O encontro deve ser interpretado como mais um passo, não o começo nem o fim, dado num processo integracionista
O encontro deve ser interpretado como mais um passo, não o começo nem o fim, dado num processo integracionista
“Depois de Ouro Preto, o Mercosul continua firme. Seus principais problemas também. Não houve a festa esperada. Tampouco a morte anunciada.”
Felix Peña, “Hay vida después de la Cumbre del Mercosur en Ouro Preto”, em La Nación, 21 de dezembro de 2004, p. 3.
O lead com o balanço realizado por Félix Peña a respeito dos resultados de Ouro Preto constitui, em nossa opinião, uma boa síntese sobre o que permanece dessa cúpula da qual, por variados motivos, tanto se esperou, mas da qual tampouco emanou (conforme esperavam e instigavam os lobbies anti-Mercosul) a morte ou minimização do bloco. Em mais de um sentido, como tentaremos provar mais adiante, talvez o mais importante quanto aos conteúdos efetivos do que se resolveu em Ouro Preto ainda careça de pleno entendimento e de configuração (os acontecimentos históricos seguem ganhando significações ex post facto, geralmente em meio a conflitos mais ou menos visíveis e significativos). De onde se infere que importa muito a construção de um relato preciso sobre como se chegou a Ouro Preto, quais foram os signos mais substantivos da conjuntura que emoldurou a reunião de mandatários e o que em definitivo se podia esperar ou não das decisões finais. E na verdade torna-se necessário reafirmar esta última exigência já que, na imprensa da região e também nos pronunciamentos de proeminentes dirigentes dos governos dos quatro países-membros, em nossa opinião, tem havido uma abundância de versões superficiais ou julgamentos arrebatados em torno do que ocorreu em Ouro Preto. E, como se sabe, sem um bom relato dificilmente se pode fundamentar uma interpretação consistente.
Expectativas desmesuradas
A primeira coisa que é preciso ressaltar ao registrar os antecedentes da cúpula é que em muitos âmbitos e círculos interessados na integração da região, em especial naqueles mais empenhados em favor de um aprofundamento institucional e econômico do Mercosul, Ouro Preto foi percebido como a possibilidade de um avanço relevante. As expectativas tinham seus fundamentos. Completavam-se os dez anos do Protocolo de Ouro Preto I, que na verdade havia configurado um marco na construção institucional do bloco. Desde 2002 e por instâncias do Itamaraty primeiro e, na seqüência, de uma aproximação programática entre Argentina e Brasil (que os governos de Lula e Kirchner não começaram, mas sem dúvida radicalizaram e planejaram estrategicamente, através de pronunciamentos como os do chamado “Consenso de Buenos Aires” ou a “Ata de Copacabana”), percebia-se um retorno político à aposta integracionista por parte da maioria dos países da região. A ele se somava um interesse crescente dos países da CAN e também do México em estabelecer outros tipos de sociedade com o bloco ou em integrar propostas ainda mais ambiciosas, como a chamada “Comunidade Sul-Americana de Nações”, fundada em Cuzco em 8 de dezembro passado. Desse modo, persistia e se aprofundava a atenção dirigida ao Mercosul por parte de outros blocos internacionais ou de países poderosos, em busca de acordos comerciais de diferentes tipos.
Se tudo isso suscitava entusiasmo, o que ocorria dentro da própria estrutura orgânica do Mercosul também podia dar lugar a leituras similares. Para citar um exemplo, as propostas programáticas lançadas na Cúpula de Assunção de junho de 2003 (a ambiciosa iniciativa intitulada “Objetivo 2006”, apresentada pelo Brasil; a argentina, voltada à criação de um Instituto Monetário do Mercosul como base de uma gradual convergência cambial; e a paraguaia, dirigida à consideração do conflitivo tema das assimetrias e flexibilidades), que rapidamente se converteram na agenda possível de um proclamado “novo Mercosul”, deram origem a uma nova dinâmica no funcionamento de vários órgãos do Mercosul. Com efeito, o trabalho que se seguiu a essa cúpula permitiu um aceleramento em torno de diferentes iniciativas que envolviam diversos organismos do bloco, obtendo-se em alguns casos melhoras e concretizações auspiciosas. Por último, também a consolidação de uma orientação comum de esquerda ou centro-esquerda nos países da região, impulsionados pelo prognóstico cada vez mais fundamentado de uma vitória quase segura da Frente Ampla-Encontro Progressista-Nova Maioria no Uruguai, finalmente concretizada no primeiro turno, em 31 de outubro de 2004, impelia na direção das expectativas. Como nunca, no período 2002-2004 o Mercosul se converteu em um tema forte da agenda dos processos eleitorais nacionais dos países-membros, ao mesmo tempo que o triunfo dos candidatos mais pró-Mercosul coincidiu nesse período com novas identidades ideológicas e novos modelos integracionistas, por certo diferentes daqueles dos presidentes que firmaram o Tratado de Assunção em março de 1991.
Mudanças da conjuntura
Não obstante, já durante a maior parte de 2004 e, em particular, durante seu segundo semestre, quando se aproximava o tempo culminante das negociações e sobretudo das decisões, começaram a emergir sinais contraditórios e até mesmo adversos. O mais preocupante do caso foi que ressurgiram com força os já conhecidos lobbies anti-Mercosul, mas com o agravante de alguns novos integrantes que pareciam haver muito recentemente trocado de fileiras, e sem enfrentar respostas categóricas por parte dos grupos mais propensos à consolidação e ao avanço do Mercosul. O fracasso do acordo com a União Européia começou a ser brandido, com equívoco e intencionalidade manifestos, como a confirmação de que a negociação do bloco como um todo com terceiros era lenta, pesada e não produzia resultados favoráveis. Previsivelmente o passo seguinte dessas vozes era uma acirrada defesa da via dos acordos bilaterais, em conformidade com o formato preferido pelos EUA.
A discussão aberta sobre os temas institucionais frente à negociação de um Protocolo de Ouro Preto II de signo reformista começou a ser caricaturada como inflação institucional. A opacidade e a pura desinformação passaram a ganhar o campo das negociações, que mudaram de âmbito e de interlocutores várias vezes em muito pouco tempo, precisamente quando a hora das definições havia chegado frente a uma agenda extensa (talvez demasiado extensa) de iniciativas e propostas. Talvez o mais inquietante foi que os bloqueios e as vacilações começaram a provir dos negociadores brasileiros, os que até o momento mais haviam impulsionado uma perspectiva reformista, o que sem dúvida gerou tanto suspeitas como ceticismo acerca de até onde o Brasil estava disposto a chegar nas resoluções. A essa altura, passaram a chamar a atenção matizes relacionados ao entusiasmo integracionista entre um setor do Itamaraty (possivelmente o mais brando quanto a compromissos radicais com a região) e os principais porta-vozes do Partido dos Trabalhadores. Para citar um exemplo bastante emblemático de uma figura tão respeitada na região como Marco Aurélio Garcia, nesses meses anteriores o principal assessor em matéria de política externa de Lula se preocupou em reiterar em mais de uma oportunidade que todos na região “eram exigidos a ir mais fundo e mais rápido”.
Por certo que nem Marco Aurélio nem os que se apresentavam impelindo as reformas institucionais e a definição de acordos fundamentais na área econômica afirmavam lógicas de mudança radical ou de teor de refundamentação. Sobre o tema específico de como mudar havia um consenso importante em torno de certos assuntos: que a mudança devia ser paulatina, negociada, não imposta; que também tinha de ser integral, pois, se se propunha a modificação de um protocolo institucional, o que se estava buscando era criar instrumentos idôneos para responder às exigências de uma nova agenda, para a qual o status quo não resultava suficiente; que se devia avançar com audácia na discussão dos temas largamente dependentes dos acordos de livre-comércio e avançar a sério na perspectiva de aperfeiçoamento de uma União Aduaneira. Assim, talvez a primeira das convicções apontasse que a hora dos diagnósticos e das propostas (e sobretudo a dos discursos e pronunciamentos) havia dado lugar ao tempo das decisões. Também naqueles dias cresceu a noção de que a expansão pomposa do bloco não estava necessariamente sintonizada com o aprofundamento efetivo do Mercosul.
A essa ponderação sobre como se processam as mudanças institucionais em um processo integracionista tão complexo como o Mercosul somava-se o registro de um debilitamento progressivo no trato entre Argentina e Brasil, eriçado continuamente por reclamações (sobretudo da primeira) acerca dos desníveis de intercâmbio comercial, em especial na área dos produtos industriais e nas modalidades solitárias de negociação de fortes pacotes de inversões diante de terceiros poderosos (leia-se o ocorrido com a visita à região do presidente chinês Hu Jintao nas semanas anteriores). Ficava também evidente que as exigências das situações persistentes de autêntica emergência social nos países da região reforçavam a prioridade de atendimento à frente interna (em especial levando em conta a sensibilidade e a ótica de governos progressistas) e que não era tão imprudente articular essas demandas diligentes com as imprescindíveis concessões de qualquer negociação internacional ou regional.
Em suma, muitos motivos convergiram para que a inicial desmesura de expectativas em torno da Cúpula de Ouro Preto se reduzisse aceleradamente nos meses anteriores ao encontro de dezembro. Além da persistência de uma ou outra voz militante, o ceticismo começou a ganhar – também de forma exagerada? – os atores, que chegaram à cúpula com expectativas bastante baixas e com a firme intenção de denunciar a perda de uma nova oportunidade. Lembramos que já no encontro anterior havia diferenças em torno disso: enquanto a coordenadora de centrais sindicais afirmava com justiça sua intenção de dar uma forte advertência em sua mensagem aos governos, diante da constatação de que suas reivindicações e as do Foro Consultivo não seriam acolhidas, a Comissão Parlamentar Conjunta expunha por outro lado um acordo fundamental, não muito vistoso no que dizia, mas bastante relevante nas potencialidades de desenvolvimento que abria para o futuro, sob a perspectiva da criação de um Parlamento do Mercosul.
Os resultados de Ouro Preto
Todavia, a despeito de muito ceticismo e avisos agourentos, nisso incluída a ação militante que se seguiu depois da cúpula por parte daqueles representantes de interesses contrários à consolidação do Mercosul, a Cúpula de Ouro Preto deixou vários acordos e concretizações de importância. Vejamos alguns dos mais importantes:
- Eliminação da dupla cobrança da tarifa externa comum, para o que se concretizará a interconexão on-line das aduanas dos países-sócios;
- Autorização para que a Comissão Parlamentar realize todas as ações necessárias para que o Parlamento do Mercosul entre em funcionamento em 31 de dezembro de 2006;
- Autorização para a formação de “Fundos para a convergência estrutural do Mercosul e financiamento do processo de integraçãoo”, dotados em princípio de US$ 80 milhões e voltados a reduzir os desequilíbrios regionais e a melhorar de forma equilibrada a competitividade de todos os sócios do bloco;
- Regulamentação das compras governamentais, harmonizando-se requerimentos de diferentes teores e avançando-se em sua liberalização intrazonal;
- Criação de um “Foro Consultivo de Municípios, Estados Federados, Províncias e Departamentos do Mercosull”, substitutivo da anterior Reunião Especializada de Municípios e Intendências, orientada a impulsionar a coordenação de políticas integracionistas de nível local e sub-regional;
- Estabelecimento de grupos de alto nível em temas como direitos humanos, ampliação de empregos, facilitação de atividades empresariais, visando a proposição aos governos dos Estados Partes de políticas e iniciativas coordenadas nas referidas matérias;
- Confirmação do ingresso da Venezuela e do Equador como Estados Associados e formalização por parte da Colômbia de sua petição de entrada no bloco comercial;
- Concretização de acordos de livre-comércio com os países integrantes da União Aduaneira da África Austral (África do Sul, Namíbia, Botsuana, Suazilândia e Lesoto);
- Confirmação do acordo comercial com a Índia.
Embora outro dos resultados da cúpula tenha sido o amortecimento das rixas comerciais entre Argentina e Brasil, o contraste entre os discursos de Kirchner e de Lula não pôde ser mais evidente. Enquanto o presidente brasileiro se queixou “das vozes pessimistas que magnificam as dificuldades” em momentos nos quais o Mercosul revela “um grande poder de atração” (em referência à ampliação do número de países associados ao bloco), que lhe outorgará maior poder de negociação no que se refere ao projeto da Alca ou diante da União Européia, fiel a seu estilo, o presidente argentino não poupou críticas. “O que se diz”, assinalou, “continua longe do que se faz. (…) As decisões presidenciais não se refletem na mesa de negociações posteriores, onde parecem primar os problemas conjunturais locais, em detrimento da perspectiva regional.”
Independentemente dos gestos e das trocas de farpas nas declarações e atitudes enfrentadas, o certo é que o que ocorreu e sobretudo o que resultou de Ouro Preto nos deixam um balanço muito próximo ao sintetizado tão bem por Félix Peña em seu texto que serve de lead a este artigo. Além das expectativas geradas, Ouro Preto deve ser interpretado como mais um passo, não o começo nem o fim, dado num processo integracionista. De qualquer forma, ainda que sem dramatizações, não se pode ignorar que a conjuntura que se apresenta ao Mercosul em 2005 volta a ser crucial por vários motivos. Haverá uma mudança de governo no Uruguai, com um enfático foco no Mercosul como selo distintivo da nova política exterior, por certo bem diferente da posição do governo presidido por Batlle. Um Uruguai com um governo tão legitimado pelo pronunciamento das urnas (nada menos que vitória no primeiro turno e maiorias parlamentares em ambas as Câmaras) pode voltar a desempenhar seu papel tradicional de fator de equilíbrio na região e de intermediário entre seus dois vizinhos gigantes a fim de mitigar seus conflitos.
Independentemente de seu tamanho, conforme demonstrado em outras oportunidades, o Uruguai pode ser um centro efetivamente dinamizador em termos institucionais para a região. Ao mesmo tempo, apesar de que haverá eleições legislativas na Argentina, não haverá eleições no Brasil e no Paraguai, e o contexto econômico internacional parece mostrar-se favorável e por um tempo também estável para a região. A perspectiva de 2006, porém, parece ainda bem mais longínqua e incerta.
A partir do que se alcançou em Ouro Preto e com base num relato mais afinado dos limites e alcances de seus resultados, sem otimismos ingênuos, porém também longe de catastrofismos muitas vezes interesseiros, 2005 pode ser uma nova oportunidade que possibilite o aprofundamento do Mercosul. Já há idéias em curso que registram essa direção. Para citar apenas um exemplo, em um documento fechado de 7 de julho de 2003, a força política que acaba de ganhar as eleições no Uruguai convocava a realização de uma “Conferência Intergovernamental” com o objetivo de “adaptar e reformular o modo atual de funcionamento do bloco”. É preciso continuar negociando, pois é hora de os pronunciamentos e as propostas programáticas de 2003 serem confirmados ou desmentidos. Ou que pelo menos se avance “mais fundo e mais rápido” nessa direção.
Gerardo Caetano é historiador e cientista político, diretor do Instituto de Ciência Política da Universidade da República, no Uruguai, coordenador-geral da Escola de Governabilidade e Ação Pública do Centro Latino-Americano de Economia Humana, presidente do Centro Unesco de Montevidéu