Economia

Um intelectual preocupado com a inserção do Brasil na ordem econômica, social e política contemporânea

“Quaisquer que hajam sido as intenções dos autores do golpe militar de 1964, o seu efeito principal foi, sem lugar a dúvida, a interrupção do processo de mudanças políticas e sociais, entre elas, em primeiro lugar, a construção que se iniciava de uma nova estrutura agrária em nosso país. Cabe acrescentar que o dano maior do golpe foi feito ao Nordeste, onde era mais vigoroso o movimento renovador em curso de realização e onde eram (e ainda são) mais nefastos os efeitos do latifundismo.”

Celso Furtado, Paris, março de 2004. Para o livro Golpe de 64: 40 Anos Depois, editado pela Fundação Joaquim Nabuco.

“Para homens que se projetaram pela inteligência criadora e têm capacidade de influir pela força das suas idéias, não existem despedidas porque eles sempre estarão presentes.”

Celso Furtado, despedida de Raúl Prebisch da direção da Cepal, citado por Marcos Formiga.

No dia 20 de novembro de 2004, no Rio de Janeiro, onde morava, Celso Furtado faleceu aos 84 anos. O luto que cobriu o Brasil ecoou mundo afora. É que ele se tornara internacionalmente reconhecido como um dos mais importantes pensadores sociais do século 20.

Nascido numa pequena cidade do sertão da Paraíba, Furtado foi para o Recife fazer o então curso ginasial no tradicional Ginásio Pernambucano. Em 1939 mudou-se para o Rio de Janeiro, onde se formou em Direito aos 24 anos, na Universidade do Brasil (hoje UFRJ). Segundo revelou em entrevista a Roberto Pompeu de Toledo, publicada na revista Playboy em abril de 1999, seu pai o estimulara a ir para o Sul, pois acreditava que do Recife não saía mais ninguém que ia ter importância no Brasil. Era a máquina da desigualdade regional que já estava montada – e um dos temas de reflexão preferidos pelo Furtado economista e cientista social. Na mesma entrevista confessa que nunca lhe passara pela cabeça ser economista, como ficou conhecido depois. Ao chegar ao Rio, estava mesmo era fascinado pela música e pela literatura. Deve ter feito bem a seu espírito ter sido velado na sede da Academia Brasileira de Letras, instituição que integrava nos anos finais de sua vida. Seu primeiro livro, aliás, Contos da Vida Expedicionária – De Nápoles a Paris, é de ficção. Mas tinha de trabalhar para se sustentar e estudar, no Rio dos anos 40, e seu destino terminou sendo conduzido por outros caminhos.

Recém-formado, foi convocado em 1944 para servir na Itália pela Força Expedicionária Brasileira. Com as economias feitas nessa fase, resolveu financiar a continuidade de sua formação e rumou para Paris em 1946. Numa França que se mobilizava para se recompor das destruições da Segunda Guerra, fez seu doutoramento em economia na Universidade de Paris. O Direito já não o motivava tanto. Compreender o funcionamento das sociedades já o atraía muito mais. Confessa que queria muito entender as raízes da miséria nordestina. Daí para querer buscar as causas mais profundas do subdesenvolvimento de vários países foi um pulo. Furtado se dizia profundamente tocado pela macroeconomia porque ela via e tratava de entender o funcionamento do sistema econômico em seu conjunto. A obra de Keynes o marcou muito, confessou em seminário feito em João Pessoa, em 1990, para homenagear seus 70 anos. Tanto que, tendo sido sempre um homem de esquerda pelas suas posições políticas, nunca foi um marxista. Era um keynesiano de “gauche”, como muito cepalinos.

De volta ao Brasil, passa uma breve temporada no Rio trabalhando para a revista Conjuntura Econômica, da Fundação Getulio Vargas, mas logo vai para o Chile integrar os quadros da recém-criada Comissão Econômica para América Latina e Caribe (Cepal). Em Santiago trabalhou ao lado de Raúl Prebisch na tentativa de interpretar, com autonomia, a desafiante realidade latino-americana. A raiz de suas análises de corte estruturalista vem daí. Foi um dos construtores do chamado “pensamento cepalino”. A Cepal contestava as teorias “evolucionistas” do desenvolvimento visto como “etapas”, como defendia Rostow, e ia buscar na natureza do “engate” dos países latino-americanos na ordem capitalista mundial as causas mais profundas de um processo que considerava “específico”: o subdesenvolvimento. Furtado se convenceu disso e nos seus últimos livros reafirmava essa convicção, como o fez na Construção Interrompida. Desse período na Cepal algumas descobertas influenciaram sua atuação futura: a de convencer-se de que a industrialização era um caminho estratégico a ser percorrido pela América Latina (que não devia se contentar em ser um apêndice primário exportador do mundo desenvolvido) e de ver que o Brasil não ocupava o lugar de destaque que podia, por conta das imensas potencialidades de que dispunha. Descobriu isso ao produzir um informe sobre o desenvolvimento latino-americano.

De volta ao Brasil, encontrou clima propício para aprofundar as convicções que desenvolvera em Santiago. O Brasil preparava-se para entrar na era da industrialização pesada. Integrou o Grupo Misto Cepal-BNDE, que pensou o Brasil da era JK, de onde saiu para fundar a Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste (Sudene) e ser seu primeiro superintendente, em 1959. Em 1958 publicara sua obra-prima, o clássico Formação Econômica do Brasil.

Foi nesse período, final dos anos 50, que coordenou a elaboração do relatório do Grupo de Trabalho para o Desenvolvimento do Nordeste (GTDN), que originou e deu substrato inicial à criação da Sudene. O impacto das teses desse relatório foi enorme, tanto no Nordeste como nos centros de decisão do país. O Nordeste estava em quase convulsão social e o povo começava a eleger governadores de esquerda. A Igreja progressista se mexia e os movimentos sociais de cunho popular se ampliavam.

Furtado contestava, com argumentos técnicos, a tese central das elites agrárias nordestinas de que a seca era o grande problema da região. E dela vinha a chamada “indústria da seca” que as beneficiava e deixava o enorme contingente de sertanejos a mercê de “esmolas” quando o ano era de estiagem. O capítulo sobre as secas do relatório do GTDN defendia o contrário: as secas não eram a causa dos problemas regionais, eram o resultado de uma estrutura socioeconômica perversa e de políticas públicas que só beneficiavam os poderosos. Propunha quatro diretrizes que mexiam com as estruturas montadas: diversificar a economia da Zona da Mata (onde a cana reinava soberana desde os tempos coloniais e a miséria era maior que a do Nordeste seco, como também denunciava Josué de Castro); reestruturar a base produtiva do semi-árido (juntando o que as elites nordestinas não permitem juntar até hoje: água e terra boa para a maioria, ou seja, irrigação e reforma agrária); ocupar com a produção de alimentos e com nordestinos vindos do semi-árido as terras úmidas do Maranhão; e promover a industrialização (num processo que fosse capaz de criar uma nova classe dirigente de base urbana e pudesse se contrapor ao poder das velhas oligarquias). A ditadura bloqueou as iniciativas reformistas da Sudene, que foi sendo gradualmente cooptada pelo projeto de modernização conservadora implementado pelos militares.

No governo João Goulart, Celso Furtado acumulou a atribuição de dirigir a Sudene com a de ser o primeiro ministro do Planejamento do país, quando coordenou a montagem do Plano Trienal, cuja implementação foi suspensa pelo golpe militar de 64. Começa, então, para Furtado, uma longa fase de exílio, cuja maior parte passou em Paris, onde foi professor por cerca de vinte anos e onde escreveu grande parte de sua vasta obra, traduzida em vários idiomas.

Com a anistia, retorna ao Brasil, sendo nomeado embaixador do seu país junto à Comunidade Econômica Européia, e depois termina aceitando ser ministro da Cultura (1986-1988) no governo da transição comandado por Sarney após a morte de Tancredo Neves, ambos eleitos, de forma indireta, pelo Colégio Eleitoral. Ao conviver com o Brasil-potência deixado pelos militares, volta a denunciar a persistência da miséria num país que se tornara uma das potências emergentes do mundo. E volta a escrever e a participar ativamente do debate nacional. Sempre fiel a suas idéias, não se torna conivente com as políticas liberalizantes dos anos 90, mesmo que conduzidas por um antigo amigo: Fernando Henrique Cardoso. O ideário do Consenso de Washington e o desastroso resultado de sua aplicação à América Latina encontram em Furtado um crítico tenaz. Nunca aceitou a tese de que os Estados Nacionais já não têm papel relevante. Especialmente para vencer as desigualdades de situações e de oportunidades, defendeu sempre a intervenção das políticas públicas. Isso o afastava definitivamente dos neoliberais.

No campo da política sempre atuou do lado das forças que defendiam transformações sociais que elevassem o nível de vida da maioria. Por isso, apoiou abertamente a candidatura de Lula à Presidência, compreendeu sua postura cautelosa no momento inicial do governo, mas continuou a cobrar mudanças e a alertar sobre as enormes incertezas e riscos que pairam sobre o mundo e, especialmente, sobre países como o Brasil.

Um dos raros economistas a destacar a importância da dimensão cultural na construção do desenvolvimento, Furtado também passara a enfatizar sua preocupação com a dimensão ambiental. Deixou, gradualmente, de se encantar pelo fetichismo das taxas de crescimento e passou a enfatizar a importância da consciência ambiental. Via, assim, com preocupação o rápido e brilhante crescimento do agronegócio exportador no Brasil. Em entrevista à revista Nossa História de outubro de 2004, editada pela Biblioteca Nacional, destaca os custos ambientais da rápida expansão da soja no país e critica a hegemonia do curto prazo e dos interesses particulares em decisões que impactam a vida humana no longo prazo, como é o uso predatório de recursos naturais não-renováveis.

Crítico das leis de funcionamento do capitalismo globalizado, comandado pelos interesses da banca mundial, mantém-se firme defensor da força transformadora dos movimentos sociais e das lutas democráticas. Em comentário no “Caderno Mais”, da Folha de S.Paulo, desmonta o badalado O Futuro do Capitalismo, de Lester Thurow. Afirma que o autor se equivoca ao pensar que a realidade é produto apenas da aplicação das leis que regem o capitalismo (agora à escala mundial). A realidade é, para Furtado, produto da luta dialética entre a força do capitalismo e, igualmente, a força transformadora das lutas sociais. E continua do lado delas. Num de seus últimos livros, O Capitalismo Global, editado pela Paz e Terra (1998), reafirma isso.

Ricardo Bielschowsky sintetizou bem a obra de Furtado, destacando quatro pontos: o volume e o grau de difusão (mais de trinta livros e dezenas de artigos publicados em quinze idiomas); a motivação eminentemente política (face à função social que atribuía ao intelectual); a ousadia intelectual e a originalidade das idéias (vindas da coragem de enfrentar a ortodoxia conservadora); e o alicerce metodológico (método histórico-estrutural). E credita a Furtado ampla contribuição à formação de uma consciência crítica no Brasil.

A visão crítica da injusta realidade social brasileira sempre guiou Celso Furtado em suas reflexões. A lucidez nunca o abandonou.

Preocupações

Seus últimos livros e entrevistas mostram um intelectual preocupado com os rumos mundiais e com a inserção brasileira na ordem econômica, social e política contemporânea. Em entrevista concedida a Luciana Accioly, economista do Ipea, anunciou que “o Brasil vai passar por uma fase de grandes incertezas”.

Insistia em defender que, em um país continental, heterogêneo e desigual como o Brasil, “a globalização não pode prejudicar a formação de um sistema nacional que crie tecnologia própria e acompanhe esse desenvolvimento com certa autonomia”. Nessa mesma entrevista volta a sua sempre recorrente tese: um país como o nosso precisa contar principalmente com poupança interna. Como caiu num impasse, precisaria renegociar a dívida externa para criar as condições para se “sustentar sobre seus próprios pés”. Olhando a condução atual das políticas públicas, considerava que o que se faz está errado. Antes do Plano Real, afirmou, as transferências do país para o exterior eram de US$ 700 milhões/ano e hoje são de US$ 7 bilhões/ano. Evidentemente há algo errado, concluiu. Nesse contexto, trabalhava com dois cenários prováveis para o Brasil nos próximos dez ou vinte anos: passar por um processo novo, de reconstrução, ou entrar num processo de desagregação.

Em artigo publicado no Jornal do Brasil de 10 de novembro, dez dias antes de falecer, alertava para duas heranças do século 20 que sobrecarregam o Brasil atual: a herança dos anos de crescimento rápido, que foi a enorme concentração da renda nacional nas mãos de poucos grupos, pessoas e regiões; e a herança dos anos 90, que foi a desarticulação do mercado interno e do parque industrial nacional, com as multinacionais controlando crescentemente os centros de comando das atividades econômicas do país e a grande vulnerabilidade externa, além da crise financeira do setor público. E defendeu uma reforma fiscal que modificasse a distribuição da carga tributária, citando a quase isenção dada aos bancos, que apesar de lucros fabulosos suportam modesta carga fiscal. Mais que elevada, a carga tributária brasileira é mal distribuída, denunciava.

Essa era uma de suas marcas: não se contentava com a crítica. Sempre propunha novos caminhos.

Lições de vida

Como dirigente público, Celso Furtado deixa o exemplo do comportamento ético. Era um republicano exemplar, como definiu Francisco de Oliveira. Não misturava o público e o privado, como é comum no Brasil. Era incorruptível e dava a todo tempo o exemplo de que é possível entrar e sair com honradez de importantes cargos públicos. Na Sudene, os militares fizeram uma devassa, pois a instituição manipulava muito dinheiro no início dos anos 60. Nada encontraram. As denúncias de desvios e corrupção vieram muito mais tarde. E foram usadas por Fernando Henrique Cardoso como argumento para fechar a instituição.

Como intelectual, como técnico, Celso Furtado deixa também exemplo de integridade e coerência (só defendia aquilo em que acreditava). Jamais seria capaz de “vender” sua opinião, como também é comum nos dias atuais. Nem por dinheiro nem por honrarias ou prestígio. Sua produção é marcada pela coerência. Pode-se até discordar dele. Mas não se pode acusá-lo de trocar de opinião por conveniência. “Minhas idéias sempre foram de domínio público, lançadas à Nação para o debate. Não ganho dinheiro com elas”, dizia Furtado. Aos técnicos, sempre alertou: “Não basta estar armado com instrumentos eficazes, mas ter compromissos éticos”. Compromissos com os interesses nacionais e com os miseráveis que o Brasil ainda vergonhosamente abriga nesse limiar do século 21 sempre balizaram a atuação desse ilustre cientista social. Por isso seus críticos foram muitas vezes duros, mas o respeitavam.

Celso Furtado foi, sem dúvida, um dos maiores economistas brasileiros e latino-americanos – tanto que chegou a ser indicado para o Prêmio Nobel de Economia–, mas sua contribuição ao pensamento social foi muito além. Será sempre referência para os que continuam a lutar por um Brasil mais justo e por um mundo menos desigual.

Tânia Bacelar de Araújo é professora da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e integra o Conselho Curador da Fundação Perseu Abramo