Política

Uma das mais importantes lideranças camponesas do Brasil em todos os tempos, um dos primeiros signatários do Manifesto de Fundação do PT.

Numa tarde quentíssima em Porto Alegre, por ocasião do V Fórum Social Mundial, fizemos esta entrevista com Manoel Conceição, sem dúvida uma das mais importantes lideranças camponesas do Brasil em todos os tempos. Fundador do PT e um dos primeiros signatários de seu Manifesto, numa homenagem prestada na época à sua trajetória de lutas e à de todos os trabalhadores rurais brasileiros, Mané nunca parou de lutar ao longo de seus 140 anos – como ele explica – de vida. Estava em Porto Alegre como mais uma atividade política, participando dos debates sobre economia solidária, frente de batalha à qual se dedica nos últimos te mpos. Com sua fala mansa e tranqüila de homem do campo, muito à vontade naquele calor senegalesco, Mané nos relatou sua vida heróica enquanto consumíamos garrafas e garrafas de água. Há homens que viveram epopéias mas, infelizmente, não sabem contá-las ou o fazem mal. Azar o nosso. Não é o caso de Mané. Ele soube compreender e tirar lições de uma experiência de vida ímpar. Sorte a nossa, que podemos aqui desfrutar de seu relato. (H.P. e R.A.)

Quantos anos você tem?

Vou completar 140 anos, no dia 4 de julho deste ano.

Como assim?

Quando nasci e onde me criei, a noite não era contada como dia. Os meus avós e pais diziam: um ano tem 365 dias. Então, como o ano tem 365 dias, ele tem 365 noites, e, juntos, termina a gente tendo 140 anos!

E você nasceu onde?

Nasci em Pirapemas, numa comunidade chamada Pedra Grande, no Maranhão. Na época era município de Coroatá. Hoje é município.

Sua família era de camponeses?

Minha família era de camponeses, agricultores pobres. Meu avô descendia de indígenas, meu pai de africanos escravos e minha mãe de portugueses. Então tenho três sangues: português, índio e negro africano. Juntou isso aí, deu Mané.

Sua família é do interior do Maranhão?

Todo o tempo habitaram no campo. Primeiro na região de Vargem Grande (MA), que nós chamamos de desemboque do Rio Parnaíba, entre o Piauí e o Maranhão. Depois eles mudaram para esse lugar chamado Pedra Grande, que fica na beira do Rio Itapecuru.

E como você começa a se conscientizar, a participar da luta?

Meu pai tinha um patrão chamado Luís Soares, que era considerado o pai dos pobres. E como os agricultores pobres tinham dificuldade de ter suas terras registradas, pagar impostos direitinho, ele sugeriu ao meu pai incluir a terra herdada dos avós como sendo dele, porque nossa terra ficava no meio da terra dele. Ele disse: “Não vale a pena registrar um pedaço pequeno assim. Eu incluo como minha, mas na verdade é de vocês para o resto da vida, filhos e netos”.

Mas em 1953 esse cidadão morreu. E a gente pensava que ele tinha feito isso só conosco, mas ele tinha feito com centenas de famílias da região do cerrado maranhense. Um ano depois, a viúva, com os filhos, entendeu de tomar essas terras e juntou centenas de jagunços, policiais, que saíram expulsando todo mundo, e nós fomos atingidos. Ficamos sem terra e viemos para a região do Mearim, município de Bacabal, onde iniciamos o trabalho de criação da associação rural de agricultores, pois as terras também eram da União, não tinham dono.

Três anos depois apareceu um cidadão chamado Manacé Castro, filho de Raimundo Lauro de Castro, delegado de polícia há mais de trinta anos. Esse Manacé, criador de gado em grande escala, entendeu que essas terras onde vivíamos eram deles. Pediu para sairmos, que ele queria cercar as terras. O pessoal reagiu, não saímos. Um dia, nós estávamos numa reunião. Eu tinha chegado de Bacabal, depois de uma conversa com o delegado de polícia a respeito do caso. Aí chegou na porta da casa o senhor Manacé, com uns vinte jagunços, dizendo: “Não corre ninguém, porque senão vai morrer todo mundo! Vocês vão ter que sair agora....”

A casa era um salão grande de um morador, da família Mesquita. Eles eram evangélicos da Igreja Batista. Aí entrou um dos jagunços e matou, sem troca de conversa, cinco pessoas, a bala e punhaladas nos rapazes e em uma senhora de mais ou menos 75 anos, que gritava na sala: “Não mate meus filhos!” Só que já tinha três rapazes mortos no chão. Deram um tapão na cabeça dela, jogaram a mulher no chão e cravaram nas costas o punhalão. Ela ficou rodando no chão, esvaindo em sangue. Uma criança de 3 anos, vendo os mortos no chão, corria gritando: “Papai, papai....” Um dos jagunços pegou essa criança e deu uma estucada numa parede de taipa que a cabeça lascou, os miolos se espatifaram no salão.

Eu escapei porque tentei furar o cerco, mas ainda levei um tiro na perna direita. Não quebrou porque só passou cortando a carne. Caí num mangueiral, já estava escurecendo, e eles não me vendo mais foram embora. Voltei para a casa onde tinha ocorrido a chacina e estavam lá as famílias do resto da vizinhança chorando. Nessa época, eu era da Assembléia de Deus, era professor de escola dominical para a juventude e trabalhava na minha comunidade.

Quantos anos você tinha?

Era 1957, portanto tinha 22. Naquele momento fiz um juramento para Deus e aquela comunidade que iria dedicar toda a minha vida a lutar contra aquele tipo de situação provocada pelos latifundiários. E esse juramento me obrigou a voltar a Pirapemas, criar uma associação para resistir. Aí criei a associação e passei uns quatro meses trabalhando lá.

Um dia os lavradores resolveram retomar aquelas terras que tinham perdido. E a dona Margarida Soares, a viúva do Luís Soares, foi a São Luís e se queixou que um bocado de comunistas tinha invadido Pirapemas e estava tomando as terras deles e pediu providências na Secretaria da Segurança Pública. O fato é que ela trouxe um recado que era para todo mundo da associação ir para a sede conversar com um cidadão que vinha de São Luís. E nós fomos para lá, como um bando de babacas, e ficamos esperando o trem que passava ao meio-dia. Deu meio-dia e não veio ninguém. Aí ficamos preocupados. Mas a polícia tinha saltado do trem a uns cinco quilômetros, num lugarzinho chamado Catanhede, e foi no pé até lá. Vinte e oito soldados e um tenente. Chegaram e só fizeram perguntar: “Quem é o presidente dessa merda aí?” O pessoal ficou tão atarantado que nem soube dizer quem era o presidente da associação, que era um senhor chamado Antônio Vicente. Eles se enfezaram: “Rapaz, não tem presidente? Então lá vai bala!”

Foi muito tiro. Mataram sete companheiros e companheiras e feriram mais três: José Bonifácio, seu Leopoldo e Sena. Ficaram no chão todo retalhado de bala. Eles não morreram, mas os outros sete morreram. E o Antônio Vicente foi preso, levado para São Luís, e passou mais de três meses na cadeia, acusado de ter sido o culpado do massacre.

Isso também botei na minha agenda. Mas, até 1962, eu era apenas um rebelde. Não entendia de política, só queria vingança daqueles crimes praticados. Estava quase a me transformar num segundo Lampião, pois minha vontade era, ao ver um fazendeiro, um latifundiário, meter bala. Era só revolta. Fui obrigado de novo a sair de Pirapemas e ir para o Pindaré-Mirim, para não ser pego. Meus pais também saíram do Mearim e foram para o Pindaré.

Aí, graças a Deus, encontrei uma equipe que tinha sido criada pela Igreja, que se chamava MEB (Movimento de Educação de Base). Eles tinham uma prática de fazer treinamento no interior, com lavradores, e eu fui convidado para um treinamento de treze dias em Santa Inês. Nesses dias foram discutidas muitas coisas, entre elas o entendimento de política, de sindicalismo, a importância do cooperativismo. De sindicato, eu só ouvia falar que tinha na cidade, lá no interior tinha só sindicato de estivadores. Até então, sindicato de trabalhador rural não existia.

Terminou o curso, e eu saí com a missão que o MEB nos orientou. Eles ficaram monitorando, e eu fui para o interior e me juntei com outro companheiro, chamado Antônio Lisboa Brito, a quem também homenageio como um cidadão de bem e de honra e um homem de luta, muita coragem e muita paciência. Era também agricultor e ferreiro. Das 35 pessoas que fizeram o curso, só cinco assumiram o trabalho quando voltaram para sua comunidade. Esses cinco, nos juntávamos e discutíamos o que fazer.

Quase todo mundo era analfabeto. Começamos a contatar pessoas que sabiam ler nas comunidades e criamos escolas para ensinar à noite os adultos e durante o dia as crianças. E fomos fazendo escolas, que botamos o nome de Escola João de Barro, porque era uma casinha só com uma porta, uma janelinha, mais um buraco para poder correr vento, e os bancos eram todos de madeira lavrada, no facão mesmo, na enxó, no machado. Fizemos 28 escolas e os professores eram pagos por nós. Fazíamos coleta toda semana para ir juntando numa caixinha comum. No final de semana, aquela professora tinha algum para ajudar o marido na roça.

Em toda a região do Pindaré-Mirim?

Naquele tempo, só existia como município o Pindaré-Mirim. Santa Inês e Santa Luzia eram povoados. Então, nós cobríamos todo o município de Pindaré-Mirim.

Depois de um ano, no dia 18 de agosto de 1963, nós fundamos o primeiro sindicato de trabalhadores rurais do Maranhão. Foi o sindicato de Pindaré-Mirim, com o nome de Sindicato de Trabalhadores Autônomos, porque nós não éramos assalariados, éramos autônomos, posseiros, o que mais tinha no Maranhão. Ainda hoje tem poucos assalariados. No sindicato apareceram mil famílias de trabalhadores. E a primeira reivindicação feita na assembléia foi que os fazendeiros prendessem o gado para que não comesse nossa produção. Apesar de toda a movimentação, denúncia e pressão, os fazendeiros não prendiam o gado. Não cercavam.

Então veio o golpe militar, fomos perseguidos, nossa sede foi ocupada pelo Exército. Não podíamos mais usá-la, mas nos reuníamos nos matos. O sindicato tinha muitas delegacias, era organizado por grupos. Cada delegacia tinha um grupo de liderança, articulado com os outros.

Você era presidente?

Não. O presidente era Zé Vicente, que foi preso e, quando saiu da cadeia, não aceitou mais o cargo. Eu passei a ser presidente um mês antes do golpe. Por aclamação, o pessoal me elegeu presidente do STR de Pindaré-Mirim. Três mil lavradores...

A história do gado chegou num ponto em que começamos a dizer: “Até hoje nós denunciamos, fizemos apelo, exigimos e ninguém prendeu seu gado. Mas, a partir de hoje, gado comeu roça, come bala. E mais, o dono leva o resto da grana – porque nós vamos vender a carne – se sobrar da indenização do prejuízo que ele deu na roça do lavrador. Se não sobrar, não leva nada. Vai ficar devendo ainda”. E assim fizemos. Rapaz, todo dia, eram no mínimo quinze, vinte vacas. Camponês comia carne à vontade! E dava carne, e vendia carne... Rapaz, uma alegria! Aí eles começaram a prender o gado deles!

Mas isso levou a um ódio terrível contra nós. Eles começaram a organizar milícias paramilitares em tudo quanto era povoado. Mas não tínhamos medo, não, o pessoal era muito briguento. Isso durou até 1969. Nós criamos também cooperativa, tínhamos paiol de arroz, às vezes com 500 sacos armazenados. Porque o pessoal em geral devia ao barraqueiro que lhe vendeu fiado durante o inverno, porque tinha de comprar na mão dele mesmo. No mês de junho, quando era a colheita do arroz, o barraqueiro baixava o preço e pegava o arroz todo quase de graça do agricultor. Então fizemos os armazéns coletivos, e todo mundo vigiava esses armazéns. Assim, de outubro em diante, quando o arroz sobe um pouco o preço, nós vendíamos e pagávamos a dívida. Mesmo com juros valia a pena.

Mas aí o Exército interveio durante sessenta dias, prendeu mais de duzentas lideranças e levou para São Luís. Aqueles companheiros que tinham uma noção política caíam no mato, e os soldados não iam lá porque tinham medo demais. Uma vez nós estávamos numa bolota e ia passando um caminhão cheinho de soldados. Jogamos uma pedra e foi o maior susto, caiu todo mundo no chão... “Bala, bala, os homens estão aí...” Mas não acharam ninguém e foram embora, porque lá no Maranhão, naquela época, mesmo com toda a ditadura, o único sindicato que colocava 50 mil trabalhadores na rua, em três cidades, tudo num dia só, era o de Pindaré-Mirim. Nós ocupávamos Pindaré, Santa Inês, Santa Luzia e ainda a cidade de Bom Jardim. E durante aqueles dias ninguém saía nem entrava, porque naquele tempo não tinha estradas e a polícia, para ir para lá, vinha de São Luís por lancha, em época de inverno, e demorava. Então nós pintávamos e bordávamos ali dentro.

Como foi o episódio da perda da sua perna?

Eu perdi essa perna no dia 13 de julho de 1968. Nós convocamos um encontro de trabalhadores doentes, com malária, mulheres precisando fazer exame. O sindicato tinha contratado um médico em São Luís, o doutor João Bosco. Na hora em que ele estava atendendo, recebemos um recado do prefeito de que ia fazer uma visita. Nós aguardamos, de bom coração. E aí chegou foi a polícia – e, de novo, meteram bala. Desta vez não morreu ninguém, só saíram feridos e eu com essa perna baleada. O pé esbagaçou todinho. Fui preso, passei oito dias na cadeia em Pindaré-Mirim, mas não deram nenhum tratamento e a perna gangrenou. Quando cheguei em São Luís, tiveram de amputar. Até hoje ando de perna mecânica.

Mas houve uma pressão em São Luís, de estudantes, professores, o advogado, o próprio médico que fez a operação. Na época em que eu estava no hospital, o Sarney – que era o governador – chegou do Japão. Ele tirou uma comissão do secretariado de governo e mandou no hospital para pedir desculpas e fazer uma proposta: me daria uma perna mecânica, uma casa, um carro, mais um salário para mim e um pouco para a família, para eu trabalhar para Zé Sarney no Maranhão.

Sarney tinha sido o cara mais votado do Estado, porque quando foi candidato, em 1965, jurava, em cima de caminhão, que ia fazer a reforma agrária para vingar os massacres que os inimigos nossos fizeram com os irmãos dele – que éramos nós. Esse discurso pegou em cheio. Nós fizemos campanha para ajudar esse homem a se eleger. Mas foi a polícia dele que chegou lá em Pindaré-Mirim metendo bala. Aí eu lembrei disso e disse para eles: “Acho até importante o que vocês vêm fazer aqui, essa oferta, mas eu perdi uma perna na luta com os trabalhadores rurais, em defesa da terra, de sua produção e seus direitos. Esses trabalhadores têm condição de me dar uma perna, já que não posso comprar sozinho. Até porque eu considero a minha classe a minha própria perna daqui pra frente”. E não aceitei. Depois disso, não recebi mais ninguém deles.

Então vim para São Paulo porque a perna não sarava. Fiz nova operação e nunca mais tive nenhum problema. Em 1969, quando estava em São Paulo, fui ao ABC, a Osasco e andei em São Paulo fomentando a criação de comissões de fábrica, para se transformarem em oposição sindical contra a ditadura militar. Fui para Minas, trabalhei muito em Contagem, onde tinha um companheiro operário chamado Enio Seabra, e lá fiz um trabalho com os operários – quase uns trinta dias fazendo reunião, discussão. E criando outras oposições, a Igreja foi criando, e foi crescendo esse trabalho.

Você era casado na época?

Era. Eu me casei em 1960, em Santa Inês, com Maria Rita Pinto, e convivi com essa companheira até 1971. Tivemos três filhos, mas um morreu. Tem a Raquel, que é a mais velha, e o Manoelzinho. Mas a perseguição era muito grande, minha mulher não agüentava, porque, onde os meninos apareciam, a notícia corria e a polícia batia. Ela foi para o Piauí, para a casa dos pais, dos irmãos. Vinha ainda algumas vezes me visitar. Em outubro de 1971, ela veio e nós fizemos a despedida.

Quando começa sua relação com a Ação Popular?

Logo após o golpe militar, o MEB, que nos assessorava, não pôde mais prestar apoio. Aí nós criamos um grupo de militantes que tinha cinco dirigentes, entre eles Antônio Lisboa, um chamado Jodinha e uma companheira chamada Luzia. Nós nos constituímos no MEB Alternativo do Campo. Tínhamos o compromisso de que, se a gente fosse preso e morresse, quem sobrasse teria a obrigação de continuar essa luta. Na discussão da criação desse grupo, apareceu o companheiro Rui Frazão, que era do Maranhão. Foi quando ouvi falar que existia essa AP, que parte dos companheiros do MEB eram da AP. Eles eram muito simpáticos ao fidelismo, também ao companheiro Guevara. Então comecei a aprofundar mais a questão política e passei a ser um dos militantes da AP, chegando a ser um dos membros do comitê central, da executiva nacional, já no final da organização. Foi quando conheci Jair Ferreira de Sá, Paulo Wright e muitos outros.

Os demais companheiros, muitos foram presos em 1973. Bateu uma repressão tão forte naquela região que o pessoal que não quis ser preso escapou no mundo. Estão lá por Pará, Amazonas... Dispersou tudo.

E daquele grupo de cinco, até uns dez anos atrás, não sabíamos de nenhum. Em 2000 encontrei um companheiro, o Antônio Lisboa, que mora num bairro de Teresina, onde ficou escondido.

E quando você foi para a China?

Quando estava fazendo esse trabalho aqui no Sul, recebi uma proposta para fazer uma viagem à China, em 1969. Fiquei animado para ir, os companheiros arranjaram passaporte falso, saí do Brasil pela Guiana Francesa, na clandestinidade. Cheguei lá quando tinha terminado a grande festa da vitória da Revolução Chinesa, em outubro. No aeroporto havia uma banda de música, achei muito bonito. Foram me receber no avião. Eles me levaram para a casa de recepção, depois a Pequim, e fizemos um programa de visita pelo interior. Andei por várias províncias. Andei na Muralha da China. Beleza aquilo. Impressionante. Andei mais de um mês de trem e avião. Depois fui para uma escola e fiz um curso político e de instrução militar, de guerra de guerrilha.

Foi lá que começou minha divergência com alguns companheiros da AP. Na época, a AP entendia que o Brasil era um país semifeudal e semicolonial como a China antes da revolução. Eu cheguei à conclusão de que a China não tinha nada a ver com o nosso país. Tem uma história totalmente distinta. Então começamos uma guerra interna. O companheiro com quem a gente fechava mais ou menos era o Paulo Wright, que era da direção nacional mas também discordava dessa análise.

Qual o fato que mais marcou nessa viagem?

Por causa dessa divergência, nós brigávamos na escola, contestando uns aos outros. O nosso pessoal tinha uma crítica ao programa da Rádio Pequim feito para o Brasil, que só falava da China, mas tinha medo de assinar essa crítica. Aí me colocaram para assinar. Eu assinei. A China tinha me oferecido uma perna mecânica bonita e nova, para poder participar da guerrilha. Um dia fui convidado para fazer a prova da prótese, e o camarada que me acompanhou me convidou para ir a outro lugar. Isso lá em Nanquim. Eu fui, e, para minha surpresa, era uma entrevista com o Mao Tsé-tung! Ele queria saber como estava a unidade do grupo na escola. Eu disse: “Está muito boa, legal”. Ele disse: “Não é bem isso de que estou informado”. Depois de muita conversa, ele deu uma gaitada: “Eu passei quinze anos isolado com uma divergência com o meu partido. Não rachei o meu partido, eles racharam comigo. Mas eu não rachei”. E continuou: “Quando você voltar para o Brasil, esqueça tudo o que aprendeu na China. Nós não valemos nada para o Brasil. Nada”.

Depois, ele deu um segundo parecer: “Quando você estiver numa luta interna, nunca seja o primeiro a propor ruptura com quem está no mesmo campo, porque isso não contribui para a reflexão dos outros. Mantenha sempre aquilo em que você acredita no debate, mas não provoque”.

E o terceiro parecer, que é para mim o mais importante: “Chegando ao seu país, comece a estudar a história do seu povo, a sua vida política, econômica, cultural, educacional, e comece, a partir daí, a construir um programa correspondente ao que esse povo quer. Porque a China foi importante, mas para a China. Para o Brasil, ela não é importante”. E acrescentou: “Porque na China ainda existem os inimigos encapados de maoístas, mas que querem fazer da Revolução Chinesa um pé de sapato para o mundo inteiro, e isso não é possível. Isso é um dogmatismo. E o dogmatismo não pode ser aceito”.

Ele falou outras coisas, mas essas três é que foram marcantes. Essa filosofia, eu até hoje mantenho no meu trabalho. Nunca propus em nenhum momento racha com ninguém da esquerda brasileira – nem no sindicato, nem na cooperativa, nem em canto nenhum – porque não acredito que seja uma solução com quem está trabalhando no mesmo campo de luta. Às vezes são questões de método, questões de visão, mas não são inimigos.

A partir de então, tenho Mao Tsé-tung como um líder que tem me ajudado muito. Tenho como sagrada essa orientação. Para minha surpresa, quando estava na Suíça, refugiado, fiquei sabendo do conflito na China, com a questão do Lin Piao. Não posso contar hoje por onde é que a China anda. Mas naquele tempo, para mim, ela estava num caminho bom, era um povo alegre, satisfeito. Eu vi lá muitos trabalhadores rurais que eram agricultores e passaram a ser grandes dirigentes do partido.

Você voltou quando para o Brasil?

Passei lá nove meses. Quando voltei, os membros da delegação se dividiram da França para cá. José Barbosa, que era um companheiro metalúrgico do ABC, veio pelo mesmo caminho da ida, e eu vim pelo Chile, Argentina e Uruguai. Quando estava no Uruguai soube que o Zé tinha sido preso na Guiana. Ele voltou para a França preso e de lá foi para a Suíça, onde ficou.

Volto para o Brasil, clandestino, e em janeiro de 1972 sou preso no Pindaré. E mais, acusado de ladrão. Tinha começado a guerrilha lá pro lado do Araguaia, e os companheiros que aderiram àquela proposta estavam juntando alimento, arroz, para levar para aquelas bandas. Fizeram uma desapropriação numa usina, tiraram uns 25 sacos de arroz pelado. Quando foi de manhã, o dono descobriu, foi à polícia e denunciou. A polícia foi procurar o ladrão. E eu, que não sabia de nada, vinha de Pindaré, num cavalinho castanho que tinha comprado. De repente deu uma chuva pesada, os rios encheram e eu, que não podia andar a cavalo, fui a pé. Mas, com esta perna, fui pego na beira do rio, acusado de ladrão de arroz!

Eles não sabiam quem você era?

Não sabiam. Quando cheguei na delegacia, o povão estava esperando para ver quem era o ladrão e começou a dizer: “Ah, esse aí não é ladrão! Esse é Manoel da Conceição. Ele não rouba!” Foi uma confusão, os soldados ficaram tão assustados que até rifle caiu da mão. Então o delegado disse: “Não é ladrão, mas tenho uma procuração para prender porque esse homem é subversivo”.

Aí me levaram para São Luís, onde passei trinta dias. Numa madrugada me raptaram do Dops, me botaram num avião militar sem dizer para onde ia. Quando cheguei, me disseram: “Você está no DOI-Codi, no Exército do Rio de Janeiro”. Paguei caro por essa ida à China, porque, não sei como, a ditadura ficou sabendo. Não está escrito o que passei nessa prisão. Sabe o que é a pessoa passar oito meses em subterrâneos clandestinos, só saindo para ser torturado ou ir para o hospital?

Depois de mais de seis meses, um dia eu estava numa cela e jogaram lá um preso, todo arrebentado, chamado Samuel Jorkevich. Ele era do Rio e disse: “Se eu não morrer e sair, vou espalhar que você está aqui, escondido”. E foi isso que ajudou a me salvar, a notícia correu. Aí me levaram para a Bahia. Lá fiquei uns quinze dias, escondido no quartel, e tome cacete! Depois me mandaram para o Recife, de lá para Fortaleza. Eu me lembro que por seis vezes acordei no hospital com todos os dedos pretinhos como carvão, a unha arrancada, os ouvidos estourados de tanta porrada, de choque elétrico. Posso dizer que passei por semimorto umas seis vezes. Sem socorro.

E como é que você saiu da cadeia?

De Fortaleza me apresentaram na Auditoria da 7ª Região Militar e prestei um depoimento em que falei tudo o que tinha vivido: as mortes, as prisões, denunciei tudo. Desafiei até a Justiça. Eu disse: “Quero saber qual foi a casa que incendiei, qual foi o banco que assaltei. Eu apenas tenho uma luta em defesa de um povo, e eu faço parte dele. E a gente quer terra, quer direitos, quer saúde, quer trabalho, quer liberdade. E se isso é negado a gente tem de ser contra, mas, se isso é crime, sou criminoso mesmo”.

Fui julgado e, como não tinham prova contra mim, deram três anos de condenação e me soltaram, pois já tinha cumprido três anos e meio de cadeia.

Mas minha advogada não se conformou, apelou para o Superior Tribunal, e eu fui absolvido por unanimidade. Portanto, até hoje sou réu primário.

Quando você foi solto?

Em 1975, no final do ano. Vim para São Paulo, me prenderam de novo, alegando que eu tinha de estar na cadeia. Depois de mais de um mês de tortura, eles me chamaram para saber o que eu achava da diocese no Brasil, da posição de dom Aloísio Lorscheider.

Como é que você sai dessa e vai para a Suíça?

Quando fui preso, houve uma intervenção muito pesada da Igreja, no Brasil, e também internacionalmente. A Anistia Internacional cumpriu um papel gigantesco. Nos Estados Unidos – porque eu tinha sido evangélico –, os pastores divulgaram que tinha sido preso um pastor evangélico. Criaram dezoito comitês de solidariedade, num trabalho coordenado pelo Marcos Arruda. Com toda essa pressão, o governo resolveu que só me soltava com a condição de eu sair do Brasil. Os companheiros que estavam na Suíça, sabendo dessa informação, falaram com a Liga Internacional de Direitos Humanos e veio um companheiro para me acompanhar daqui até lá. Fiquei na Suíça três anos e meio.

Nesse período você se casou de novo...

No período em que fiquei preso, minha primeira companheira se juntou lá no Piauí, teve uns quatro filhos. A Denise, que hoje é minha mulher, na época era assistente social no Ceará, paga pelo Estado para visitar presos comuns. E lá ela me viu na cadeia. Quando fui julgado, ela estava lá. Depois de solto, a Igreja me guardou na casa de dom Aloísio Lorscheider, que era o arcebispo e o presidente da CNBB, por causa das ameaças de morte que havia contra mim. Ele indicou a Denise, que na época estava no convento ainda, para me acompanhar. E nessa conversa a gente terminou se engraçando um com o outro e nos casamos em São Paulo. Quem fez o meu casamento foi o padre Bianchi e o padre Dominique Barbès, francês. Ambos já morreram.

Aliás, o Dominique foi um cara de quem gostei muito, me escondeu da polícia na casa dele. Devo muito ao pessoal da Igreja. Eu tenho muita admiração, porque, mesmo não fazendo aquilo que eu fazia, eles me aceitavam. Acho que por isso mesmo a Igreja tinha por mim muito carinho, e eu, apesar de ser da outra Igreja, tinha uma afinidade muito grande com a Igreja Católica.

Você teve mais um filho com a Denise?

Uma filha, que nasceu na Suíça e se chama Mariana. Ela hoje é formada em agronomia e está no programa de agricultura ligado ao Incra.

Como você ficou sabendo do PT?

Alguns meses antes de vir embora, soube da história da criação do PT. Convoquei na Suíça um encontro internacional de refugiados, eram uns quarenta, e passamos três dias discutindo essa proposta, mesmo sem conhecer bem seus fundamentos. Só o fato de ser trabalhador, metalúrgico, um operário, líder sindical que tinha puxado, para mim já era um grande passo.

Na época, havia uma guerra entre os refugiados. Tinha um grupo que queria condenar o Lula porque no início ele tinha um discurso – ao menos nas revistas que saíram – de que não gostava de política, que não era político. Diziam que ele era um agente do imperialismo! Comecei a escrever para ele, ainda pelos jornais O Companheiro e O Trabalho. Eu dizia: “O companheiro Lula é uma liderança operária, pode ser despolitizado, mas é uma liderança que tem de ser respeitada, porque política não é só para os partidos da burguesia – é para nós também, trabalhadores”.

Na véspera de voltar, mandei para o Lula uma carta dizendo que queria que ele me recebesse. Quando cheguei tinha muita gente, muitos ônibus com operários no aeroporto.

Você lembra a primeira vez que encontrou com Lula?

Logo no outro dia em que cheguei fui a um debate em São Bernardo do Campo e encontrei Lula e José Ibrahim. Desde então ficamos muito amigos, muito companheiros. Até disse para ele recentemente, em Brasília: “Quando um de nós morrer, quero que a gente esteja junto no mesmo caminho. Eu não quero morrer separado dessa caminhada...”

Lula é uma figura muito importante na minha vida. Eu o respeito muito, não apenas pela sua origem de migrante do Nordeste, mas também porque é um cidadão de grande sensibilidade. Ele consegue captar, sentir as coisas, mesmo sem ter fundamentação teórica. É essa sensibilidade de ver, sentir, que faz dele o meu grande líder. E, para mim, só o fato de Lula ser o presidente da República, mesmo que ele não fizesse nada, já valeria, pois conseguimos quebrar um preconceito de que para ser presidente precisa ser doutor ou milionário.

Depois há o encontro de fundação do PT, e você é um dos primeiros signatários do Manifesto de Fundação.

Nós tiramos primeiro uma comissão nacional pró-construção do Partido dos Trabalhadores. Eu fui para Pernambuco com a incumbência de construir o partido lá, no Rio Grande do Norte, na Paraíba e dar um monitoramento na Bahia e em Alagoas. Se pudesse, ia até o Ceará. E fiz isso. E na fundação do partido eu era dessa comissão. Não sei quem foi que puxou, mas o fato é que fui convidado para assinar a ata de fundação junto com o Mário Pedrosa e o Apolonio de Carvalho. Assinou Mário, assinou Apolonio e assinou Mané...

O que você fazia em Pernambuco nessa época?

Eu trabalhei construindo o PT e a CUT durante cinco anos. Criei o Centro de Educação e Cultura do Trabalhador Rural (Centru), que existe até hoje. De lá fiz contato com os companheiros do Maranhão.

E quando você volta para o Maranhão?

No final de 1985. Também construí lá o Centru, ajudei o movimento sindical, ajudei na luta pela terra. Comecei a estruturar um projeto que abrangesse política partidária, sindicato, cooperativa e associação e a trabalhar nele. Foi um grande avanço, porque conseguimos instalar o PT no Estado inteiro. Mas lá tem uma oligarquia muito forte, que viciou o povo a viver na situação de esmola – tanto que o Maranhão ainda é considerado o Estado mais pobre do país. Trabalho lá há vinte anos e, nas áreas de transição da Amazônia para o cerrado, estamos com mais de 10 mil hectares de terra que conseguimos recuperar em parte, plantando culturas permanentes, onde temos umas 1.500 famílias organizadas em sete cooperativas de pequenos agricultores agroextrativistas. E criamos a Central de Cooperativas Agroextrativistas do Maranhão.

No trabalho do Centru todos os dirigentes são homens do campo. Contratamos outras pessoas para prestar serviço, mas os dirigentes, que determinam a política, são todos trabalhadores rurais que estão nas comunidades. Hoje temos uns 38 quadros dirigentes.

Mas o que nós podemos fazer com a nossa força, através da cooperativa, já fizemos. Agora estamos com um problema grave: temos muita fruta de boa qualidade, caju principalmente, bacuri, pequi, manga, mangaba, cajá, açaí, abacate, buriti, mas nos falta condição para industrializar essa produção, e sem dinheiro a gente não faz, porque a máquina de beneficiamento da polpa é cara. Como é um grupo grande, o microcrédito, para nós, não vale. Então estou apelando para meu companheiro Lula e os ministros, o companheiro Miguel Rossetto, do Desenvolvimento Agrário, e os outros, para que haja maior enfoque nessa produção alternativa, solidária, porque sem ela não vai haver mudança neste país. Só fortalecendo as grandes empresas multinacionais e internacionais não dá.

Você está dialogando com a Secretaria de Economia Solidária do governo?

No Maranhão faço parte do fórum de direção local. E o Centru também faz parte. Estamos juntos nessa guerra. Agora estou apresentando o primeiro projeto que estamos implantando no sul do Maranhão para beneficiamento de castanha de caju. É uma fábrica para beneficiar 1.600 quilos de castanha em São João da Mangabeira. Como lá tem um avanço muito pesado da monocultura da soja, estamos colocando essa fábrica para ser um contraponto. E já convidamos Lula para inaugurá-la, feita por trabalhadores e trabalhadoras rurais, no dia 25 de julho. Ao lado da fábrica, já deixamos 150 hectares de terra para fazer uma escola de capacitação de trabalhadores. Queremos uma força do governo para implantar essa escola. Os trabalhadores rurais começaram a se “empoderar” da produção, da terra, do conhecimento e também dos seus negócios, e sem isso não vai haver libertação.

Qual é a avaliação que você faz do governo Lula?

Eu queria que não tivéssemos só crítica. Quero que tenhamos propostas para que o governo possa pensar como implementá-las. Porque a crítica é importante, mas a crítica pela crítica não leva a lugar nenhum. Eu quero a crítica com propostas. E é aí que quero ajudar meu companheiro Lula. Não estou de acordo com tudo, não. Não posso dizer que tudo o que Lula está fazendo está beleza. Acho que ele tem de mudar um bocado de rumo. Potencializar mais os trabalhadores, não só na questão econômica, mas também na questão da organização, do “empoderamento” da sua produção, nos ajudando a produzir. Quero que ele faça muito mais do que já fez, mas sozinho não vai conseguir. E se não ajudarmos com as nossas forças, com as nossas propostas, aí fica pior. Porque eu me sinto governo. Estou lá no mato, mas me sinto parte deste governo. Não estou na máquina, mas me sinto responsável lá onde estou. Não posso fazer muito, faço pouco. Mas estou fazendo, para ajudar.

Nós vivemos em uma sociedade em que, durante 500 anos, se consolidou uma estrutura jurídica, ideológica, cultural e econômica que não se quebra de um dia para o outro só porque se elegeu um presidente. Tem de ter um trabalho muito pesado num longo período. Quatro anos é insuficiente, oito anos também. Nós estamos trabalhando para começar a “empoderar” a classe trabalhadora, a partir dos movimentos, e isso inclui o conhecimento científico, que essa grande massa quase não tem.

Em segundo lugar, temos de entrar na questão da cultura, porque a cultura capitalista não é só dos patrões. Ela está arraigada na mente e na prática de cada pessoa. Isso não muda de uma hora para outra. É difícil. E se mudar pela força é preciso botar ditadura. E eu não acredito em ditadura nenhuma. Pode vir da burguesia, pode vir do proletariado. Eu não acredito em nenhum sistema se é preciso aplicar uma ditadura ferrenha. Quero que comecemos a nos “empoderar” do conhecimento, do saber, da cultura, da economia e, principalmente, da nossa organização de base, forte, no plano social, político e econômico. Fora disso não existe libertação de um povo.

Então, para não cometer injustiça, eu diria que me sinto orgulhoso por ser uma pessoa que compreendeu esse processo de transformação de um modelo para o outro. Não adianta ter economia solidária se não tem um espírito, um sentimento, um homem, uma mulher solidários. E esse sentimento solidário tem de tomar conta das escolas, das universidades, porque senão não se constrói essa nova cultura, que vai ser resultado dessa nova relação de um ser humano com outro e de uma nova relação desse conjunto com a natureza.

Você agora vive em Imperatriz, mas continua ligado ao campo...

Quando criei o Centru, a intenção era contribuir para a formação política, cultural, ideológica e econômica no campo, onde nasci e me criei. É por isso que não saio do campo. Estou lá e, embora às vezes não esteja na produção, estou na roça conversando com trabalhador rural. Nunca fui aceito assim pelas instituições, porque dizem que não sou trabalhador rural porque não estou produzindo no campo. Mas eu sou trabalhador rural de coração e de alma. De sangue!

Hamilton Pereira é presidente da Fundação Perseu Abramo

Ricardo de Azevedo é coordenador editorial de Teoria e Debate