Política

Nenhum dos que chegaram ao governo Lula em 2002, e sobretudo Lula, perdeu de vista aqueles dias luminosos de 25 anos atrás, assim como ninguém se esqueceu dos compromissos e dos sonhos que estão na origem do Partido dos Trabalhadores

Vinte e cinco anos após sua fundação, em fevereiro de 1980, o Partido dos Trabalhadores comemora seu aniversário atravessado por sentimentos diferenciados, quando não contraditórios.

De um lado, a euforia pela vitória eleitoral de 2002, que conduziu seu principal dirigente à Presidência da República, ou a celebração dos êxitos destes dois primeiros anos de governo Lula.

De outro, dúvidas e inquietações sobre os rumos desse mesmo governo, sobre o ritmo das transformações em curso no país e sobre o papel que nelas teve, tem e terá o partido.

Não faltam os que – dentro e fora do PT – vêm o atual governo renunciando suas origens petistas. No poder, ou “no governo”, como pretendem esses críticos, o PT teria perdido seu radicalismo original, aquele frescor que marcou sua fundação e seus primeiros anos e tanta atração exerceu sobre amplos setores da sociedade brasileira, que nele viam algo de absolutamente novo em nossa história política.

O PT teria seguido a trajetória clássica dos partidos socialdemocratas?

Para chegar ao poder, ou a ele chegando, a socialdemocracia acabara por abandonar suas propostas revolucionárias, ou mesmo reformistas, transformando-se em partido daquela ordem que tanto combatera.

Precedentes históricos são evocados. A virada do Partido Social-Democrata Alemão (SPD) no Congresso de Bad Godsberg, na década de 1950, ou, mais recentemente, a inflexão do trabalhismo inglês – o “New Labour” –, que levou Toni Blair ao governo, antecipariam o que alguns ironicamente chamam de “New PT”.

As críticas às vezes são duras. Nada mais diferenciaria o PT dos demais partidos brasileiros. Ao invés da ruptura que tantos esperavam que ele realizasse, o que se estaria assistindo é à vitória da velha tendência conciliatória que sempre marcou a história brasileira.

Mais do que comemorações ou recriminações apressadas, baseadas em paixões ou percepções parciais da realidade, o momento convida à reflexão. Este é o momento para fazer um mergulho na história do PT, parte integrante da história do Brasil nas três últimas décadas, para ajudar a compreender o presente e a avançar hipóteses sobre futuro.

Nova Geração

Nunca é demais evocar as condições que marcaram a formação do PT, em 1980.

O projeto de transição “lenta, gradual e segura” com o qual os militares haviam tentado a auto-reforma da ditadura se desenvolvia aos tropeços na segunda metade dos 70, em meio à crise do “milagre econômico”, acelerada pelos dois choques do petróleo.

Preocupados em impedir o acesso, por via eleitoral, do MDB ao poder, os militares não contemplaram em sua estratégia a “variável social”, como força autônoma, que iria explodir, no final da década de 1970, com os grandes movimentos grevistas.

Seu epicentro no ABC paulista logo se estenderia por todo o país, além do sindicalismo operário, contaminando, inclusive, setores de classe média.

Essa “variável social” rapidamente ganharia dimensão política. Discutida em congressos sindicais, aprofundada em outubro de 1979 no encontro do movimento pró-PT, ela desembocaria na reunião do Colégio Sion, em fevereiro de 1980, quando o partido foi formalmente fundado.

A formação desse partido de composição eminentemente popular, hegemonizado por um núcleo de sindicalistas que no Manifesto de Fundação se proclamava socialista, tem sua especificidade em relação a outras tendências de esquerda no Brasil e na América Latina. Por essa razão qualifiquei o PT como pertencendo a uma “terceira geração”1 de partidos de esquerda no continente.

A primeira, a dos partidos comunistas, tinha como seu referencial básico a Revolução Russa de 1917 e a evolução posterior da União Soviética e do PCUS. A segunda, da chamada esquerda revolucionária, correspondia basicamente ao advento da Revolução Cubana, sobretudo quando esta apareceu aos olhos de muitos como alternativa crítica aos descaminhos do comunismo soviético. Nessa geração estão incluídos, ainda que com propostas diferenciadas, grupos maoístas, sobretudo depois da ruptura sino-soviética, cisões radicais de partidos populistas, a esquerda católica e grupos trotskistas que (re)emergiram nos anos 1960.

Diferentemente dessas duas gerações, o PT não possuía um paradigma revolucionário ou mesmo reformista. Situava-se como uma “esquerda social”, sem referência político-ideológica precisa.

Abrigava sindicalistas sem antecedentes partidários, como Lula, militantes de inúmeros movimentos sociais urbanos e rurais, remanescentes de organizações de esquerda, muitas das quais fortemente golpeadas pela ditadura, integrantes de movimentos católicos de base, políticos da oposição consentida, ativistas de grupos de defesa dos direitos humanos, novos movimentos sociais intelectuais e estudantes.

Por sua proclamada heterodoxia, o PT acolheu uma miríade de tendências político-ideológicas. Algumas lhe recusavam o papel de “partido estratégico”, conferindo-lhe apenas uma função “tática”.

A novidade que o partido representava, e que atraiu a tantos, não era por todos percebida, sobretudo por aqueles que permaneciam prisioneiros a seus velhos pressupostos revolucionários. Mas a experiência organizativa desses setores, sua capacidade de vocalização política, conferira-lhes peso importante, às vezes desproporcional, no aparelho partidário. Contribuíra, porém, para que o partido ganhasse estrutura e normas racionais de funcionamento.

O mundo em transe

O pertencimento a essa “terceira geração” não implicava que idéias e práticas das “gerações” precedentes não tivessem tido seu peso na formação e no desenvolvimento do partido.

A evolução do PT se deu em um quadro – não evidente para todos – de declínio dos dois grandes paradigmas de esquerda do século 20 – o comunista e o socialdemocrata, ainda que a crise do comunismo se revelasse bastante mais aguda.

A década dos 1980, que terminaria com o colapso do socialismo de Estado na Europa do Leste, a queda do Muro de Berlim e o fim da União Soviética, iniciava-se com o premonitório movimento dos operários poloneses, agrupados no sindicato Solidariedade, que muitos associavam ao PT.

A evolução do capitalismo em escala mundial produzira a crise do paradigma keynesiano-fordista, que afetou as bases da política socialdemocrata européia do pós-Segunda Guerra, como ficou visível sobretudo nas experiências dos governos socialistas no sul da Europa.

A tudo isso somava-se a ofensiva política e ideológica neoconservadora ilustrada pelas experiências de Margareth Thatcher, no Reino Unido, e codificada para a América Latina no breviário do Consenso de Washington.

Não só o socialismo era posto em questão como também as experiências nacional-desenvolvimentistas, que haviam marcado a história da América Latina por quase cinqüenta anos.

o caso brasileiro, o nacional-desenvolvimentismo, responsável pelo rápido crescimento econômico do país, aparecia associado ao autoritarismo, imperante durante mais da metade do período 1930-1980, e à concentração de renda, acelerada especialmente nos anos do “milagre econômico”.

Desconfiando, não sem razão, dos limites da agenda democrática da oposição consentida, o PT subestimava os aspectos institucionais da transição enfatizando antes a dimensão social da democracia, não raro impregnada de basismo.

O controle social do Estado, tema relevante para pensar a democracia hoje, que depois se sofisticaria na reflexão partidária, especialmente com as experiências dos orçamentos participativos, mereceu muitas vezes um enfoque simplista, próximo da problemática clássica do “duplo poder”, tal como esta aparecera na literatura da Internacional Comunista, décadas antes. A polêmica entre os pré-candidatos à prefeitura de São Paulo, em 1988, é reveladora a esse respeito. Plínio de Arruda Sampaio, apresentado como candidato “moderado”, defendia a criação de conselhos populares com caráter “consultivo”, enquanto Luiza Erundina, apoiada por grupos mais à esquerda, advogava que os conselhos tivessem caráter “deliberativo”. Vitoriosa Erundina e após quatro anos de seu governo, nenhum conselho foi criado.