais e a terceira de deputados federais - em razão de mecanismos internos do sistema eleitoral, o PSDB, mesmo recebendo mais votos que o PFL na disputa para a Câmara dos Deputados, ficou com menos cadeiras.

A análise das três últimas eleições presidenciais e da representação dos partidos em 2002 mostra que o PT e o PSDB têm se consolidado como os partidos estruturadores da vida partidária brasileira. Por isso me parece ingenuidade acreditar que o PSDB participará da base de sustentação do governo Lula. Pelos dados parece mais razoável imaginar o PSDB como o partido que comandará a oposição ao governo petista. Além de mais organizado do que os outros partidos do campo de centro-direita, o PSDB tem dois líderes emergentes que governam os dois maiores estados da Federação, Geraldo Alckmin (SP) e Aécio Neves (MG), ambos candidatos naturais à Presidência em 2006. (Trecho do artigo "Notas sobre as eleições de 2002 e o sistema partidário brasileiro'; Cadernos Adenauer, ano IV,n°1.)

Mas a polarização produzida em 2002 teria sido confirmada pelas urnas em 2004? Vejamos a votação final obtida pelos principais partidos em todos os estados. Em apenas três deles (São Paulo, Minas Gerais e Rondônia) o PSDB e o PT foram os mais votados. Em Rondônia, o PSDB recebeu 19,4% e o PT 15,9%, mas o PMDB chegou empatado em segundo lugar, com 15,9%. Em Minas Gerais, o PT foi o mais votado, com 22,3%, e o PSDB o segundo, com 14,3% - mas o PMDB novamente chegou empatado em segundo, com 14%. Na realidade, apenas em São Paulo houve, de fato, uma polarização entre os dois partidos: o PSDB recebeu 31,8% dos votos e o PT 25,3%.

Se os dados não dão suporte à tese da polarização entre o PT e o PSDB, por que será que ela se tornou a versão dominante entre os analistas? Minha impressão é que isso se deve particularmente ao desempenho do PT e do PSDB nas cidades médias e nas capitais, nas quais os dois partidos foram os mais votados (é interessante lembrar que nas eleições municipais de 2000 os dois partidos já haviam sido os mais votados nas cidades com mais de 200 mil eleitores). Outro fator que certamente contribuiu foi a centralidade que a cidade de São Paulo teve na disputa, chamando a atenção pela importância de seus atores: um candidato derrotado à Presidência conquista do partido do atual presidente a cidade mais importante do país. É interessante lembrar que pela primeira vez um candidato do PSDB a prefeito de São Paulo passou para o segundo turno.

A análise da votação para prefeito revela que o PT foi o partido que mais cresceu, passando de 14% dos votos em 2000 (o quarto partido mais votado) para 17% (o partido mais votado em 2004). O partido teve um crescimento acentuado na Região Norte, especialmente em Rondônia, Tocantins e Amapá. No Centro-Oeste cresceu em todos os estados, especialmente em Mato Grosso do Sul. A Região Nordeste continua sendo a de maior dificuldade para o PT; o partido cresceu acentuadamente em Sergipe, no Ceará e em Pernambuco, mas nos dois últimos casos o resultado deveu-se sobretudo à votação nas capitais (Fortaleza e Recife). No Sudeste, o PT manteve-se no mesmo patamar de votos em São Paulo e no Rio de Janeiro e cresceu no Espírito Santo e, sobretudo, em Minas Gerais, onde passou de 9% em 2000 para 22% em 2004. No Sul, o partido teve um pequeno crescimento no Paraná e em Santa Catarina e reduziu sua votação no Rio Grande do Sul. Em resumo, o PT saiu das urnas com indicadores claros de consolidação em quatro regiões do país - a única exceção é o Nordeste. Em apenas sete estados (Amazonas, Roraima, Alagoas, Maranhão, Piauí, Paraíba e Rio Grande do Norte) o partido recebeu menos de 10% dos votos para prefeito. Não fora o simbolismo das derrotas em São Paulo e Porto Alegre, provavelmente o crescimento do PT ficaria mais patente.

O PSDB praticamente manteve o patamar de votos obtidos na eleição anterior (16% em 2000 e 17% em 2004), mas o desempenho nos estados foi mais irregular que o do PT. Na Região Norte, o partido cresceu em dois estados (Tocantins e Rondônia), mas encolheu em todos os outros. No Centro-Oeste, declinou em todos os estados. No Nordeste, cresceu apenas no Ceará, na Paraíba e no Rio Grade do Norte, diminuindo em todos os outros estados. No Sul, obteve igual desempenho no Paraná e no Rio Grande do Sul, mas cresceu em Santa Catarina. Na Região Sudeste, manteve-se no mesmo nível em Minas Gerais e caiu acentuadamente no Rio e no Espírito Santo. Na realidade, o crescimento expressivo do PSDB ocorreu no estado de São Paulo, onde passou de 20% em 2000 para 32% em 2004; o partido venceu em cidades importantes do estado, mas o desempenho final deveu-se, em grande medida, ao crescimento na capital. O PSDB também se encontra nacionalizado, mas revela fragilidades maiores que o PT, uma vez que ainda tem dificuldade de se consolidar em três estados importantes (Rio de janeiro, Rio Grande do Sul e Bahia). Em resumo, o PSDB viveu fenômeno inverso ao do PT: o bom desempenho no estado de São Paulo, especialmente a vitória de José Serra na capital, acabou chamando mais a atenção do que o desempenho ruim que o partido obteve em boa parte do país.

Na realidade, a possível polarização entre o PT e o PSDB nas eleições de 2006 tem menos a ver com o que aconteceu em 2004 e mais com um padrão de comportamento que os partidos brasileiros desenvolveram nas eleições presidenciais. O que faz a diferença é o que chamo de "vocação presidencial" desses partidos, que foi desenvolvida em quatro disputas presidenciais e os forçou a formular propostas para o país, a criar redes mais orgânicas com o mundo intelectual e a criar processos decisórios mais centralizados no plano nacional. Por outro lado, o PMDB e o PFL, dois partidos com força nas eleições municipais e no Congresso, ao se recusarem a disputar efetivamente a Presidência, acabaram operando cada vez mais como uma confederação de lideranças estaduais (e, no interior de cada estado, como confederação de lideranças locais). A inexistência de nomes óbvios provavelmente deve fazer com que o PMDB e o PFL não apresentem nomes próprios à Presidência em 2006 e acabem apoiando a candidatura do PT ou a do PSDB.

Resultados de 2004 são bons "preditores" de 2006?

Um bom caminho para responder a essa pergunta é observar se as eleições gerais estão associadas às eleições municipais realizadas dois anos antes. Será que os resultados eleitorais de 2002 estão associados aos de 2000? Será que o que aconteceu em 1998 podia ser previsto em 1996? Para tal, foi utilizado uni teste estatístico (a correlação de Pearson) que mede a associação entre os dados. O desempenho dos partidos (PT e PSDB) nos estados foi comparado em dois momentos - 1996-1998 e 2000-2002. As principais conclusões são as seguintes:

- Não houve nenhuma associação significativa entre a votação municipal (Câmara e prefeitura) de 1996 e a votação obtida por Fernando Henrique Cardoso em 1998, nem entre a votação municipal de 2000 e a votação de José Serra em 2002.

- Houve uma correlação fraca entre a votação do PT nas eleições municipais de 1996 e a votação de Lula em 1998. Não houve uma correlação significativa entre a votação do PT nas eleições municipais de 2000 e a votação de Lula em 2002.

- Existiu uma associação estatística forte entre a votação obtida pelo PT para vereador e prefeito em 1996 e a de deputado federal e estadual em 1998 e entre a votação de vereador e prefeito em 2000 e a de deputado federal e estadual em 2002.

- Houve uma forte correlação estatística entre a votação do PSDB nas eleições municipais de 1996 (vereador e prefeito) e as eleições para deputado federal e estadual de 1998. Houve uma correlação significativa entre a votação para vereador e prefeito do PSDB em 2000 e a votação para deputado estadual em 2002 (a associação com deputado federal existe, mas é mais fraca).

O que as eleições passadas ensinam é que o padrão da votação presidencial do PSDB e do PT em 1998 e 2002 não teve associação estatística significativa com as eleições municipais realizadas dois anos antes (1996 e 2000). Por outro lado, existiu uma forte associação entre o desempenho dos partidos nas disputas municipais e a votação para deputado federal e estadual. Portanto, as eleições municipais são melhores preditores da composição da Câmara dos Deputados e das Assembléias Legislativas do que da disputa presidencial. Por que será que isso acontece? As eleições presidenciais, por suas características singulares (formação de amplas coalizões eleitorais, grande visibilidade dos nomes em disputa, única disputa cuja circunscrição eleitoral é o país), não guardam uma relação tão acentuada com o desempenho prévio dos partidos nos estados. Já as eleições para deputado federal e estadual, cuja circunscrição eleitoral é o estado, necessitam de redes locais que são reorganizadas nas eleições municipais de meio de mandato; por isso a associação mais significativa entre os dois tipos de cargo.

Se o padrão das eleições anteriores se mantiver em 2006, o sistema político deve continuar com as mesmas características que adquiriu em 1994: um presidente eleito por PT ou PSDB e a Câmara dos Deputados e o Senado marcados por alta fragmentação partidária - com o PMDB e o PFL ainda contando com bancadas expressivas.

Obviamente que há ainda que levar em conta os constantes movimentos de reacomodação dos líderes partidários (fusões partidárias, migrações individuais), que acontece após cada eleição no país e também terá impacto sobre os resultados em 2006. Minha impressão é que eles devem afetar mais as disputas estaduais e a composição partidária no Congresso do que viabilizar uma terceira força na disputa presidencial.

Jairo Nicolau é professor de Ciência Política do luperj, autor de História do Voto no Brasil (Jorge Zahar) - e Sistemas Eleitorais (FGV Editora)