Internacional

As políticas do presidente reeleito  atendem diretamente à classe dos milionários dos EUA

A vitória da direita norte-americana em 2 de novembro é irrecorrível. O presidente obteve a maioria dos votos populares, assim como os do Colégio Eleitoral. Os republicanos marcaram ganhos importantes no Senado e na Câmara. Os referendos de conotação conservadora, como aqueles contra o casamento gay, foram todos aprovados. Por certo, as razões dessa grande onda conservadora são múltiplas.

Que democracia?

Em primeiro lugar, apesar da proclamação insistente da mídia em torno de taxas "altas" de participação no escrutínio, vale observar que cerca de 40% dos norte-americanos nem sempre votaram, o que é bastante incomum na grande maioria das democracias ocidentais. Para um grande número de pessoas, a eleição não representa um meio de expressão num sistema político totalmente dominado pelo dinheiro. Os US$ 700 milhões oficialmente injetados à guisa de contribuição pelos dois campos chegaram à população em forma de mensagens publicitárias agressivas, plenas de mentiras e omissões. O verdadeiro debate de idéias aflorou por ocasião dos duelos televisivos, mas mesmo assim num formato acanhado. Longe de querer marcar sua diferença, o candidato John Kerry obstinou-se durante a maior parte da campanha em defender posições bastante semelhantes às de seu adversário sobre a guerra, a economia e a política exterior.

Para o presidente candidato, a situação lhe pôs a faca e o queijo na mão para atrair a atenção sobre o medo da população, alimentado o tempo todo por meio de mentiras gigantescas, como aquela que tornava Saddam Hussein o responsável pelos atentados de 11 de setembro de 2001. Novamente e de forma mais contundente, o sistema político norte-americano se revelou excludente, discriminatório e manipulador. Ao eliminar o próprio conceito de partidos políticos (tanto democratas quanto republicanos funcionam como simples máquinas eleitorais), ao entranhar-se numa mecânica eleitoral absurda (que exclui toda a proporcionalidade), ao excluir de supetão todo o controle sobre as despesas eleitorais (o que dá campo livre para ricos lobbies ligados às grandes empresas), a democracia norte-americana tão cara a Tocqueville se tornou uma "democratura" vulgar que, na realidade, faz inveja a muitos ditadores no mundo.

A grande coalizão

Mas, além desses fatores sistêmicos que ameaçam a democracia, há outros que explicam a vitória de uma direita "dura". Por todas as evidências, o fenômeno Bush, mais ainda nesta eleição de 2004 do que em sua primeira captura da Presidência, em 2000, ampara-se numa vasta coalizão conservadora que engloba diversas tendências. O próprio presidente Bush afirmou repetidas vezes que seu projeto se apóia sobre um setor importante do grande establishment econômico e financeiro do país. "Vocês são minha base", declarou ele a uma platéia lotada de milionários.

As políticas econômicas de Bush, calcadas na redução de gastos do Estado e na diminuição de impostos diretos, são feitas sob medida para responder às expectativas de uma classe crescente de milionários e até mesmo de bilionários. Mais especificamente, Bush se apóia sobre o superinfluente complexo militar-industrial que lucra bastante com os extraordinários aumentos do orçamento da Defesa. Assim como sobre o poderoso lobby das companhias energéticas, especialmente as petrolíferas. No início de seu primeiro mandato, antes de 11 de setembro de 2001, Bush tentara vender (sem grande sucesso) a idéia de que os Estados Unidos se confrontavam com uma "crise de energia" e que era preciso investir rapidamente bilhões de dólares na construção de novas usinas e na exploração de novos recursos. O vice-presidente Dick Cheney, descrito com freqüência como a verdadeira eminência parda da Casa Branca, provém justamente desse setor empresarial dominante que lida com a área militar e a de energia.

Os neoconservadores

No entanto, seria simplista explicar Bush e a direita republicana simplesmente por suas ligações com o mundo dos negócios. O projeto se ampara igualmente num influente grupo de políticos e de intelectuais denominados "neoconservadores"; os quais propõem, desde o início da década de 80, uma verdadeira "revolução" conservadora nos Estados Unidos. No plano interno, os neoconservadores querem erradicar o sistema keynesiano dominante a partir da grande crise dos anos 30. Inspirados pela economia política de direita de Frederick Hayeck e de Milton Friedman, os neoconservadores pretendem impor urna reestruturação em profundidade da sociedade e do Estado, desqualificar os setores populares, quebrar no meio a classe média e favorecer aqueles que eles consideram como os únicos criadores da riqueza, os empresários. Em sua visão de mundo, a saúde, a educação, o meio ambiente, a cultura não passam de mercadorias que devem ser oferecidas no mercado, nada mais do que isso.

No plano externo, os neoconservadores são ainda mais radicais. Desde a época de Ronald Reagan no advento da Guerra Fria, eles propunham parar de se contentar em "deter" a União Soviética e se lançar ao ataque da segunda superpotência do mundo. Através da guerra no Afeganistão, conseguiram em parte realizar seus sonhos e, na seqüência, querem assegurar que a dominação militar norte-americana perdure sem nuance e sem concorrência. Intitulado New American Century Project, esse projeto quer mudar a distribuição de cartas do jogo, fazendo com que os Estados Unidos ajam militarmente de forma "preventiva"; punitiva e unilateral contra toda ameaça real ou potencial. O que significa, num primeiro nível, agredir os países considerados inimigos, "o eixo do mal". A aventura no Iraque, para os neoconservadores, é a primeira de uma longa série na qual os Estados Unidos sozinhos ou com o apoio de certos países poderão atacar o Irã, a Síria, a Coréia do Norte, Cuba e outros. E mais além do que o "eixo do mal" impedir Estados de constituir uma capacidade militar concorrente. Evidentemente aqui nos referimos à China, à Rússia e até eventualmente à União Européia. Para os neoconservadores, o projeto é relativamente simples e deve receber investimentos agora, uma vez que os Estados Unidos não têm concorrência em termos militares e é preciso criar uma situação na qual essa dominação continuará sem partilha durante um futuro bastante longo. Uma parte importante da administração Bush tem sido de fato constituída por esses neoconservadores, a exemplo do secretário da Defesa Rumsfeld.

Um projeto de massa
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Além dos bilhões de empresas militares e petrolíferas e além do projeto de intelectuais neoconservadores, o projeto da direita não poderia progredir sem uma base de massa. Afinal de contas, a grande massa de norte-americanos nada tem a ver com a Halliburton, a Boeing ou as grandes universidades de direita. A coalizão conservadora, porém, desdobrou-se na "sociedade civil"; apoiando-se na direita cristã evangélica, os "cristãos renascidos". Eles são organizados dentro de urna miríade de igrejas e seitas e somam, segundo diversas estimativas, até 80 milhões de pessoas (um adulto em cada três).

A coalizão Bush conseguiu mobilizar esse imenso segmento da sociedade, através do retorno da igreja ao ensino público, da luta contra as conquistas do movimento das mulheres (contracepção e aborto), da luta encarniçada contra as políticas de defesa das minorias raciais, sexuais e culturais. Para a maioria desses 80 milhões de pessoas, num mundo incerto, mutável e complexo, é preciso se refugiar nos valores "fundamentais" (Deus, família, pátria) e destruir a modernidade que foi fonte de transtornos nos últimos 50 anos. Para essa gente, Bush promete não uma vida melhor (suas políticas econômicas criam ainda mais desemprego, exclusão e pobreza), mas uma dignidade retomada, o sentimento de pertencer a uma comunidade escolhida e prometida por Deus. Em 2 de novembro foram essas comunidades que saíram para votar em massa, e não os jovens, os afro-americanos e os outros setores que os democratas esperavam mobilizar. Essas comunidades são organizadas, "conscientizadas" por urna liga densa de associações, de mídias e, obviamente, de centros religiosos e geram o militantismo que durante anos foi característico da esquerda.
Uma sociedade atomizada diante da ascensão da direita

A epopéia dessa direita dura começou sob a égide de Ronald Reagan, que pôs o movimento em marcha atacando alguns pilares do sistema keynesiano, notadamente o setor público e os sindicatos. O partido democrata, outra "grande aliança histórica" que coligou uma grande parte da classe média e das classes populares, assim como o establishment costeiro, nunca se restabeleceu verdadeiramente. Ao contrário, sob a direção de Bill Clinton os democratas evoluíram em direção à direita, sem adotar, no entanto, o estilo virulento e radical de seus adversários neoconservadores. Mas, ao eliminar da paisagem política a perspectiva keynesiana, Clinton e os "novos democratas" prepararam e ajudaram a revolução conservadora. Hoje, diante da coalizão da direita, constata-se uma oposição por certo importante (49% dos eleitores), porém atomizada, dispersa, incoerente e sem perspectivas comuns

Kerry tentou criar, sem êxito, uma grande aliança "qualquer um menos Bush"; mas isso não foi suficiente. Para os setores populares mais afetados pelo neoliberalismo, que há 25 anos vêm sofrendo urna queda aos infernos (desemprego ou subemprego, desqualificação, precariedade etc.), não há verdadeiramente um projeto anti-Bush coerente. Para os jovens, para os movimentos sociais e ambientais, votar em Bush era um reflexo, não uma estratégia. Para o movimento sindical, que não passa de uma sombra do que foi (menos de 10% da força de trabalho é sindicalizada), os recursos para combater a direita inexistiam.

Um futuro próximo que se anuncia duro

Atualmente há um debate no seio da equipe Bush. Os ultrafalcões afirmam que é hora de atacar, de ir ainda mais adiante. Afinal, dizem eles, o mandato está mais forte e mais claro. É preciso acabar de uma vez por todas com o "irritante" iraquiano, preparar as próximas etapas sobretudo no Oriente Médio, mas sem esquecer Cuba, Venezuela e outros tantos alvos potenciais. É preciso arrematar a reestruturação da sociedade rachando o que resta do setor público. É preciso dar continuidade à "revolução moral" que inclui tanto a "dessecularização" da sociedade como a criminalização da dissidência. Para a outra facção, o establishment econômico, notadamente, pende mais para urna política de acomodações. Temem-se os perigos da grande polarização que se acentua atualmente nos próprios Estados Unidos.

Teme-se também que as aventuras militares prometidas como muito fáceis possam conduzir ao caos que se vê no Iraque. Dentro desse contexto, propõem os "moderados", é preciso retardar o tempo, cooptar certos setores democratas, recriar pontes com o resto do mundo, começando pelos aliados "tradicionais" como os principais países europeus. De um lado como do outro, porém, está fora de questão recuar dos objetivos essenciais da revolução conservadora. As políticas neoliberais certamente devem ser aprofundadas e mantidas. A imposição de uma "pax americana" sob controle militar norte-americano não está mais em discussão.

Resistências e multidões

O projeto de Bush não passa nos Estados Unidos por grande parte da população. A metade dos eleitores disse não. Grande parte das pessoas se exprime de outra for ma, a exemplo das gigantescas mobilizações contra a guerra no ano passado. A lenta erosão do Partido Democrata, que perdei durante muito tempo o aliado de facto dos movimentos sociais, suscita muitas interrogações e pesquisas sobre as estratégias  políticas.

Evidentemente, no sistema político atual, não há espaço para uma alternativa progressista, isso explica por que maioria dos movimentos progressistas se conformou em fazer campanha para Kerry (a candidatura alternativa de Ralph Nadei ficou confinada à margem). Mas a política não se detém aí e se exprime por todos os tipos de via, originando novas alianças sociais entre jovens, minorias raciais e culturais, trabalhadores da indústria e de serviços fragilizados pelo neoliberalismo. Essas novas alianças se tornaram visíveis por meio de acontecimentos espetaculares (as manifestações de Seattle de 1999), mas o que mais conta é o trabalho de formiga de novas redes e de novas organizações (como Jobs with justice), que recriam um tecido social, uma solidariedade de base e uma capacidade de resistência importante. Em todo caso, será provavelmente aí que as "multidões" da revolta e de alternativas irão se organizar nos próximos tempos.

Tradução: Thaís Costa

Pierre Beaudet é diretor de Alternatives, no Canadá