Nacional

Apostando no quanto pior, melhor, a oposição trata de promover elementos para produzir a crise. Emerge deste processo um amálgama de fisiologismo e oportunismo anti-republicano radicalizado durante o período neoliberal

Quadrilha
“João amava Teresa que amava Raimundo
Que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili
Que não amava ninguém.
João foi para os Estados Unidos, Teresa para o convento,
Raimundo morreu de desastre, Maria ficou para tia,
Joaquim suicidou-se e Lili casou com J.Pinto Fernandes
Que não estava na história.”

Carlos Drummond de Andrade

Nas eleições para presidente da Câmara em 2001, contrariando o Planalto, que apoiava o acordo que assegurava ao PMDB a presidência do Senado e ao PFL a presidência da Câmara, Aécio Neves entrou na disputa e derrotou Inocêncio Oliveira, candidato do PFL, partido que havia elegido a maior bancada em 1998, 105 deputados, contra 99 eleitos pelo PSDB. Claro, para a composição da Mesa, Inocêncio Oliveira queria ter como referência o tamanho das bancadas saídas das urnas. Aécio Neves preferia, no entanto, considerar o tamanho da bancada no dia da disputa pelo cargo. Naquela data, a bancada do PSDB somava 105 deputados e a do PFL caíra para 103.

O episódio passou mais ou menos despercebido. Nem de longe obteve a repercussão alcançada pela eleição de Severino Cavalcanti, proclamada na madrugada de 15 de fevereiro de 2005. Naturalmente essa repercussão decorre do perfil do eleito e do rigor que geralmente é dispensado ao PT.

No ano passado, por pequena margem, a Câmara derrotou uma proposta de emenda constitucional, na forma de um substitutivo, que assegurava a reeleição do presidente da Casa, por uma vez, na mesma legislatura. Havia clima no plenário para a aprovação daquela emenda que coibiria a eternização de certos personagens na presidência de assembléias legislativas e de câmaras municipais. A emenda recebeu 303 votos. Faltaram apenas cinco para que fosse aprovada. Foi a compreensão de que a emenda continha um casuísmo, na medida em que permitiria a João Paulo Cunha disputar a reeleição, que impediu a aprovação da matéria. Nem o PT fechou questão em torno do assunto. Perdeu-se assim uma oportunidade de dar um pequeno passo na reforma política.

Rejeitado o substitutivo, restou, em condições de ser apreciado pelo plenário, o projeto original da reeleição do presidente da Casa. Esse projeto é pior do que o substitutivo derrotado, porque não contém a limitação de apenas uma reeleição. Mesmo assim João Paulo Cunha demorou a desistir de colocá-lo em votação, o que paralisou a bancada do PT durante um longo período, fazendo com que o tempo disponível para a articulação de sua candidatura à presidência da Casa ficasse muito restrito. Daí a pressa com que foi realizado o processo que culminou na escolha de Luiz Eduardo Greenhalgh como candidato do PT à presidência da Câmara.

Sem grandes debates, de início onze deputados apresentaram à bancada sua candidatura ao cargo de presidente. Acordou-se que haveria um primeiro turno para selecionar os três mais votados. Eles disputariam um segundo turno. Como se verificou um empate, entre Luiz Eduardo Greenhalgh e Arlindo Chinaglia, quatro deputados foram selecionados para o segundo turno: Virgílio Guimarães, Professor Luizinho, Luiz Eduardo Greenhalgh e Arlindo Chinaglia.

O segundo turno não foi realizado porque os demais candidatos retiraram a candidatura em favor de Luiz Eduardo Greenhalgh. Não havia, portanto, como contestar a legitimidade do candidato oficial do PT. Mas Virgílio Guimarães apresentou uma carta elíptica na qual dizia desistir de ser “o candidato do PT”, porém desejava boa sorte a Luiz Eduardo Greenhalgh. Certamente ciente de que o campo majoritário do partido havia fechado questão em torno da candidatura de Luiz Eduardo Greenhalgh, Virgílio Guimarães saiu da reunião para articular sua candidatura avulsa. A bancada se uniu em torno da candidatura Greenhalgh – 87 deputados assinaram uma carta reafirmando essa posição. Nunca, ao longo desta legislatura, a bancada se mostrara tão coesa.

Realmente, a prática de submeter a bancada à lógica das tendências internas tinha sido abandonada havia quase uma década. Mas ultimamente vinha fazendo sua reaparição, até pelas mãos de personalidades que não são do campo majoritário. Mas nada justifica a represália adotada por Virgílio Guimarães. Primeiro porque ele sabe que a vingança não é um método da política, pertence ao campo da pré-política. Segundo porque ele também sabe que, para vencer as eleições presidenciais, o PT fez alianças amplas e, para garantir a governabilidade, essas alianças foram ampliadas ainda mais. Há quem pense, no campo da esquerda, que elas não deveriam ser feitas. Mas Virgílio Guimarães nunca compartilhou desse tipo de pensamento, ao contrário, sempre foi alvo de ironias por seus “excessos” de governismo.

Conhecendo muito bem as fragilidades da base governista, ciente de que o PT detém apenas 17,5% das cadeiras da Câmara, Virgílio Guimarães, com sua candidatura avulsa, abriu a caixa de Pandora, liberou os demônios do oportunismo, do antipetismo e do fisiologismo. Deu uma aula prática de haraquiri e contribuiu para eleger presidente da Câmara um J.Pinto Fernandes que não estava na história. Não conseguiu se classificar para o segundo turno, mas deu um prejuízo enorme ao partido e ao governo, que terá maiores dificuldades para fazer tramitar suas propostas e talvez venha a ser até obrigado a alterar a pauta prevista para 2005.

Engana-se quem pensa que Virgílio Guimarães era o elo possível entre o PT e o chamado baixo clero. Na verdade, a base da candidatura Virgílio estava centrada numa composição de deputados que se organizam em torno da Comissão de Orçamento, que não é o baixo clero. Ao contrário, é um alto clero que deseja ver restabelecidas as práticas anteriores à CPI dos anões do Orçamento, de 1993. Por isso, no segundo turno para a presidência da Câmara, ele não conseguiu transferir um único voto para Greenhalgh, embora tenha declarado que faria o apelo.

O resultado representa um severo golpe, não apenas para o PT e para o governo, mas também para a Câmara dos Deputados e, por extensão, para a democracia. A oposição cumpriu alegremente seu papel, votou contra o candidato do PT, não importava quem fosse. Apostando no quanto pior, melhor. Inspirados por FHC, o qual, só num caso de grave crise institucional, se candidataria à sucessão de Lula, o PSDB e o PFL tratam, agora, de prover os elementos capazes de produzir a crise. Emerge desse processo o sinistro perfil de uma cultura política que alguns julgavam enterrada no país: uma máscara de papier mâché, um amálgama de fisiologismo e oportunismo anti-republicano radicalizado durante o período neoliberal que precedeu o governo Lula, que busca reencontrar seu espaço no centro da cena política.

As reações na imprensa são desencontradas. Algumas mal escondem o regozijo: nas Notas e Informações, do jornal O Estado de S.Paulo, do domingo 20 de fevereiro, sob o título “Um mal para o bem?”, ao mesmo tempo em que reconhece que “são de temer as conseqüências de suas convicções medievais para a sorte de projetos que envolvam, por exemplo, direitos civis ou liberdade científica”, o editorialista exorta o novo presidente da Câmara a seguir a agenda política que o prestigioso matutino julga adequada para o país e conclui confiando que, “se o presidente Severino apoiar o saneamento dos costumes políticos, sua biografia poderá ficar irreconhecível – no bom sentido”. Outras chamam a atenção pelo seu grau de sectarismo: “Menos representatividade somada a menos representatividade dá um governo inerte, sem capacidade hegemônica, cuja única performance significativa se dá na economia, porque permanece soberana a política encetada primeiro por Collor e implementada, de fato, por FHC”.

Essa afirmação não explica como políticas iguais produzem resultados tão diferentes. Para ela o crescimento de 5% do PIB registrado no governo Lula é irrelevante, a redução da relação dívida/PIB carece de importância, o crescimento de 8,3% da produção industrial é desprezível, a reorientação das políticas de investimento do BNDES não conta, a criação de 1,8 milhão de empregos com carteira assinada e o expressivo crescimento das exportações são negligenciáveis.

A quem pensa dessa forma resta a defesa da insurreição popular. Essa não é, todos sabemos, a estratégia adotada pelo Partido dos Trabalhadores. E é duvidoso que os advogados da insurgência estejam dispostos a ir para as barricadas ou tenham capacidade para convencer as massas a assumir tal papel. Isso sugere que há no campo da esquerda quem faça oposição por oposição, sem se dar ao trabalho de construir uma linha alternativa razoável de ação política.

A esquerda brasileira tem acúmulo suficiente para evitar os descaminhos da aventura que neste continente legou muitas tragédias, como o golpe de 64 no Brasil ou a queda de Salvador Allende, no Chile. Coesionar as forças populares diante do inequívoco avanço institucional da direita oligárquica. Combater o anti-republicano e anacrônico neoliberalismo tucano que, hoje, defende para o Brasil políticas que já foram abandonadas mesmo nos países capitalistas centrais é, mais que uma tarefa das esquerdas, um desafio para os democratas de todos os matizes.

O exame da situação política do Brasil, a compreensão de que um revés não é necessariamente uma catástrofe, nos permite sustentar que o PT é uma das âncoras da democracia no país e que ele continuará se conduzindo, no governo, não apenas como agente do desenvolvimento econômico e social e como defensor da soberania nacional, mas também como partido que recusa os maniqueísmos e percebe a democracia como valor universal, que pode e deve ser aperfeiçoada e ampliada. E, talvez, repetir com o poeta “...aprendemos que a construção do Brasil / não será obra ­apenas de nossas mãos. / Nosso retrato futuro resultará / da desencontrada multipli­cação / dos sonhos que desatamos1.

Hamilton Pereira é presidente da Fundação Perseu Abramo