Política

A recente polêmica sobre a criação do Conselho Federal de Jornalismo esquece a importância do projeto educacional na formação de comunicadores

O perfil do comunicador, ao considerar-se o comportamento no dia-a-dia, é muito revelador de sua defasagem histórica em relação à nova ordem social da informação postulada por juristas e teóricos desde o início do século 20. No cotidiano, o jornalista se mantém liberal (talvez no sentido mais radical, liberal em função de si próprio). Se não, vejamos: cotidianamente luta, em competição acirrada, para se desempenhar individualmente, esquecendo quase sempre o processo coletivo (e industrial) da informação - é sua matéria, a luta por sua assinatura; é o seu estilo que quer afirmar contra médias legíveis; é a seu compromisso individual perante o assunto que está cobrindo, e não as exigências da audiência; é a liberdade de expor suas idéias, e não colher a pluralidade decorrentes de opinião da sociedade em que transita.

Escrevi esse texto no contexto de um livro que colheu a experiência da regulamentação profissional do jornalista no Brasil. El Rol del Periodista saiu primeiro em espanhol, no Equador, no final dos anos 1970, e em português, em 1982, com outro título - Profissão Jornalista, Responsabilidade Social (editora Forense-Universitária). O fragmento transcrito aponta para o principal eixo da discussão: quem é o jornalista? Ao percorrer a trajetória da profissão no Brasil, ao mapear as pegadas da regulamentação profissional e ao colher depoimentos ilustrativos de várias gerações de jornalistas, persegue-se nessa busca a dimensão social contemporânea do mediador-autor da informação da atualidade.

No acúmulo de estudos e de práticas da mediação social do que hoje nomeio narrativas da contemporaneidade, vão-se descobrindo as interpretações do perfil profissional: a aspiração de dono divino da verdade, de tribuno da livre expressão, e a posição mais complicada - de reportar o outro, reportar as circunstâncias de seu tempo, articular as vivências coletivas e o pensar contraditório dos que pesquisam e analisam a sociedade. Mas, em todas as etapas de pesquisa e enfrentamento com o mundo vivo do jornalismo, predomina a identificação sedutora com a era da liberdade de dizer, de informar, de convencer. É nesse exercício que se dão os conflitos históricos no campo das leis, no campo dos pactos sociopolíticos, na arena das pressões econômicas.

Há um pé fincado no ancestral liberalismo das revoluções ocidentais do século 17 ao século 18. Fica para trás o direito divino da informação, embora se mascarem e aflorem à superfície os arautos da verdade absoluta. Investidos de poder, convencidos da representação de Deus na Terra, discursam para as plebes, comentam o mundo com a arrogância que transpira ignorância, com a inteligência simplória que não liga alhos com bugalhos. Parece incrível que esses tribunos do jornalismo não pratiquem a livre discussão, mas defendam com unhas e dentes sua liberdade de opinião.

Mais incrível ainda, a ausência da proposta contemporânea que, nas democracias, vocaliza o direito social à informação. Desde que me vejo como agente no universo da comunicação social (comecei em Porto Alegre no início da década de 60 do século passado), o debate de idéias e as manifestações profissionais oscilam entre o direito divino e a livre expressão no jornalismo. No entanto, o período universitário, de 60 a 63, 64 (já que cursei também Letras na Universidade Federal do Rio Grande do Sul), sublinhava, no aprendizado acadêmico, a responsabilidade social do comunicador. Esta se faz presente tanto numa simples notícia quanto na crítica ou no artigo de opinião explícita. No dia 31 de março de 1964, quando minha turma colava grau e ouvimos do paraninfo, o cientista social Leônidas Xausa, "que alguma coisa muito grave estava acontecendo em Minas Gerais", foi inevitável o sentimento de perda dos ideais daqueles jovens jornalistas. Mas, ao mesmo tempo, explodia o ímpeto da resistência coletiva. Dos sete formandos daquela noite histórica, não tenho notícia de nenhum que tenha virado as costas à responsabilidade social para se fechar no solo individualista.

O momento fértil que avivou a trincheira da responsabilidade social no exercício profissional foi, sem dúvida, marcado pela pesquisa e pela educação universitária. Sempre que vem à baila a necessidade ou não do diploma de jornalista (e participo dessa confusão desde os primórdios de estudante), fico espantada com a ignorância histórica e as falácias que se vendem por aí. Até confesso um certo esgotamento, pois há uma bibliografia nacional e internacional sobre o assunto e basta ser um pouco mais sério para não tratar do tema se valendo nem do chute livre, nem do viés monocausal dos interesses corporativos. Há que recorrer, sim, a todo um contexto sociocultural e histórico que cerca a luta pela qualificação do profissional de comunicação, jornalista e/ou autor das narrativas da contemporaneidade.

Pois é na universidade que se consolidam, a caro custo, a mentalidade e a formação pragmática do agente cultural que vai produzir os sentidos da atualidade. Voltando ao fragmento que serve de epígrafe, colher a pluralidade de opiniões ou reportar o momento histórico e seus protagonistas, sobretudo os anônimos, é muito mais complexo e envolve uma responsabilidade social que um texto (lato sensu, não importa o suporte midiático) ligeiro de opinião individual não reflete. A tendência liberal é cada um dizer o que pensa. Por isso mesmo, o educador em cursos de jornalismo tem tanto trabalho (pedagógico) para deslocar o aprendiz de feiticeiro de comentarista, editorialista, vocalizador de achismos, para um rigoroso, disciplinado e criativo repórter.

A experiência da pesquisa e da pedagogia, essa sim, alimenta o laboratório essencial dos cursos de comunicação (como todos os demais): a responsabilidade social. Não se inventou outra forma de socializar essa experiência. Os autodidatas tendem a se exacerbar no direito divino da própria inspiração; os especialistas de outras áreas de conhecimento raramente se prestam ao papel de repórter, inclusive para ouvir aqueles especialistas que não partilham de seus repertórios; os comentaristas consagrados defendem seu ponto de vista com unhas e dentes. Onde fica a mediação social que não só leva a informação das fontes para a audiência como traz da audiência os dilemas cotidianos para as estruturas de poder (que, em geral, se confundem com as chamadas fontes)? Esse orquestrador de sentidos da atualidade se vê compelido então a deslizar do ego e do que este tem a dizer para os outros protagonistas sociais, que estão mergulhados numa vivência concreta longe dos holofotes e das interpretações preconcebidas no mundo das ideologias. O diálogo social, preconizado pela democracia, não surge de geração espontânea: a universidade, concebida no tripé pesquisa-ensino-extensão, pode contribuir mais do que qualquer estágio no mercado de trabalho para inocular no educando o vírus do direito social à informação.

Não se pode esquecer que foi nos fóruns de pesquisa universitária que a América Latina marcou posição nos anos 1970, ao levantar a bandeira da Nova Ordem da Informação. Justamente no contexto das relações injustas Norte-Sul (numa época em que ainda se pautava o conflito das economias Leste-Oeste), os latino-americanos, unidos à África e à Ásia, reivindicavam o direito social à informação, criando os próprios pólos geradores de significados do Sul e fazendo frente à hegemonia material, tecnológica e simbólica do Norte. A recorrente era da globalização na versão atualizada do fim do século 20 prometeu superar esse movimento histórico da Nova Ordem Sul-Norte, no entanto os profissionais que estão hoje se formando nas escolas de comunicação ou os que voltaram à universidade para a educação continuada retornam, com vigor, ao tema da injusta distribuição da renda simbólica (aí contida a informação para a cidadania) no planeta. As promessas do admirável mundo virtual se esvaem nas inúmeras mazelas da chamada comunicação social, que não passa de uma deficiente divulgação de conteúdos dirigidos ou sentidos burocráticos que mantêm o estado de coisas da humanidade.

Vale lembrar que a produção simbólica é sobretudo regida pelas pautas da inércia e há pouco espaço para a criação de novos significados. É mais fácil um profissional, desses que não se envolveram na universidade com a responsabilidade social, tocar rotinas jornalísticas e até ascender individualmente na carreira do que resistir, enfrentar os cerceamentos e se desenvolver na técnica de trabalho, na estética transformadora e na ética solidária ao desejo coletivo. Muito se discute a respeito de capacidades profissionais e os empresários chamam a si os treinamentos para a mão-de-obra egressa das faculdades; os profissionais que ascendem a postos de poder confundem sua assinatura opinativa com estilo literário e, em vários momentos históricos, da ditadura militar à democratização, ocorrem erupções da questão ética. Assim fragmentadas, ética, técnica e estética constituem problemas para os quais se oferecem soluções igualmente individualizadas.

A mais recente polêmica em torno da ética jornalística e do projeto do Conselho Federal vem nesse bojo. A par do desastrado encaminhamento, aliás, também uma partição - ao ser endereçado do Executivo ao Legislativo sem amplas mediações sociais -, há a expressão de uma utopia não realizada na prática comunicacional, a do direito social à informação. Afinal, sindicatos de jornalistas, associações de imprensa, conselhos de redação, regulações constitucionais, códigos de ética etc. não dão conta do problema. E não se trata de uma questão corporativa ou da ameaça pura e simples à liberdade de imprensa. Esses argumentos têm pouco de nacionalidade complexa, parecem mais conversa de botequim. Até agora me recusei a entrar no mérito desse debate que, como em outras oportunidades, tende a arrefecer, porque me pareceu mais conveniente levantar aquilo que tem sido esquecido: a importância do projeto educacional tanto na formação de comunicadores quanto na formação da leitura ativa dos meios de comunicação no ensino fundamental e médio.

Muito se aprende de direito social à informação quando se põe na roda uma narrativa da contemporaneidade produzida a partir da pesquisa dialógica, por exemplo, junto a leitores da periferia de São Paulo, ou leitores de um sarau nas bibliotecas, ou na leitura paradidática de alunos de escola pública noturna (oficina desenvolvida no projeto pedagógico São Paulo de Perfil, 26 livros-reportagem publicados com meus alunos na USP, a partir de 1987). Por sua vez, o estudante e o estudioso de comunicação, quando militantes dessa pesquisa, se constroem e reconstroem constantemente para se tornar dignos da posição de autor-mediador. A mediação se define na linguagem dialógica e aí aperfeiçoa a legibilidade técnica, porque trabalha afeto ao outro e com ele descobre a poética autoral de uma cultura, de um povo.

Depois de tantos anos na linha de frente, no período das apostas no jornalismo pré-ditadura, depois nas lutas da resistência, no enfrentamento com a censura e com a tortura, a seguir no envolvimento intenso com a redemocratização, e hoje na resistência à tentação pessimista perante a incompletude da utopia social, resta luminosa esta outra aposta, a da educação.

Cada vez que vejo na televisão um ex-aluno em cujos olhos transparece a ética solidária, cuja armação narrativa é consistente por ser complexa, plural, plena de interrogações, e não de respostas, cuja sensibilidade lhe dá um brilho de afeto, digo a mim mesma: vale essa aposta. Esse profissional, que conheci nos seus verdes anos, não abdicou do principal aprendizado da universidade - a responsabilidade social. Felizmente essa epifania se repete ao encontrar um texto na mídia impressa, jornal ou revista, no rádio ou em um portal. Bato no peito, a história do jornalismo se faz não na corrente hegemônica da livre expressão ou nos desvarios egocêntricos do Direito Divino, mas nessas jóias coletivas que o Repórter, Poeta de seu tempo, nos oferece de maneira despojada e, ao mesmo tempo, tão autoral.

Cremilda Medina é jornalista e pesquisadora, professora titular da Universidade de São Paulo e coordena a Comunicação Social da USP