Cultura

Um órgão regulador do audiovisual é fundamental

A Califórnia é a quinta economia do planeta depois do Japão. Sua principal indústria é o cinema, junto com a informática. O cinema é a ponta do audiovisual, sua vitrine, no qual são criados e lançados os gêneros, as modas, os gostos, a motivação principal que atinge o inconsciente coletivo das multidões. A produção que nasce em Los Angeles ocupa 80% do mercado mundial. A indústria cultural é o segundo item (após a produção bélica) na balança de exportações dos Estados Unidos. O audiovisual representa o setor essencial da produção cultural, junto com a música de consumo.

A Califórnia é a quinta economia do planeta depois do Japão. Sua principal indústria é o cinema, junto com a informática. O cinema é a ponta do audiovisual, sua vitrine, no qual são criados e lançados os gêneros, as modas, os gostos, a motivação principal que atinge o inconsciente coletivo das multidões. A produção que nasce em Los Angeles ocupa 80% do mercado mundial. A indústria cultural é o segundo item (após a produção bélica) na balança de exportações dos Estados Unidos. O audiovisual representa o setor essencial da produção cultural, junto com a música de consumo. Esse negócio de grande magnitude não tem somente sua fantástica expressão econômica – tem importância ideológica, vende formas de pensar, sentir, agir e ser, para os cidadãos. Atinge a cidadania dos países. Roosevelt afirmava: “Com nossos filmes vão nossos produtos e a imagem da América”. A imagem, melhor dizendo, a filosofia política, o pensamento, as idéias. Portanto, o audiovisual é algo estratégico do ponto de vista não apenas cultural, mas sobretudo ideológico.

Essa é a razão pela qual as nações têm procurado fazer políticas defensivas, como a forte legislação francesa, e mesmo os próprios EUA, regulando as relações entre as empresas de produção e difusão do audiovisual. É um jogo geopolítico duro, pesado. Lida com relações de poder sobre a população dos países. Nesse sentido, a idéia de um órgão regulador, assim como de ações de fomento para a produção e difusão das imagens, é algo fundamental para o desenvolvimento de uma nação. O Brasil, que deseja se afirmar definitivamente no novo milênio, não o conseguirá se não investir e regulamentar o audiovisual. Daí a importância de um projeto como o da Ancinav, recentemente proposto pelo Ministério da Cultura (Minc).

O iluminista David Hume pensava que a história repetiria o que ocorrera até então: ciclos de barbárie e aprimoramento. Das visões por etapas do iluminismo, a filosofia partiu para o idealismo alemão, chegando a seu ápice na dialética hegeliana, com a concepção da mudança em direção ao absoluto. Virando de cabeça para baixo essa filosofia, Marx criou o materialismo histórico, ou a dialética da luta de classes, mas no qual impera o mesmo espírito: da concepção finalista e totalista, o futuro a ser criado de um mundo perfeito, completo, definitivo, o comunismo. Apesar das sucessivas experiências mostrando que a luta pela criação dessa “Cidade Perfeita”, como no poema de Carlos Drummond de Andrade, gerava, através de seus “fins que justificam os meios”, regimes políticos fechados, concentrações de poder e totalitarismos, o pensamento da esquerda não consegue abandonar esse sonho romântico, na raiz “idealista” e em seu caminho, em sua ação tática, de projetos absolutistas.

Por que ir tão longe para discutir esse projeto do Minc sobre a Ancinav? Porque, ao contrário dos processos políticos baseados na consulta e no debate amplo das bases, nas assembléias, em um pragmatismo que visa uma militância de resultados, como tem demonstrado o governo Lula como um todo (área econômica, educacional, social e mesmo na ação política), e com nosso presidente num ímpeto até se declarando “não ser de esquerda”, o projeto foi elaborado de forma fechada e tem uma visão “finalista e totalizadora, completamente abrangentee” da questão do audiovisual no país. Apesar de argumentar que as partes envolvidas foram ouvidas e que se trata de uma demanda histórica do setor, os fatos não estão bem equacionados.

A chamada “demanda histórica” nasceu no Congresso Brasileiro de Cinema (CBC), órgão que depois se colocou literalmente contra a permanência da Ancine por um tempo na Casa Civil (algo decidido publicamente em seminário na Biblioteca Nacional organizado pelo PT, em novembro de 2002, com a presença de membros do comitê cultural do partido) e posteriormente contra a ida da Ancine para o Minc. Se formos levar em conta as tais “demandas históricas” do CBC, elas estão poluídas de contradições, incongruências e indefinições. Por outro lado, se houve consultas, é preciso formalizar.

Nosso órgão, o Sindicato da Indústria Cinematográfica e Audiovisual do Rio de Janeiro, que congrega os laboratórios, a infra-estrutura técnica, as empresas de publicidade e cerca de 80% das empresas produtoras responsáveis pelos 22% de ocupação do filme brasileiro no mercado de salas em 2003, jamais foi consultado oficialmente. Como presidente, fui convocado a Brasília em fevereiro de 2004. Após rápida explanação do representante do Minc sobre as linhas gerais do projeto – que taxava exibidores, distribuidores, televisão, e através de um artifício jurídico praticamente eliminava o artigo 3° das leis de incentivo, principal mecanismo usado pelas distribuidoras estrangeiras para financiar os atuais blockbusters nacionais –, comentei com André Sturm, presidente do Sindicato da Indústria Cinematográfica de São Paulo: “Já enfrentamos muitas brigas boas contra um ou dois adversários, mas contra tantos ao mesmo tempo será a primeira vez”.

Desse encontro nasceram mudanças reais no projeto apresentado posteriormente, mas as “consultas” se encerraram. Os técnicos do ministério elaboraram o projeto, que tinha inicialmente como agenda duas ou três reuniões do Conselho Superior do Audiovisual e seria apresentado pelo presidente Lula no mais recente Festival de Gramado, para ser enviado ao Congresso. O texto não era do conhecimento nem do comitê cultural do PT. O projeto então “vazou”, e as reações contrárias explodiram na mídia, esquentadas por manifestações de apoio. Criou-se o contencioso, e só meses depois começam as negociações com os setores afetados.

O encaminhamento inicial, que já provocou sinceras autocríticas, faz a Ancinav correr o risco de soçobrar no Congresso Nacional, onde estão solidificados os lobbies midiáticos, principais afetados pela idéia. Possibilitou manipulações político-partidárias, tendo sido até utilizado nas eleições pela oposição ao governo. O cinema serve agora de escudo do projeto contra as TVs e de escudo das TVs contra o Minc. Podemos perder uma grande e histórica oportunidade de implantar um órgão transformador, fundador de novas políticas públicas, tão necessárias para ampliar e democratizar a atividade. E acabar, pela necessidade urgente de negociações de última hora, gerando apenas uma nova Ancine ampliada, e não realmente algo inovador. Isso não só pela centralizadora condução da proposta, fora das linhas de ação clássicas da tradição política, mas principalmente por falhas estruturais no projeto, que se remetem às minhas reflexões filosóficas do início: totalismo, intervenção exagerada de fraca base e argumentação técnica, excessiva ideologização e a filosofia de querer resolver tudo ao mesmo tempo.

Lutamos para manter a Ancine na Casa Civil, em dezembro de 2002 (o que resultou até em dois decretos, o segundo corrigindo o primeiro), e depois agimos de forma permanente, decisiva, contra grandes maiorias radicais que não queriam a Ancine, o cinema, no Minc. Fomos vitoriosos (cineastas e produtores) com sua ida para o Minc, pois seria insanidade uma área cultural estratégica no Ministério do Desenvolvimento Indústria e Comércio Exterior, voltado para a exportação, no qual o audiovisual se transformaria logo em “moeda de troca” nas negociações comerciais internacionais.

Portanto, agora se trata de negociar com paciência, o que vem declarando o ministro Gil e fazendo o secretário-executivo Juca Ferreira, que desejam o consenso, até porque não teriam aval do governo para enviar ao Congresso um projeto que nasça desse pandemônio que virou a política na atividade, levando a conflitos aparentemente insolúveis, a contenciosos adiados para a “batalha no Congresso”. As negociações, principalmente com a TV, que não passam somente pelas decisões do Conselho Superior do Audiovisual, terão de ser profundas, definitivas, sinceras, e não apenas conversas de cúpula aparentemente cordiais. Temos de torcer e ajudar para que tudo dê certo, corrigindo as distorções iniciais. E colaborar para que a Ancinav venha a corresponder às necessidades internacionais que a impõem, o contexto global que apontei.

Uma relação siamesa foi criada nos últimos anos entre produtores, a televisão hegemônica e as grandes corporações. É um fato irreversível. Não se trata mais de destruir, ou acabar com interesses estabelecidos. Trata-se de aprimorá-los, aperfeiçoá-los, dar uma feição legal e avançada à novidade que tem alavancado nosso cinema nos últimos anos, quebrando a espinha das tradicionais rejeições da classe média aos filmes brasileiros, na defesa dos conteúdos nacionais. Nesse sentido, o fortalecimento de grandes empresas de distribuição brasileiras é essencial, atinge a estrutura do sistema.

Mas o país surpreende, é inesperado e criativo, contradiz raciocínios rançosos: o casamento da produção cinematográfica com as chamadas majors (Fox, Warner, Columbia etc.) tem sido bastante positivo e eficaz, como já foi na música popular brasileira (Sony, EMI-Odeon etc.). É necessário avançar por etapas, acordos e confluência de propostas, algumas entre os atores da sociedade civil, mesmo sem a participação do Estado. Conciliação em terreno firme e concreto, o mundo real dos tempos em que vivemos, sem idealismos totalizantes ou movimentos sebastianistas e românticos.

Paulo Thiago é cineasta, presidente do Sindicato da Indústria Cinematográfica e Audiovisual (Sicav) do Rio de Janeiro, diretor de Jorge, um Brasileiro, Policarpo Quaresma, O Vestido.