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Levar para Davos a agenda democrática e cidadã de Porto Alegre pode vir a transformar a rígida estrutura da economia mundial

De 1811 a 1817, os operários ingleses se organizaram num movimento político de resistência à mecanização denominado ludismo. Inspirados em John Ludd, seus adeptos promoviam a quebra de máquinas, tidas como responsáveis pelo desemprego e pela perda de qualidade dos produtos. Por sua amplitude e impacto, o ludismo – considerado, por alguns, paradigma de resistência à técnica e, por outros, um exemplo de como as sociedades modernas absorvem as transformações nas formas de trabalho – rapidamente se tornou o mais célebre dos movimentos de oposição à industrialização. Na França, à mesma época, diversas ações de destruição de máquinas ocorreram sem, contudo, jamais constituir um movimento político organizado. Numa de suas formas mais inusitadas, os operários franceses introduziam nas máquinas seus tamancos (sabots), origem da palavra francesa sabotage.

Quase dois séculos depois, a marcha do capitalismo globalizado depara-se com “novos insurgentes”. Ao contrário dos ludistas, protagonistas de um movimento de contestação intuitivo, sem consciência “em si e para si”, segundo a análise marxista clássica, os atuais militantes antiglobalização pretendem criar uma rede mundial de resistência e oferecer alternativas à lógica de submissão da sociedade ao fundamentalismo econômico e ao credo dos lucros crescentes, e sua correlata dinâmica de exclusão social. Trata-se de oferecer uma resposta orgânica e contundente e promover uma estratégia coletiva com vistas à superação do neoliberalismo.

Em outras palavras, assim como os utilitaristas Jeremy Bentham e John Stuart Mill, no século 19, acreditavam que a revolução industrial havia fracassado, no sentido de que os enormes avanços científicos e tecnológicos não resultaram na melhoria da qualidade de vida da maioria da população inglesa, e, portanto, como sistema econômico, estava longe de gerar a maior felicidade ao maior número de indivíduos, a mensagem dos novos insurgentes parece ser a de que a globalização, sob a perspectiva histórica da abundância crescente e o ideal humanista da contínua inclusão dos excluídos, igualmente fracassou.

No Brasil, o PT sempre esteve identificado com a crítica à globalização excludente, especialmente na figura do presidente Lula. Não obstante, pela primeira vez, os ecos de Porto Alegre foram de crítica ao presidente e a seu governo, condenando-os por frustrar as esperanças de mudanças. Esperado como modelo e paradigma de que “um novo mundo seria possível”, o governo Lula teria incorrido no equívoco de ser complacente e de adotar uma agenda conservadora, assim como muitos de seus colegas “de esquerda” ou reformistas ao longo dos anos 1990. O governo petista seria, no contexto de outras tantas administrações da esquerda política européia – na seqüência da onda rosa que levou os trabalhistas ingleses e socialistas alemães e franceses de volta ao poder –, mais um fiel cumpridor da agenda neoliberal, zeloso da estabilidade econômica e promotor de reformas que visam tornar o mercado mais eficiente. As críticas à participação do presidente no Fórum Econômico Mundial de Davos refletem, em última instância, esse sentimento, e como repúdio testemunha-se a desfiliação dos quadros partidários de dezenas de companheiros históricos e valorosos.

Estaríamos diante de um estelionato ideológico ou realmente são inconciliáveis as agendas e visões do governo e do movimento social? Recordo, a esse respeito, o historiador francês Fernand Braudell, que observava o processo histórico como uma marcha em tempos diferenciados. Comparando-o às ondulações da superfície do mar, o historiador associa a noção de “tempo curto” à rápida oscilação de ventos. Ao contrário, o “tempo longo” seria a expressão do ritmo lento da vida material, dos processos estruturais. Nesse sentido, as transformações desejadas pelos novos insurgentes – ainda que atentos aos acontecimentos cotidianos e procurando influenciar as conjunturas –, necessariamente estruturais, processam-se na perspectiva do tempo longo.

Embora se possa dizer, com razão, que o futuro se produz com ações concretas, no presente, o fato é que os governos são essencialmente prisioneiros das conjunturas. E a situação do Brasil em 2002 era particularmente complicada: profunda vulnerabilidade externa, risco de descontrole da economia e da retomada do processo inflacionário, colapso na infraestrutura, perda de credibilidade internacional, entre outros. Todos esses elementos levavam, por sua vez, ao recrudescimento das tensões sociais e ao risco de aprofundamento da já insuportável desigualdade brasileira, com riscos não negligenciáveis à própria democracia. O presidente Lula, como estadista, assumiu os desafios da conjuntura e, apesar dos riscos e custos políticos, enfrentou com sucesso a tarefa de “desarmar a bomba” que poderia inviabilizar seu governo. Lula e o PT pagam o preço de assumir suas responsabilidades históricas, entre antigos companheiros e ante parte da opinião pública. O Brasil de hoje, entretanto, é viável, governável e respeitado internacionalmente, sem o que não se poderia pensar nos desafios estruturais do desenvolvimento includente e na construção de uma alternativa perene ao fundamentalismo dos mercados.

A longa marcha da história promoverá diferenciações, rearranjos, rupturas e também novas aproximações. Foi assim com o movimento social europeu durante o século 19 e assim será com os novos insurgentes, reunidos num esforço cujo grau de abrangência geográfica e cuja diversidade social e cultural não encontram paralelo histórico. Como seria de esperar, a profunda heterogeneidade de sua composição social reflete-se na interposição de idéias, ideologias e interesses muitas vezes contraditórios e paradoxais. Chegar a uma convergência de propostas não é exercício simples, e tampouco estamos próximos de sua consolidação. É preciso levar em conta toda a multiplicidade, toda a pluralidade das preocupações existentes nos diversos países e nos diversos contextos socioeconômicos. É, na prática, a busca por uma agenda e uma temática aproximada, o que demanda um trabalho paciente e coordenado, para que não se perca a perspectiva única.

O debate sobre a relação entre movimento social e governo é intenso e apaixonado. Não deixa de ser curioso que cada qual, governo popular e movimento social, ainda que trabalhando com dinâmicas históricas diferenciadas, compartilhe não somente ideais, mas também dilemas e impasses. Reconhecer a importância dessa perspectiva única, da relação necessária, complementar e não excludente entre ambos, bem como a responsabilidade de cada um, parece ser o melhor caminho para os que pretendem promover a globalização sob parâmetros de eqüidade e justiça. Nesse contexto, atrair para Davos a agenda democrática e cidadã de Porto Alegre – tarefa a que se propõe o presidente Lula – pode vir a representar poderosa força transformadora sobre a rígida estrutura da economia mundial, abreviando o mais possível o tempo longo das mudanças estruturais desejadas. Do contrário, seríamos coniventes com um ato de “sabotagem ideológica”, que interessa mais às oligarquias globais que à “sociedade civil de baixo”.

André Costa é deputado federal (PT-RJ) e diplomata

De 1811 a 1817, os operários ingleses se organizaram num movimento político de resistência à mecanização denominado ludismo. Inspirados em John Ludd, seus adeptos promoviam a quebra de máquinas, tidas como responsáveis pelo desemprego e pela perda de qualidade dos produtos. Por sua amplitude e impacto, o ludismo – considerado, por alguns, paradigma de resistência à técnica e, por outros, um exemplo de como as sociedades modernas absorvem as transformações nas formas de trabalho – rapidamente se tornou o mais célebre dos movimentos de oposição à industrialização. Na França, à mesma época, diversas ações de destruição de máquinas ocorreram sem, contudo, jamais constituir um movimento político organizado. Numa de suas formas mais inusitadas, os operários franceses introduziam nas máquinas seus tamancos (sabots), origem da palavra francesa sabotage.

Quase dois séculos depois, a marcha do capitalismo globalizado depara-se com “novos insurgentes”. Ao contrário dos ludistas, protagonistas de um movimento de contestação intuitivo, sem consciência “em si e para si”, segundo a análise marxista clássica, os atuais militantes antiglobalização pretendem criar uma rede mundial de resistência e oferecer alternativas à lógica de submissão da sociedade ao fundamentalismo econômico e ao credo dos lucros crescentes, e sua correlata dinâmica de exclusão social. Trata-se de oferecer uma resposta orgânica e contundente e promover uma estratégia coletiva com vistas à superação do neoliberalismo.

Em outras palavras, assim como os utilitaristas Jeremy Bentham e John Stuart Mill, no século 19, acreditavam que a revolução industrial havia fracassado, no sentido de que os enormes avanços científicos e tecnológicos não resultaram na melhoria da qualidade de vida da maioria da população inglesa, e, portanto, como sistema econômico, estava longe de gerar a maior felicidade ao maior número de indivíduos, a mensagem dos novos insurgentes parece ser a de que a globalização, sob a perspectiva histórica da abundância crescente e o ideal humanista da contínua inclusão dos excluídos, igualmente fracassou.

No Brasil, o PT sempre esteve identificado com a crítica à globalização excludente, especialmente na figura do presidente Lula. Não obstante, pela primeira vez, os ecos de Porto Alegre foram de crítica ao presidente e a seu governo, condenando-os por frustrar as esperanças de mudanças. Esperado como modelo e paradigma de que “um novo mundo seria possível”, o governo Lula teria incorrido no equívoco de ser complacente e de adotar uma agenda conservadora, assim como muitos de seus colegas “de esquerda” ou reformistas ao longo dos anos 1990. O governo petista seria, no contexto de outras tantas administrações da esquerda política européia – na seqüência da onda rosa que levou os trabalhistas ingleses e socialistas alemães e franceses de volta ao poder –, mais um fiel cumpridor da agenda neoliberal, zeloso da estabilidade econômica e promotor de reformas que visam tornar o mercado mais eficiente. As críticas à participação do presidente no Fórum Econômico Mundial de Davos refletem, em última instância, esse sentimento, e como repúdio testemunha-se a desfiliação dos quadros partidários de dezenas de companheiros históricos e valorosos.

Estaríamos diante de um estelionato ideológico ou realmente são inconciliáveis as agendas e visões do governo e do movimento social? Recordo, a esse respeito, o historiador francês Fernand Braudell, que observava o processo histórico como uma marcha em tempos diferenciados. Comparando-o às ondulações da superfície do mar, o historiador associa a noção de “tempo curto” à rápida oscilação de ventos. Ao contrário, o “tempo longo” seria a expressão do ritmo lento da vida material, dos processos estruturais. Nesse sentido, as transformações desejadas pelos novos insurgentes – ainda que atentos aos acontecimentos cotidianos e procurando influenciar as conjunturas –, necessariamente estruturais, processam-se na perspectiva do tempo longo.

Embora se possa dizer, com razão, que o futuro se produz com ações concretas, no presente, o fato é que os governos são essencialmente prisioneiros das conjunturas. E a situação do Brasil em 2002 era particularmente complicada: profunda vulnerabilidade externa, risco de descontrole da economia e da retomada do processo inflacionário, colapso na infraestrutura, perda de credibilidade internacional, entre outros. Todos esses elementos levavam, por sua vez, ao recrudescimento das tensões sociais e ao risco de aprofundamento da já insuportável desigualdade brasileira, com riscos não negligenciáveis à própria democracia. O presidente Lula, como estadista, assumiu os desafios da conjuntura e, apesar dos riscos e custos políticos, enfrentou com sucesso a tarefa de “desarmar a bomba” que poderia inviabilizar seu governo. Lula e o PT pagam o preço de assumir suas responsabilidades históricas, entre antigos companheiros e ante parte da opinião pública. O Brasil de hoje, entretanto, é viável, governável e respeitado internacionalmente, sem o que não se poderia pensar nos desafios estruturais do desenvolvimento includente e na construção de uma alternativa perene ao fundamentalismo dos mercados.

A longa marcha da história promoverá diferenciações, rearranjos, rupturas e também novas aproximações. Foi assim com o movimento social europeu durante o século 19 e assim será com os novos insurgentes, reunidos num esforço cujo grau de abrangência geográfica e cuja diversidade social e cultural não encontram paralelo histórico. Como seria de esperar, a profunda heterogeneidade de sua composição social reflete-se na interposição de idéias, ideologias e interesses muitas vezes contraditórios e paradoxais. Chegar a uma convergência de propostas não é exercício simples, e tampouco estamos próximos de sua consolidação. É preciso levar em conta toda a multiplicidade, toda a pluralidade das preocupações existentes nos diversos países e nos diversos contextos socioeconômicos. É, na prática, a busca por uma agenda e uma temática aproximada, o que demanda um trabalho paciente e coordenado, para que não se perca a perspectiva única.

O debate sobre a relação entre movimento social e governo é intenso e apaixonado. Não deixa de ser curioso que cada qual, governo popular e movimento social, ainda que trabalhando com dinâmicas históricas diferenciadas, compartilhe não somente ideais, mas também dilemas e impasses. Reconhecer a importância dessa perspectiva única, da relação necessária, complementar e não excludente entre ambos, bem como a responsabilidade de cada um, parece ser o melhor caminho para os que pretendem promover a globalização sob parâmetros de eqüidade e justiça. Nesse contexto, atrair para Davos a agenda democrática e cidadã de Porto Alegre – tarefa a que se propõe o presidente Lula – pode vir a representar poderosa força transformadora sobre a rígida estrutura da economia mundial, abreviando o mais possível o tempo longo das mudanças estruturais desejadas. Do contrário, seríamos coniventes com um ato de “sabotagem ideológica”, que interessa mais às oligarquias globais que à “sociedade civil de baixo”.

André Costa é deputado federal (PT-RJ) e diplomata