Nacional

Dois anos de governo já nos ensinam que a simples estabilidade econômico-financeira não leva à justiça social e, ao contrário, reproduz a exclusão. Urge potencializar seus poucos aspectos de corte progressista

“A viabilidade de um projeto popular e nacional de democratização do desenvolvimento dependerá da sua capacidade de mobilizar o povo e construir uma vontade nacional, obrigando as elites a se voltarem para sua própria terra e sua gente.” 

José Luís Fiori, O Vôo da Coruja

Análise de governo eleito democraticamente deve ter como parâmetro o que levou à vitória: suas propostas, suas promessas cativantes. Para usar uma base comum, começo com a famosa Carta ao Povo Brasileiro, constantemente citada pelos que se incomodam com a revelação das contradições entre o proclamado pelo PT em seu um quarto de século de existência e o praticado agora pelo nosso governo federal.

Em junho de 2002, o candidato Lula, reconhecendo no país “uma poderosa vontade popular de encerrar um ciclo econômico e político” e o “sentimento predominante de que o atual modelo esgotou-se”, comprometia-se com “um projeto alternativo, que faça o Brasil voltar a crescer, a gerar empregos, a reduzir a criminalidade, a resgatar nossa presença soberana e respeitada no mundo”. E proclamava: “O povo brasileiro quer mudar para valer. Recusa qualquer forma de continuísmo, seja ele assumido ou mascarado. Quer trilhar o caminho da redução de nossa vulnerabilidade externa pelo esforço conjugado de exportar mais e de criar um amplo mercado interno de consumo de massas. Quer abrir o caminho de combinar o incremento da atividade econômica com políticas sociais consistentes e criativas”.

Mesmo nos enfatizados parágrafos do “respeito aos contratos e obrigações do país” podia-se ouvir a voz rouca do maior líder metalúrgico da nossa história dizer que “a questão de fundo é que, para nós, o equilíbrio fiscal não é um fim, mas um meio. Queremos equilíbrio fiscal para crescer, e não apenas para prestar contas aos nossos credores”. Lula terminava assumindo “um compromisso pela produção, pelo emprego e por justiça social”. Comandante da ânsia de tantos por um novo tempo, afirmava que “o Brasil poderia navegar no mar aberto do desenvolvimento econômico e social”.

Até nesse documento tranqüilizador dos “mercados”, considerado testemunho do conservadorismo da coligação liderada pelo PT, sobrevivia a grandeza do nosso projeto de protagonismo popular, que Elio Gaspari, há um ano, sintetizou: “Um país e seu presidente são do tamanho que decidem ser (...) São coisas que acontecem com os povos. Ora vão bem, ora vão mal, mas são do tamanho que desejam ser. Os americanos sempre quiseram ser grandes. (...) Quem decide ser migalha nunca passa de resto” (Folha de S.Paulo e O Globo, 14/1/2004).

Em outubro de 2002, 53 milhões de brasileiros votaram neste destino construí­do de Nação. Não para fazer a revolução, mas para começar a reduzir a abissal desigualdade social brasileira e estabelecer um novo padrão de relação com a política, até então degradada em politicagem.O mar de contradições em que navegamos

Na metade de seu caminho, o governo Lula expõe as ambigüidades que, para surpresa de muitos, adotou desde que se constituiu. O coral dos contentes, aquele que já vinha afinado desde a era tucana, bate palmas. Uma certa opinião publicada, bastante vinculada aos interesses dominantes, solta foguetes para os primeiros índices de melhora na economia e para as variações positivas na popularidade do governo, “sem as turbulências previsíveis”. Deu até no New York Times que o governo, por ser conservador, está no rumo certo.

O núcleo dirigente no Planalto, alimentado pelos elogios, deixa-se levar pela magia do facilitário e também se acha no “rumo certo” (diferentemente de Chávez e Kirchner), aquele que já veio definido dos tempos de FHC. Adota as reformas que o governo anterior não conseguira aprovar por oposição de nossa base social e, tudo indica, aposta na retomada do “crescimento econômicoo” nos marcos do mesmo modelo anterior. É o ex-ministro da Educação tucano Paulo Renato quem o afirma: “A política econômica é basicamente igual à de nosso governo, exagerando até mesmo em seu cacoete de executar a política monetária com um conservadorismo alguns tons acima do que seria necessário” (O Estado de S. Paulo, 26/12/2004). A sensação é de que Lula governa muito mais para quem tinha medo dele do que para quem aposta nele como condutor das esperanças de mudança.

A tríade da composição do governo é desbalanceada: os setores vinculados ao capital financeiro – que nosso governo jamais confrontou – têm os principais ministros (de “primeira classe” e em constante ascensão); um núcleo nacional-desenvolvimentista resiste, apesar do duro golpe da destituição de Carlos Lessa do BNDES, embalado pelos indicadores do aumento da taxa de investimento (cerca de 20% do PIB) e do crescimento industrial; setores originários da luta popular, por fim e por último, atuam na área social, em meio aos contingenciamentos orçamentários e com iniciativas pontuais: varejo progressista e de esquerda no atacado geral convencional, social-liberal. Ainda não conseguimos construir marcas identificadoras ali onde sempre fomos fortes: educação, saúde e habitação.

Apesar de um certo triunfalismo oficial, o quadro geral segue sendo o da crise, que a continuidade do modelo só faz agravar. Conforme nos alerta a sabedoria de Leonardo Boff, até parece que “a crise social é o preço a ser pago pelo sucesso econômico”. Ainda não houve a mudança necessária e prometida, pois, diz ele, “aquele sobrevivente da tribulação histórica dos humilhados e ofendidos”, ao chegar lá, trocou de agenda: “As elites nacionais e mundiais conseguiram trazê-lo para sua lógica, para o modelo econômico neoliberal dominante” (Correio da Cidadania, 8/1/2005).

Celso Furtado, um ano antes de sua morte, também expressou certo desencanto, ao ser homenageado no IBGE: “Os problemas estão todos expostos. Ninguém tem dúvida de que é preciso desconcentrar renda, mas ninguém faz isso. A questão é muito mais de um imobilismo crônico de uma sociedade que não tem vontade de mudar”.

Há um mal-estar no Partido dos Trabalhadores, a principal legenda da coligação governista. Explícito nas correntes da esquerda petista, esse sentimento incomoda o partido inteiro. O PT nasceu e cresceu no leito amplo do processo social, sua identidade forte se construiu na luta por liberdades democráticas, soberania nacional e igualdade social. A crítica ao modelo neoliberal dominante na economia, a aspiração profunda ao resgate da ética na política, a sintonia com os anseios da cidadania pela adoção de uma “nova gramática” do poder estão na base da maior parte de nossas experiências administrativas e de nossa vitória na última eleição presidencial. Todos os ativistas do partido, de qualquer posição, sabem disso. Sabem também que, no exercício do governo central, o PT – pólo de esquerda do governo de coligação, “consciência crítica da administração”, como pede o próprio Lula – ainda não deu vazão às expectativas que soube gerar na oposição.

Essas expectativas, ressalte-se, não se referenciavam no projeto socialista que o PT ainda preserva em seu programa e que o jovem Lula, na primeira convenção nacional do partido, em setembro de 1981, defendeu como o possibilitador de “uma sociedade sem explorados, definida por todo o povo, como exigência concreta das lutas populares e resposta política e econômica global a todas as suas aspirações”. Nosso patamar de horizonte utópico foi conscientemente rebaixado, inclusive em função das mudanças na estrutura de classes e no sistema sociocultural e produtivo nesta virada de século. Com a evidente redução da centralidade do proletariado industrial (seiva vital na constituição do PT) no conjunto dos trabalhadores brasileiros, o que se reivindica hoje é apenas primazia do social sobre o econômico, radicalização da democracia e horizontalização da cidadania. Socialização dos meios de governar. Republicanismo. Reformismo revolucionário, no máximo...

Mas o continuísmo exacerbado da ortodoxia econômica trouxe com ele, como corolário inevitável, a continuidade da velha “aritmética do poder” que alimenta o intestino grosso da pequena política. O pragmatismo de curto prazo, sem a âncora da ideologia e da nitidez de projetos, é o império do interesse particular, no qual prosperam a pilhagem e a desmoralização das instituições públicas e da própria política. Sem a praça mobilizada na implementação de políticas públicas, fica-se palacianamente refém do balcão de negócios.

Hoje, meio caminho andado, há uma perigosa reversão de ânimo, estimuladora da apatia social, que pode pôr em risco o próprio processo democrático. Aumenta a descrença na política como instrumento de mudanças na vida real da população. Cresce, também em função disso, a “rebeldia” pré-política da criminalidade armada nos grandes centros urbanos, impondo desgraça e dor principalmente aos mais pobres (em média, 25 jovens são assassinados a cada fim de semana!). Enfraquecidos os vínculos com a opinião pública esclarecida e com o dinamismo dos movimentos sociais, a mera posse do poder de Estado pode cristalizar o dogma do “caminho único” e reificar a noção de “mágica” ou “irresponsabilidadee” para rotas diferentes, sepultando nossas propostas de mudança.

Nossas contradições são evidentes: o questionamento do papel globalitário do FMI deu lugar à renovação “rotineira” dos acordos com o Fundo – com suas conseqüentes “inspeções” – e à ampliação do superávit fiscal para 4,5% do PIB, até além do exigido. As taxas de juros, com a retomada de sua elevação gradual e segura pelo Copom, seguem as mais altas do mundo, independentemente das alterações no contexto econômico. O pagamento de juros e serviços da dívida externa, jamais auditada, também atinge recordes. A relação com os movimentos reivindicatórios, sobretudo dos funcionários públicos, tem sido tensa e, aqui e ali, pouco transparente. O Fórum Social Mundial e outros eventos de massa crítica não têm merecido de Lula a mesma atenção dada ao Fórum Econômico Mundial e que tais. A governabilidade a qualquer preço tem nos levado à aproximação com inimigos históricos, embaralhando sinais políticos e ampliando possibilidades de desmandos. O andamento da reforma agrária, da política indigenista e da ambiental é sofrível, pois o governo sempre cede à pressão de seus adversários. Mesmo o direito à nossa memória social esbarra na morosidade da decisão quanto à abertura dos arquivos da ditadura. O alardeado crescimento econômico esbarra na continuada paralisia da distribuição de renda e na crescente dificuldade de cumprir nosso compromisso de dobrar o poder de compra do salário mínimo, em quatro anos. O aforismo “quem não deve não teme”, que sempre proclamamos, foi apequenado pela “blindagem” a Valdomiro, Meirelles. O afastamento de servidores da Polícia Federal que prenderam em flagrante o publicitário Duda Mendonça e certas demasias em gastos de uso pessoal e descuidos na utilização de bens públicos nos interpelam, cotejados com a ética republicana que continuamente exaltamos.

Na meia quadra do governo Lula, os sinais de alerta estão ligados. A tarefa, nesta encruzilhada do destino, é fazer uma inflexão no rumo do modelo alternativo e, como PT, retomar nossa identidade. O pulso ainda pulsa, apesar do desalento.

Trinta meses depois da Carta, Lula, fazendo com seu ministério um balanço dos dois anos de governo, reconheceu que “tudo o que fizemos (...) está muito aquém do que a sociedade brasileira reclama. São séculos de exclusão e desigualdade, agravadas nas últimas décadas”. Percebendo, com sua invejável intuição, os crescentes questionamentos (“compreendemos os que, movidos pelo desejo de mudança, se impacientam...”), o presidente sentiu necessidade de reafirmar “que ninguém se iluda sobre as prioridades deste governo. Elas vão na direção de uma grande transformação econômica e social do país. Que ninguém se iluda sobre minha fidelidade às minhas origens. As dificuldades que enfrentei e os êxitos que alcancei me deram a convicção de que o melhor que possuímos é o nosso povo” (O Globo, 11/12/2004).

Governo popular tem povo organizado e politicamente consciente como protagonista, e não como beneficiário do paternalismo dos dirigentes da Nação, característica do populismo.

Outra bússola, novos rumos

O projeto alternativo para o Brasil se enfraquece à medida que não há chamamento à mobilização social para erguê-lo. Ainda que reconhecendo o ineditismo prático e teórico desta transição após a década neoliberal, com toda a sua pesada herança de desconstrução do Estado brasileiro, não temos sabido construir um novo rumo. Caminhamos perigosamente para a repetição do que ocorreu em vários outros países, nos quais candidatos eleitos com discurso de esquerda fizeram governos tradicionais, numa espécie de neofatalismo derivado da suposta falta de margem de manobra na economia globalizada.

Como no governo anterior, o agronegócio exportador é o principal sustentáculo de nossa economia. Exportações que são 60% similares às da República Velha, o que só é minimizado pelo fato de termos a base produtiva industrial mais robusta da América do Sul. A absolutização desse modelo agroexportador é perigosa também do ponto de vista ambiental: a área ocupada pela soja, por exemplo, cresceu 2,2 milhões de hectares, chegando a reservas indígenas e invadindo florestas protegidas. Sem o princípio da precaução, estamos semeando desertificação, mas isso as editorias de economia não dão e os arautos dos recordes de produção consideram atraso e tolice...

Cautela mesmo é manter o modelo, “sem aventuras e experimentalismos”, repetem as autoridades econômicas. Elas esquecem que nosso avanço urbano-industrial a partir dos anos 1930 (com crescimento médio de 7% ao ano durante meio século) e a ousada marcha para o Centro-Oeste no final dos anos 1950 deveram-se, sobretudo, à coragem de experimentar, imaginar e ­realizar, sem a deplorável subalternidade do “dever de casa”, que proíbe a originalidade e aprofunda a dependência ao capital rentista. Aliás, foi com arrojo e pioneirismo que os EUA já tinham construído, lá em meados do século 19, três rotas “coast to coast”, que inexistem na América do Sul até agora. Dentro de nossas fronteiras, as ferrovias foram arruinadas e 75% das estradas de rodagem encontram-se em estado precário.

Aplausos para o país que aplica, anualmente, R$ 150 bilhões em políticas de proteção e seguridade social. Mas algo de estruturante está faltando, pois os 10% mais ricos continuam a deter metade da riqueza e os 10% mais pobres ficam só com 1%. Os incluídos assalariados também não podem comemorar: a renda do fator trabalho, que já atingiu 60% da renda nacional total, hoje está em torno de 40%. Programas assistencialistas e de curto prazo ainda não conseguiram vertebrar uma política social nacional redistributiva, articulada com educação, trabalho e introdução dos atendidos em círculos de cidadania, condição para enfrentar com substantividade a questão central da desigualdade.

Nosso quadro social, apesar da redução da pobreza em termos gerais na última década, segue muito grave, e as regiões metropolitanas são o estuário dessa crise. Pesquisa de orçamento familiar do IBGE revela que entramos no século 21 com 85% das famílias sem dinheiro para chegar ao fim do mês (o que gera endividamento), gastando menos 15% com alimentação e com serviços bancários mais de 2.000%­ (!) em relação há três décadas. Quanto ao básico, 16,3% dos domicílios brasileiros continuam sem coleta de lixo, 15,3% estão em locais sem iluminação pública, 14% sem água encanada. Na área rural esses percentuais são de três a cinco vezes maiores. Vinte e sete milhões de brasileiros com menos de 18 anos são de famílias que sobrevivem com meio salário mínimo por mês. A taxa de desemprego atinge 10,6% da população ativa e a renda do trabalho caiu pelo quinto ano consecutivo.

Dois anos de governo já nos ensinam que a simples estabilidade econômico-financeira não leva à justiça social e, ao contrário, reproduz a exclusão. Moeda é meio, e não fim, exceto para banqueiros predadores. É evidente também que a naturalização dos processos econômicos subordinados à “teocracia de mercado” não produzirá um novo contrato social no Brasil. Assim como a redução do PT a um departamento do governo, estatizado e acrítico, jamais contribuirá para a constituição de um Poder Público regulador dos interesses privados, instrumento civilizatório, implementador de políticas que acumulem para a superação do sistema concentrador de riqueza e renda.

Chegando à metade da gestão, urge potencializar os poucos aspectos de corte progressista de nosso governo, pois a marca mudancista, mesmo nos setores populares mais simpáticos a Lula, é extremamente débil. É preciso avançar na política externa afirmativa e na articulação com países ditos periféricos, contra a hegemonia do Império. É essencial prosseguir no implacável combate à corrupção, que captura de forma crescente a institucionalidade nacional. Que se persista na não-criminalização e no alentado estímulo aos movimentos sociais, apesar dos apelos da grande mídia – que tanto sensibiliza nosso governo – contra a “baderna”. Que o Sistema Único de Segurança Pública, articulado com o Sistema Nacional de Direitos Humanos, avance de fato, pois estamos, nas grandes cidades, no limiar da barbárie. Que se continue recompondo, inclusive através de concursos públicos, o Estado brasileiro, tão minimizado, e se estanque de vez a grande privataria, dando força ao papel de fomento à produção (especialmente dos micro e médios empreendimentos) e geração de empregos dos bancos públicos.

A implementação da agenda da precarização dos direitos trabalhistas, da autonomia do Banco Central, das PPPs como negócio sem riscos, da gestão verticalista, não-participativa, e da Alca será nossa derrota como projeto de mudança do país.

É impossível fazer transformações sociais no Brasil sem ferir interesses. Governar para transformar é prática que só se afirma na livre manifestação dos conflitos e na mobilização popular. Para isso fomos mandatados.

Chico Alencar é professor de História (UFRJ) e deputado federal (PT-RJ)