Internacional

Programa de Tabaré Vasquez privilegia fortalecimento e ampliação do Mercosul

A vitória da esquerda unida já no primeiro turno das eleições uruguaias de 31 de outubro de 2004 põe fim a 167 anos de bipartidarismo tradicional e inicia um novo ciclo histórico. Coroa ainda meio século de lutas das forças de esquerda ao selar sua unidade total para alcançar o governo e começar a aplicar um programa de mudanças, além de contar agora com a maioria absoluta nas duas Câmaras. Essa transformação radical do panorama político influirá positivamente na consolidação do Mercosul e nos processos de integração sul-americana.

Vitória da esquerda e fim do bipartidarismo

A coalizão de esquerda Encontro Progressista-Frente Ampla-Nova Maioria obteve 1.124.761 votos, o que representa 50,5% dos votos emitidos e 51,7% dos votos válidos. Essa cifra superior a 1 milhão de votos jamais foi alcançada por nenhum partido ou candidato, nem sequer quando se somaram os votos blancos aos colorados para eleger Jorge Batlle na votação de 1999. O Partido Nacional obteve 35,1% dos votos; e o Partido Colorado, que deteve quase todos os governos até o golpe de Estado de 1973 e três dos quatro governos pós-ditadura, alcançou apenas 10,6% dos votos e das bancas. Uma derrota fragorosa.

Em 1996 os blancos e colorados impuseram uma reforma constitucional cujo objetivo primordial era instaurar a votação para perpetuar-se no poder conforme vinham fazendo ao longo de toda a vida independente do país, separados ou em co-participação, por meio de guerras civis, eleições ou golpes de Estado. Tal reforma também estabeleceu a separação das eleições nacionais e municipais e a candidatura presidencial única por partido. A Frente Ampla se opôs à reforma, a qual foi consagrada por uma débil maioria (50,45%) e aplicada pela primeira vez em 1999. No primeiro turno, a Frente Ampla obteve 40,1% dos votos, ante 32,8% do Partido Colorado e 22,3% do Partido Nacional, que se uniram no segundo turno para surrupiar-lhe a Presidência. Agora o sistema fracassou, embora tenha se estabelecido na Constituição (artigo 151) o requisito absurdo de superar os 50% de todos os votos emitidos, e não dos votos válidos. Ou seja, que os votos da esquerda deviam superar os de todos os partidos somados (Nacional, Colorado, Independente, Intransigente, União Cívica, Liberal, dos Trabalhadores), mais os votos em branco, mais os nulos, mais os anulados. A adesão cidadã à esquerda superou todos esses obstáculos, e ainda lhe sobraram 10 mil votos. Sobrepujou os blancos e colorados juntos por 5,79%, sendo os blancos por 16,5%, e os colorados cinco vezes mais.

Em Montevidéu, onde governa a intendência pelo terceiro período consecutivo e com apoio crescente, a Frente Ampla chegou à vitória com 62,74% dos votos, seguida pelo Partido Nacional, com 25,03%, e pelo Partido Colorado, com esquálidos 8,42%. Das 108 zonas eleitorais na capital, a esquerda ganhou em 107, incluídos os bairros residenciais de famílias abastadas. Em um circuito teve uma votação máxima de 79,91%. O Partido Colorado ficou em terceiro lugar em todas as zonas.

Outro fato pleno de conseqüências para as eleições municipais de maio de 2005 é a alta votação da esquerda no interior do país. Pela primeira vez, ficou em primeiro lugar em seis dos dezoito departamentos do interior – Canelones, Florida, Maldonado, Rocha, Salto e Soriano – e disputou a primazia em Paysandú e San José. Nesse quadro inédito, tem especial significado o que se passou em Canelones, próximo à capital, já que uma antiga tradição reza que quem ganha em Canelones ganha no Uruguai. Ali a esquerda venceu com a maioria absoluta de 53,17% e sextuplicou o voto dos colorados, que têm a intendência nas mãos. E mais ainda: nesta eleição a votação foi semelhante em todo o país. Não só vai se fechando a brecha entre Montevidéu e o interior como um todo, que constituía uma debilidade notória da esquerda ao longo de todo o século passado, como também começa a se estreitar a diferença entre as capitais de uma parte e os povoados e pequenos assentamentos, ou seja, o Uruguai profundo. Tabaré Vázquez realizou seis viagens por todo o interior ao longo do ano, e após a vitória visitou um povoado pequeno de cada departamento, na maioria dos quais não havia ganhado. Isso adquire um valor simbólico, também no plano dos sentimentos e dos episódios marcantes. Nessas visitas, assim como na noite da vitória, os festejos uniam o conjunto dos moradores, independentemente de seu voto. Era pressuposto comum que se devia dar uma oportunidade à Frente. Celebrava-se na ocasião que a contenda eleitoral se elucidara nos marcos da democracia. Em uma campanha eleitoral prolongada, com momentos ríspidos, não houve um só ato de violência.

Uma concepção transformadora

Há dias em que o resultado do trabalho de muita gente durante muitos anos acaba por tomar forma. Isso aconteceu em 31 de outubro de 2004, que significou ainda o triunfo da concepção da unidade da esquerda sem exclusões. Há quem ligue o começo desse processo ao nascimento da Frente Ampla em 5 de fevereiro de 1971. Outros situam sua origem no final dos anos 1960, vinculando-o à aparição da guerrilha tupamara. Daí se costuma derivar a teoria dos “dois demônios” como explicação da gênese do golpe de Estado de 1973. Na realidade, a própria Frente Ampla teve um prolongado período de gestação, que remonta a meados dos anos 1950. O XVI Congresso do PCU (setembro de 1955) se propôs a mudar a situação política e social do país, para passar de uma esquerda dividida e quase testemunhal e de um movimento sindical atomizado e com correntes questionadas a uma esquerda unida e a um movimento operário unificado numa só central. O projeto político levou mais de três qüinqüênios para se cristalizar. Propostas unitárias reiteradas a um número crescente de destinatários, formas embrionárias de conjunção de setores políticos, luta conjunta contra os desmandos do regime de Pacheco, o fato vaticinador de que dirigentes e grupos dos partidos tradicionais tiveram a valentia de saltar sobre a vala dos lemas e se passar para as fileiras de esquerda junto com uma plêiade de dirigentes operários, estudantis e de organizações sociais, de militares e civis, de figuras religiosas, crentes e ateus: com todos esses ingredientes se preparou a concepção unitária da Frente. O movimento operário havia se adiantado e dava seu exemplo, pois, em um processo de discussão fraterna e unidade de ação dos sindicatos por reivindicações comuns e em defesa da democracia, havia constituído em 1966 uma central única, a CNT, que abarcava a maioria dos sindicatos, ligados por vínculos solidários e pactos de unidade de ação às organizações que não integravam suas fileiras. Além disso, a central foi fator impulsor do Congresso do Povo, uma peculiar forma de aliança dos trabalhadores com setores de classe média, profissionais, universitários, aposentados, estudantes, que elaborou um programa de soluções comuns contra a crise e em defesa da democracia ameaçada.

Essas formações se mantiveram por meio das vicissitudes da luta: depois de Pacheco, contra o regime autoritário de Bordaberry e contra a ditadura que durante mais de onze anos investiu contra a esquerda e o movimento operário e jurou erradicá-los da face da República. Resistiram com paixão e lucidez, na prisão, na clandestinidade e no exílio, engrandeceram-se na luta pela reconquista da democracia e souberam ainda manter-se unidas e rechaçar os diversos intentos de se dissolver ou diluir com o descrédito de sua identidade essencial. Estavam sustentando então a vigência da concepção unitária que lhes deu origem e guiou suas ações.

Em certo momento, como acontece em todo organismo vivo, determinadas forças abandonaram a Frente, para mais adiante se reintegrar sob outras formas. Maior amplitude foi alcançada com a incorporação de setores nacionalistas e o retorno da democracia cristã, que havia participado da etapa fundadora com o grupo de Zelmar Michelini (depois assassinado pela ditadura em Buenos Aires). A nova formação passou a se chamar Encontro Progressista-Frente Ampla, e o posterior acordo com o Novo Espaço de Rafael Michelini agregou à sigla a Nova Maioria.

O crescimento dessa complexa arquitetura se refletiu no plano eleitoral. A Frente Ampla começou com 304.275 votos e 18,3% no ano de sua fundação (1971). Passou para 401.104 votos e 21,3% depois da ditadura (1984), apesar das perseguições e expulsões, e nesse entorno se manteve em 1989. Em 1994 saltou para 621.226 votos e 30,6%, registrando o nascimento do Encontro Progressista. Em 1999 chegou a 854.170 votos e 40,1% na primária e 45,9% na votação. E agora, em progressão constante, atinge 1.124.761 e 51,7%. Conquista a maioria absoluta no Senado (dezessete das 31 vagas) e na Câmara dos Deputados (52 das 99). Seu aumento de votos no último lance é maior que toda a votação do Partido Colorado. E em lado algum está escrito que esse seja o teto. Ao contrário.

Linhas programáticas e plano de emergência

A esquerda estruturou seu programa com base no prolongado trabalho de centenas de técnicos, dirigentes políticos e sociais reunidos na Comissão Integrada de Programa. Suas orientações foram discutidas a fundo e aprovadas em um Congresso no final de 2003. Antes e depois foram postas à apreciação de múltiplas organizações. Dali saíram as pautas das tarefas a cumprir em seis direções: o Uruguai produtivo, social, democrático, inovador, cultural, integrado à região e ao mundo. Algumas medidas poderão ser aprovadas sem delongas. Por exemplo, o voto dos uruguaios no exterior (que blancos e colorados rechaçaram). Outras poderão ser postas em marcha, como a reforma tributária, estabelecendo o imposto sobre a renda das pessoas físicas e modificando radicalmente um regime injusto baseado em um IVA [Imposto de Valor Agregado] de 23% (entre os maiores do mundo) e o imposto sobre os pagamentos. Sem dúvida, porém, as modificações mais visíveis serão observadas na área do Mercosul, para passar da política de açodamento financeiro, de predomínio da Alca e do tratado bilateral com os EUA que pratica o governo de Batlle, a uma sintonia com a política integracionista dos governos vizinhos.

O que se estabelece como “uma nova política de inserção internacional” se divide em quatro diretrizes definidas: fortalecimento e ampliação do Mercosul; integração energética e planos de infra-estrutura; relacionamento com outros blocos: Alca, CAN, UE; consolidação no sistema multilateral de comércio (OMC). O programa se distingue por afiançar o Mercosul com os diversos instrumentos previstos em nível institucional e com o Parlamento do Mercosul, privilegiar a atuação em bloco, consolidar os acordos com a CAN, a UE e o maior número de países e passar a integrar o G-20 no seio da OMC.

O novo governo implementou também um Plano de Emergência e outorgará categoria ministerial a seus responsáveis. Empregará US$ 100 milhões anuais e cestas de alimentos para atender famílias em pobreza extrema e prover empregos em situações especialmente críticas.

Giro continental à esquerda
A vitória da esquerda uruguaia se inscreve em um processo cujo início podemos situar na eleição de Lula e de Kirchner. Tem sido acompanhada por avanços eleitorais quase simultâneos da esquerda na Venezuela, nas municipais brasileiras, na Bolívia, no Chile e na Nicarágua, mostrando que os povos do continente brigam para tomar o destino em suas mãos e avançam por uma via própria, sem imitação nem cópia, como queria Mariátegui.

Tradução: Thaís Costa

Niko Schvarz é escritor, comentarista do jornal La República e membro da Comissão de Assuntos e Relações Internacionais da Frente Ampla