Economia

O público ignora o conjunto de programas de combate à pobreza e de inclusão social do governo federal, o que impede que possam ser avaliados, criticados ou elogiados

O aspecto mais discutido da atual gestão federal é – de longe – a política econômica, especificamente a gestão fiscal e financeira, de molde ortodoxo, que o presidente adotou, contra as expectativas tanto dos que o apoiaram como dos que temiam sua eleição. Quase todos criticam ou elogiam o governo, em função das políticas do superávit primário e dos juros. Sem negar a importância dessa discussão, é evidente que ela deixa na sombra quase todas as demais políticas do governo. Durante mais de vinte anos o PT, sob a liderança de Lula, envolveu-se em todo tipo de lutas sociais, que se voltavam todas contra o enorme desnível entre o Brasil bem de vida e a massa de pobres e miseráveis. É óbvio que a principal prioridade de um governo petista teria de ser exatamente o resgate do brasileiro que não come regularmente três vezes ao dia, que não tem trabalho e renda fixos, que está à margem de quase tudo o que dá dignidade ao ser humano nos albores do século 21.

Seria de esperar que grande parte da atenção pública estivesse focada nas políticas do governo Lula que atendessem a essa prioridade. Mas, paradoxalmente, não está. Dentro da miríade de discussões sobre o que o governo faz e deixa de fazer, há algo como um buraco negro: não se conhece, a não ser fragmentariamente, o que está sendo feito a esse respeito. O público ignora o conjunto de programas de combate à pobreza e de inclusão social que o governo está implementando, o que impede que possam ser apreciados, avaliados, criticados ou elogiados.

Não pretendemos preencher a lacuna nos limites deste artigo. O que tentaremos aqui é apenas fundamentar a probabilidade de que o governo Lula esteja cumprindo, em alguma medida, o que dele se espera. Para saber em que medida, seria necessário dispor de informações sobre numerosos programas, de forma sistematizada, a partir de seu acompanhamento atualizado, o que interessaria ao próprio governo instituir.

Parcerias na luta contra a exclusão

Há que distinguir programas de assistência dos que promovem a inclusão econômica. É incumbência do Estado, há muito tempo, assistir os desvalidos, o que sem dúvida alivia carências básicas, no limite salva vidas e evita a degenerescência da vida social entre os excluídos. Mas isso, por si só, não acaba com a pobreza. Só o fazem programas que promovem ou apóiam esforços no sentido de dar aos pobres oportunidades de ganhar a vida com dignidade e com chance de deixarem de ser pobres. São os chamados programas emancipatórios ou estruturantes. Tanto programas assistenciais como estruturantes são necessários – e o ideal é que se complementem.

Programas assistenciais podem ser desenhados e executados pelo governo, mas os emancipatórios exigem a participação ativa dos beneficiários. O que implica parceria do governo com as comunidades pobres e dos que já estão na luta para melhorar suas condições de vida e de trabalho. Os parceiros da sociedade civil – em especial as associações dos próprios beneficiários – têm um papel crucial no processo, sendo o do governo dar apoio material e político, importante, mas com o tempo cada vez mais dispensável.

A emancipação dos excluídos implica a destruição do tecido social que os submete e a construção, em seu lugar, de um outro que sustente sua transição à normalidade. O somatório dessas ações locais e seus efeitos socioeconômicos constitui uma revolução social - que é o objetivo de todos os movimentos sociais de setores marginalizados, economicamente carentes, discriminados e subjugados. Dos sem-terra, das comunidades indígenas e quilombolas, dos catadores de lixo, dos extrativistas na floresta, das mulheres, dos desempregados etc.

Embora pouco conhecido do público, há um processo de revolução social em curso no Brasil, protagonizado por esses movimentos, há décadas. Ele se dá um pouco por toda parte, nos sertões, nas comunidades pesqueiras do litoral, entre pequenos agricultores, quilombolas e nas periferias metropolitanas, com resultados concretos expressivos, que, no entanto, demoram por aparecer. Esse processo tem contado com o apoio de entidades de fomento, em geral ligadas à Igreja, e de alguns governos locais.

É óbvio que um governo do PT tem muito mais condições que qualquer outro de formular, em conjunto com os movimentos sociais diretamente interessados, programas emancipatórios. As mulheres e os homens que compõem este governo têm familiaridade com os movimentos sociais, muitos provieram deles e são solidários com seus objetivos. Por isso, não há barreiras de desconfiança a superar, entre os representantes dos movimentos e do governo. As ações são planejadas em conjunto e sua implementação, no que concerne à participação do governo, também.

Programas emancipatórios

De todos os programas emancipatórios do governo federal destaca-se, pela importância, o da reforma agrária. O governo adotou um novo modelo de reforma agrária, que se distingue do anterior por fazer dos assentamentos espaços integrados ao desenvolvimento territorial, aumentando de R$ 7.700 para R$ 16 mil os recursos à disposição de cada família assentada. Será promovida a integração produtiva entre os assentamentos de reforma agrária, antigos e novos, com posseiros regularizados e agricultores familiares, em cada região.

Também serão fomentados o associativismo e o cooperativismo. Um novo programa financia a integralização de cotas do capital de cooperativas rurais de crédito, até R$ 500 por agricultor. A realização da reforma agrária prevê parcerias entre diversos ministérios, bancos federais, Conselhos de Desenvolvimento Rural Sustentável e universidades. A reforma agrária tornou-se uma política transversal do governo como um todo. As metas de assentamento estão, naturalmente, aquém do reivindicado pelo movimento. Mesmo assim, em 2003-2006 o governo de Lula deverá assentar em média 100 mil famílias/ano, o que representa um aumento de 50% em relação à média de 65 mil dos oito anos do governo de FHC.

O mais importante é que o governo já começou a investir muito mais na agricultura familiar, a qual inclui os assentamentos de reforma agrária. Foram R$ 2,25 bilhões em 2002-3 (no governo anterior), que passaram a R$ 4,5 bilhões em 2003-4 e a R$ 7 bilhões em 2004-5. O número de famílias beneficiadas passou de 950 mil em 2002-3 para 1,4 milhão em 2003-4 e alcançará 1,85 milhão em 2004-5. Esses valores são de crédito do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf), que se destina a agricultores de baixa renda e cobra juros reduzidos com graus variados de subsídio. Além disso, os agricultores familiares estão agora autorizados a solicitar crédito de outras fontes (o que lhes era vedado), havendo mais R$ 1,5 bilhão a juros de 6% a 8,75% ao ano disponíveis.

Os benefícios dessa ampliação de recursos já estão sendo sentidos pela pequena agricultura, em todo o país. No mesmo sentido contribui o Programa de Aquisição de Alimentos da agricultura familiar, do Fome Zero. O governo, por meio da Conab, adquire alimentos no valor de até R$ 2.500/ano de cada família de agricultores que esteja habilitada ao Pronaf. Os alimentos são distribuídos às crianças como merenda escolar e a famílias necessitadas em assentamentos de reforma agrária, comunidades quilombolas e comunidades indígenas.

Grande parte das aquisições é antecipada: o governo fornece o dinheiro e no vencimento a família paga com sua produção ou em dinheiro. Isso significa que, se o preço aumentou entre o momento da aquisição e a colheita, o agricultor paga em dinheiro e o ganho fica para ele; se o preço diminuiu, o agricultor paga com a produção e o prejuízo fica com o governo. O programa representa o fornecimento de capital de giro ao pequeno produtor a juro zero e sem risco.

Alguns exemplos dos resultados das aquisições. Em Canudos, Uauá e Curaçá, no semi-árido baiano, o umbu é fruta típica, mas sem valor comercial. A Conab começou a adquirir umbu beneficiado por mais de 200 famílias, em forma de geléia, doce, compota e polpa para suco, para ser distribuído em creches, escolas e a famílias carentes da própria região. A agroindústria do umbu ofereceu trabalho à mulher e ao jovem. As famílias conseguem ganhar quase R$ 300 por mês.

Em Valente, também no semi-árido baiano, a Conab passou a comprar leite de cabra dos criadores para ser distribuído na própria região. Mais de 6 mil pessoas puderam passar a consumir o produto, a produção de leite de cabra dobrou e a renda familiar aumentou 50%.

Em Xapuri e Brasiléia, no Acre, e em Boca do Acre, no Amazonas, a castanha-do-pará (conhecida também como castanha-do-brasil) foi adquirida antecipadamente para ser beneficiada em unidades administradas pelas próprias comunidades, em parceria com o governo do Acre e 32 associações de produtores, encabeçadas por três cooperativas e uma associação. Foram beneficiadas 1.300 famílias, inclusive pela elevação do preço da castanha, entre janeiro e abril de 2004, em 106%, graças às compras da Conab. A elevação do preço beneficiou também outras 2.700 famílias que vivem da coleta da castanha. Atraídas pelos preços melhores, famílias dos bolsões urbanos de pobreza voltaram à floresta para praticar o extrativismo.

Em parceria com a prefeitura de Pelotas (RS), a Conab adquiriu alimentos produzidos pela agricultura familiar em oito municípios do sul do Estado e os distribuiu a 1.950 famílias em dezoito comunidades e a 25 escolas infantis, que somam 2.622 alunos. Também ganharam com a operação 719 famílias de agricultores, organizadas em onze associações.

Em todos os casos (e outros, que aqui não se relatam por falta de espaço), um dos resultados foi a estruturação e o fortalecimento da rede regional de associações e cooperativas. Em muitas regiões, os agricultores não estavam organizados e nunca tinham assinado um contrato de fornecimento com o governo. O programa induziu os próprios produtores a se associar e assim se livrar da dependência dos intermediários. Os preços se elevaram bastante, pois à demanda habitual dos intermediários se somou a da Conab. Outro efeito foi suscitar o aumento da produção, como ilustram os casos relatados.

A emancipação da pobreza exige mobilização, assistência técnica, comercial etc. e crédito. Quanto a este último quesito, em julho de 2003 uma medida provisória criou depósitos simplificados para pessoas pobres, que não tinham acesso aos serviços bancários. O limite de depósitos é de R$ 1.000. Após alguns meses, o depositante recebe oferta de um crédito, inicialmente de R$ 600, com juros de 2% por mês, na Caixa Econômica Federal, que de lá para cá já abriu quase 2,4 milhões dessas contas. O crédito não tem vencimento, ou seja, o depositante pode ficar com o dinheiro desde que pague os juros. Tendo repago o primeiro empréstimo, os seguintes que lhe são oferecidos têm tetos de valor cada vez maiores.

Em cinco bancos federais – CEF, BB, BPB, BNB e Basa – foram abertas cerca de 3,8 milhões de contas até agora e cerca de 3 milhões de empréstimos foram feitos no valor global de R$ 1,19 milhão1. O valor médio do empréstimo fica ao redor de R$ 400. Não resta dúvida que se trata de um importante programa de inclusão social, sobretudo pelas dimensões que vem atingindo. Mas a mal chamada “bancarização dos pobres” não chega a ser um programa emancipatório completo, pois ao crédito concedido não se soma nenhuma assistência técnica e gerencial aos setores marginalizados, que tentam se lançar a novas atividades.

Para atender a essa necessidade, foi instituído, em novembro de 2004, o Programa Nacional de Microcrédito Produtivo Orientado, que provê financiamento às entidades que já praticam o microcrédito, entre as quais se contam organizações não-governamentais (ONGs); Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIPs), sem fins de lucro; Sociedades de Crédito ao Microprodutor (SCMs), com fins de lucro; e cooperativas de crédito. Estas últimas têm atuado com êxito na intermediação do Pronaf e são hoje cerca de 1.400, com capacidade de estender a prestação de microcrédito produtivo orientado à maior parte do território nacional.

Não cabe neste espaço descrever outros programas. Só para dar uma idéia de sua variedade, apresentamos uma amostra de programas da Secretaria Nacional de Economia Solidária/MTE em parceria com outros ministérios: com o Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome e a CEF, de fomento de produção associada com os beneficiários do Bolsa-Família; com o Ministério da Saúde, de organização de cooperativas sociais com egressos de manicômios; com o BNDES, de apoio à recuperação de companhias em crise pelos ex-empregados, organizados em cooperativas; com o Ministério da Ciência e Tecnologia, de geração de tecnologia adequada para empreendimentos de trabalhadores associados; com a Secretaria de Direitos Humanos e a Secretaria de Inspeção do Trabalho/MTE, de organização de empreendimentos solidários em áreas de recrutamento de trabalhadores temporários, para prevenir o trabalho escravo e contribuir para sua erradicação; com o Banco do Nordeste do Brasil (BNB), de financiamento de fundos rotativos, que promovem a economia solidária em áreas pobres do Nordeste; com a Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir), de promoção do desenvolvimento de comunidades remanescentes de quilombos, através da formação de agentes de etnodesenvolvimento.

Conclusões

O desenvolvimento de programas emancipatórios pelo governo federal, em parceria com governos estaduais e municipais, agências de fomento da sociedade civil e movimentos sociais, deve resultar numa ampliação significativa dos processos de desenvolvimento comunitário, que constituem a melhor maneira de efetivamente combater a pobreza e evitar a criação de novas desigualdades sociais e econômicas.

Mas evidentemente não faltam críticas à limitação ou insuficiência desses programas. Em relação à reforma agrária, por exemplo, diz um dos líderes do MST, Pedro Stedile (Correio da Cidadania, 27/12/04), “o processo de reforma agrária do governo Lula anda a passos de tartaruga. (...) Faltam recursos, por culpa da política econômica. Faltam servidores para cumprir a meta. (...) O que teve de bom foi a implantação do seguro agrícola e a ampliação dos recursos do Pronaf, ainda que não cheguem à maioria dos assentados, mas pelo menos ampliou para os agricultores familiares”.

A avaliação de Stedile atribui a insuficiência da reforma agrária, no atual governo, à política econômica. Disso não dá para discordar: a prioridade dada aos credores da dívida pública limita os recursos não só para a reforma agrária como para todas as atividades finalísticas do governo. Mas essa limitação não impede o governo de avançar em políticas que impulsionam e apóiam transformações econômicas e sociais que reduzem a pobreza e a desigualdade. Ao focar exclusivamente na crítica da política macroeconômica, o debate torna-se unilateral e muito estreito. A limitação do gasto social do governo, em conseqüência dos juros elevados que gravam a dívida pública, não impede, embora dificulte, a realização de políticas de assistência social e emancipatórias pelo governo.

Sem deixar de discutir e criticar aspectos da política fiscal e monetária, é essencial que apreciemos todas as políticas do governo e avaliemos seus efeitos. Só para ilustrar, é justo criticar os enormes juros que o oligopólio bancário impõe a produtores e consumidores em geral; mas convém considerar também que os agricultores de baixa renda, os associados de cooperativas de crédito, os depositantes em contas simplificadas, os assalariados com carteira assinada e os aposentados passam a ter crédito a juros bem menores, graças à política monetária deste governo. Está havendo redistribuição de renda e de capital em benefício dos mais necessitados, através de acesso a crédito mais barato, o que contrabalança em parte a política monetária de elevação da taxa Selic de juros do Banco Central. Esse é o lado oculto do governo, que deveria ser trazido à luz para que a opinião pública (sobretudo de esquerda) possa julgar o governo federal de forma justa e adequada.

Paul Singer é economista, secretário Nacional de Economia Solidária do Ministério do Trabalho e Emprego